"No lugar da Ave-Maria e do Pai-Nosso, uma cantilena de "Tempo perdido", "Eduardo e Mônica" e "Monte Castelo", repetida dezenas de vezes pelos fãs de Renato Russo na porta do crematório do Caju. Era uma manhã de sábado e O GLOBO era o único jornal que tinha chegado cedo, na esperança de entrevistar os outros integrantes do Legião Urbana ou alguém da família do compositor. "O Dia" e "O Fluminense" chegaram mais tarde, engrossando conosco o exército de repórteres de rádio e TV. Assistíamos à missa de corpo presente pelas frestas da parede e comungávamos uma certeza: nosso trabalho tinha acabado ali, na anotação do ritual. Talvez por isso pouca gente tenha dado atenção à mulher magrinha, baixa, de óculos escuros, que abriu o portão do crematório para agradecer a presença dos fãs. Os adolescentes suados, que tinham virado a noite no Caju, fizeram um cordão de isolamento em torno de Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato. Cheguei perto dela aproveitando as cotoveladas de um gordo alto no resto da galera, mas poucos conseguiram uma carona igual. Não se pode esperar palavras coerentes de uma mãe que acaba de perder o filho de Aids - e um filho jovem, inteligente e carinhoso com a família. Mas dona Maria do Carmo disse várias. Começou respondendo minhas perguntas óbvias sobre inéditos do grupo. Emocionada sem chegar ao desespero, negou a Aids anunciada pelo médico Saul Betsche, alegando que o filho tinha morrido de anorexia nervosa, mas falou espontaneamente que Renato tinha desistido de viver. E fez isso dando voz ao filho morto, reproduzindo os diálogos que tinha com ele: "‘Júnior, vai jogar bola, vai namorar"’ Ele ria baixinho e dizia: ‘Não adianta, mãe, eu sou diferente". Não estava falando mais do compositor controverdito, depressivo, transformado em mito da noite para o dia. Revelava o garoto tímido da Ilha do Governador, que se dizia ateu, mas era devoto de São Judas Tadeu e morreu com uma medalha de Nossa Senhora Aparecida no peito. Explicava que o garoto sensível virou um adulto atormentado: "Nos últimos tempos, não cansava de repetir: ‘Mãe, eu não sou daqui’. Sempre foi muito atormentado, sofria profundamente até com guerras na Conchinchina". Já era muito para quem acreditava que ia escrever um texto corrido sobre os fãs chorosos, mas tive coragem de fazer uma última pergunta: "A senhora acredita que seu filho foi feliz?". Ela podia titubear, alegar cansaço, soltar um desaforo. Mas falou a coisa mais triste e bonita que ouvi nos últimos tempos: "É duro dizer isso, mas tenho certeza que não. Uma vez ele me disse: ‘Mãe, eu só fui feliz na infância"’. A coragem de Dona Maria do Carmo mostrou que a reportagem às vezes não termina no que é visto pelas frestas da parede. Emocionou fãs e alguns fotógrafos, levou um cameraman às lágrimas. E me fez agradecer intimamente ao gordo alto, com suas abençoadas cotoveladas."