L
e G i ã o U r B a N a
Por
Enquanto (1984/1995)
"Por
Enquanto" é um livro que vem junto com o BOX de 6 CD's do Legião.
Conta a história, influências
e
outras coisas da banda. Tem também algumas dicas sobre o significado
das músicas.
Para
a história da Legião Urbana no começo, bem no começo,
está o punk. Como nenhum começo é absoluto (o que
existia antes do começo?), esse punk é um princípio,
digamos assim, arbitrário. Outros começos poderiam ser válidos:
não seria absurdo citar as Sun Sessions de Elvis ou os gritos de
Love Me Do dos Beatles como pontos de partida "alternativos". Mas foi o
do-it-yourself, que está na base estética/política
do punk, que motivou o aparecimento de um "movimento" de rock em Brasília
no final dos anos 70, do qual saiu a Legião Urbana.
Ser
punk em Brasília não era exatamente um ato de rebeldia. Impossível
ser apenas rebelde quando se conhece, de cor e salteado (como os punks
brasilienses conheciam), a história dos Sex Pistols. A rebeldia
já tinha sido desmistificada como mais uma estratégia de
marketing necessária para o bom funcionamento da Indúsitria
Cultural. Malcolm McLaren apenas tornou evidentes os mecanismos de produção
de ídolos rebeldes. Depois dos Sex Pistols, a rebeldia sem causa
não deveria ter nenhum futuro.O que restava era a desilusão,e
apossibilidadade de tirar proveito de uma sociedade que precisa de ilusão
(incluindo ídolos rebeldes) para sobreviver. O "no future" dos punks
acabou se mostrando cheio de conseqüencias e de diferentes futuros.
A cena pop internacional passou a funcionar na base de estilhaços
denovos "movimentos" (muitos deles), seguindo o exemplo da turma dos Sex
Pistols, apenas produtos de releituras ou revivals de momentos anteriores
da história do rock), todos com direito a seus 15 minutos de fama
e hits. No primeiro dia de 1985, data em que a Legião Urbana lançou
seu primeiro disco, o punk já era uma lembrança remota, a
new wave já havia se tornado um passado comprometedor, Ian Curtis
já tinha se suicidado há quase 5 anos e o hardcore já
se cansava da tentativa desesperada de levar a rebeldia do punk a sério.
A música da Legião Urbana só podia refletir esse fragmentado
estado criativo, onde não existe mais qualquer cartilha a ser seguida
e onde toda nova banda está condenada a reinventar,seguindo o exemplo
dos Sex Pistols, sua própria história do pop. Será,
a primeira canção do primeiro disco da Legião Urbana
começa com os seguintes versos: "Tire suas mãos de mim, eu
não pertenço a você". Parecia uma declaração
de princípios punks, autoritária e arrogante, onde o grito
de independência pressupõe o corte de todos os laços
(afetivos, de qualquer tipo de pertencimento) com o mundo ao redor e com
as pessoas que vivem nesse mundo. Mas Será não é,
nem de longe, uma reedição irônica da ironia de
Sub-Mission
dos Sex Pistols, Será é o início do diálogo
(com um "você" ambíguo, em constante metamorfose, que reaparecerá
em inúmeras outras músicas da Legião Urbana) e a primeira
tentativa de construção de um outro mundo regido por princípios
éticos pós-punks, que levem em conta (e ao extremo) a ausência
de futuro e a descrença radical no que passou. Será é
antes de tudo uma canção romântica (não foi
por acaso que também fez sucesso na foz de Simone e no ritmo melodramático
do pagode-suingue), tão romântica quanto a escrita do mais
desesperado poeta romântico alemão, que também vivia
o fim de um mundo. O sentimento predominante em Será, e nas demais
faixas do primeiro disco da Legião Urbana, não é a
revolta, mas sim o desamparo ("Quem é que vai nos proteger?") e
a necessidade urgente de criação de uma nova comunidade,
sem depender de ninguém, já que ninguém nos protege.
Essa proposta (assim mesmo desesperada e desamparada) utópica da
Legião já foi interpretada/acusada de messianismo. Pode ser
o caso, mas trata-se certamente de um messianismo paradoxal ou radical
(mesmo em seus momentos mais cristão), um messianismo que não
transmite a "boa palavra", mas sim o eterno retorno do "no future" como
a nova ética, uma ética sempre descrente de seus princípios,
da possibilidade de melhorar o mundo, ou da existência de alguma
solução para qualquer problema. Solução? Em
Teorema a própria idéia de solução é
colocada em suspenso: "Não sabemos se isso é problema / Ou
se é a solução". Tudo é (repito: por princípio)
motivo de dúvida: "Se eu soubesse lhe dizer qual é a sua
tribo / Também saberia qual é a minha" (Petróleo do
Futuro); "Vivemos num planeta perdido como nós / Quem sabe ainda
estamos a salvo" (Perdidos no Espaço); "Qual é a diferença?"
(Baader-Meinhof Blues);"Quem é o inimigo?" (Soldados); "Eu não
sei mais o que / Eu sinto por você" (Ainda é cedo). O estar
perdido (em qualquer espaço, e não apenas no Brasil), à
deriva, também se reflete numa err&âcirc;ncia por vários
estilos musicais pós-punk. Legião Urbana 1 é quase
um álbum colcha-de-retalhos onde convivem vários ecos da
fragmentação pós-punk. A Dança lembra o funk-punk
do Gang of Four, Ainda é Cedo tem a melancolia do Joy Division e
do primeiro U2. A Legião gravou até um reagge e um "punk-básico"
(mesmo na letra) como Geração Coca-Cola (composição
do tempo do Aborto Elétrico, primeiro grupo "punk" de Brasília,
primeiro grupo musical de Renato Russo). Não era possível
perceber, a partir desse disco de estréia, quais seriam os próximos
passos musicais da banda. Muitos pontos de vista musicais convivem em cada
faixa. Muitas vozes conflitantes cantam cada letra. A Legião urbana
inaugura nesse disco todos os procedimentos poéticos que serão
desenvolvidos nos próximos lançamentos. Muitas vezes quem
canta é uma personagem, que pode citar (veja as letras impressas
no encarte dos discos e conte o número de aspas e travessões)
outras personagens. Outras vezes são contadas histórias (vide
O Reggae) sem que se saiba quem está no comando da narrativa. Não
existe uma visão de mundo privilegiada, não existe ideologia
única, não existe futuro para quem não acredita em
futuro. Mas nada disso fica totalmente claro. Até porque a última
canção desse disco coloca tudo, mais uma vez, em suspenso,
tudo parece provisório, tudo parece estar aqui apenas Por Enquanto.
Não é só pela predominância dos sintetizadores
(e não das guitarras elétricas, como nas
outras
músicas) que Por Enquanto é, de certa forma, desconcertante.
O disco termina com uma declaração no mínimo inesperada:
"Estamos indo de volta pra casa". Algo aconteceu entre o "tire as suas
mãos de mim" e o "estamos indo de volta pra casa".
Então
existe uma casa, um local de repouso, uma utopia tranqüila? Que casa
é essa, onde ela fica, quem sabe onde ela fica, quem está
indo de volta? Esta casa é o "nosso" futuro? Respostas nos próximos
discos? Haverá próximos discos se encontrarmos essa casa?
Dois, o segundo disco da Legião Urbana, lançado em julho
de 1986, não traz respostas óbvias. E as perguntas são
complexificadas. O disco começa com uma colagem sonora onde se escuta,
em meio a outros ruídos e outras músicas, o seguinte trecho
de Será: "Brigar pra quê / Se é sem querer". Mas parece
que alguma coisa mudou, que as perguntas (e talvez a ausência de
respostas e de um local de repouso no final da err&âcirc;ncia)
não incomodam tanto, que foi descoberta uma maneira de se conviver
- pacificamente - com a perplexidade: "Ainda estou confuso / Só
que agora é diferente / Estou tão tranqüilo / E tão
contente" (Quase sem Querer). Parece que foi encontrado um antídoto
contra a maldade e o erro, quase como se a resposta procurada fosse a resignação:
"Nada mais vai me ferir / É que eu já me acostumei / Com
a estrada errada que segui / E com a minha própria lei" (Andrea
Doria). Mas a resignação não é tudo. Em Dois
torna-se mais clara uma outra faceta inesperada, principalmente levando-se
em consideração sua origem punk, da Legião: uma "vontade"
de religião e piedade. Em Baader-Meinhof Blues, do primeiro disco,
já aparece um vestígio de sentimento cristão: critica-se
uma sociedade para a qual "amar ao próximo é tão demodé".
Mas em Dois o que estava submerso em metáforas e ironias vem à
tona: sua primeira faixa, lgoo a mais "explicitamente" sexual, tem um título
bíblico: Daniel na Cova dos Leões. Em Fábrica, logo
a mais punk (colocando-se de lado a indgnação de Metrópole),
a Legião canta: "Nosso dia vai chegar" e "Quero Justiça".
O canto não deve ser tomado ao pé da letra. A Legião
Urbana canta, mas o que é cantado não expressa necessariamente
o pensamento da Legião Urbana. O eu de cada canção
nem sempre pode ser confundido com o pensamento da Legião Urbana.
Em Fábrica, pode estar cantando um operário. Acrilic on
Canvas
é um diálogo entre duas (ou mais?) pessoas que não
sabemos quem são. Eduardo e Mônica, composição
mais antiga, é a narrativa de uma história com começo,
meio e fim. O ouvinte fica sem saber a opinião do cantor sobre aquilo
que canta. Nada é obviamente partidário ou panfletário.
Em "Índios", assim mesmo com aspas, a música que encerra
esse disco, quem canta é um
índio
que se dirige a um "vocês" genérico, que somos nós
(incluindo os próprios componentes da Legião), "civilizados"
brasileiros. Quem canta ocupa o lugar do outsider, daquele que em de fora
pra fazer ver. O outsider não é dono da verdade (como diz
outra canção de Dois: "Não há mentiras nem
verdades aqui / Só há música urbana"), apenas acrescenta
outros pontos de vista, outras verdades e mentiras no meio das verdades
e mentiras já existentes, mais ou menos oficiais. Em "Índios",
a voz muda a cada estrofe, é como se uma multidão estivesse
cantando. (Já compararam Legião Urbana a Joy Division, Smiths
ou Van Morrison. Não sei por que ninguém nunca pensou em
David Bowie. Não é preciso mudar de corte de cabelo a cada
ano para ser um camaleão.) Dois começa a definir também
uma sonoridade (com os timbres de guitarra preferido de Dado Villa-Lobos
e sutiliza rítmica de Marcelo Bonfá à frente) e uma
assinatura melódica da Legião Urbana. A música é
mais imediatamente pop, mas não facilmente assobiável. As
letras parecem, muitas vezes, estar em conflito com a melodia, como se
brincassem com o limite da métrica
e
se tornassem parte da canção por obra de um milagre. E algumas
melodias são realmente milagrosas. Escute Tempo Perdido. Essa canção
soa nova a quase dez anos depois de gravada. é um dos momentos mais
lindamente melancólicos da história da música pop,
ocupando algum lugar entre Perfect Day, do Lou Reed, I Never Asked to Be
Your Mountain, do Tim Buckley, e Ribbon in the Sky, do Stevie Wondewr.
Repare a parte da letra que diz: "Nem foi tempo perdido / Somos tão
jovens". A juventude (nossa-não importa nossa idade - e da Legião
Urbana) passou. Mas ainda se pode cantar: "Temos nosso próprio tempo".
Detalhe: Dois é o disco mais vendido da Legião Urbana. Vendeu
mais de 915 mil cópias. Foi em busca de seu próprio tempo,
um tempo antes de Tempo Perdido, que a Legião Urbana lançou
Que País é Este - 1978/1987, em novembro de 1987. O disco
reúne
canções
de épocas diferentes, várias delas do repertório do
Aborto Elétrico, que já estavam sendo distribuídas
em fitas piratas entre os fãs legionários. Tem de tudo: até
um arremedo psicodélico de ska (Depois do Começo) e declarações
de amor/ódio por Brasília. É interessante escutar
os discos na ordem em que foram lançados. É interessante
ouvir as composições do Aborto Elétrico depois de
Tempo Perdido ou "Índios". No começo punk predominavam as
letras na primeira pessoa. Com o passar do tempo, o eu foi dando lugar
ao você. A ironia foi dando lugar a algo parecido com as sinceridade.
A irritabilidade foi se transformando em tranqüilidade. A negação
de tudo cedeu lugar à afirmação trágica do
mundo. E o "no future" passou a ter um outro sentido, um
sentido
que já tinha sido cantado em 1971 pelos MC5, num disco precursor
do punk: "the future is now". E se o futuro é agora, deve-se reconhecer
que este já é um admirável mundo novo. Um mundo que
pode fazer de Faroeste Caboclo, música de mais de 9 minutos, um
dos maiores sucessos radiofônicos dos anos 80, contra todas as previsões
das cartilhas das gravadoras. Então: que país (ou que mundo)
é este? Ninguém sabe. E a Legião Urbana se recusa
a dar uma resposta. Como diz a letra de Mais do Mesmo, composição
de 1987: "E agora você quer um retrato do país / Mas queimaram
o filme". Continuamos perdidos? As Quatro Estações, lança
do em outubro de 1989, é uma retomada da trilha musical apontada
em Dois. A Religiosidade, no sentido mais amplo dessa palavra, toma conta
de todas as faixas. Há Tempos, a primeira canção,
dá o tom para o resto do disco: "Disciplina é
liberdde/Compaixão
é fortaleza/Ter bondade é ter coragem". A irônica rebeldia
(ou o simulacro de rebeldia) punk ce de lugar para uma dolorosa busca da
mais perfeita, agora sim, sinceridade. Mas em que basear a sinceridade
se ainda continuamos absolutamente descrentes? A história do rock
tem inúmeros exemplos de súbitas conversões religiosas
que duram dois ou três LPs. A simpatia pelo lado demoníaco
do mundo, que produziu tantos hits, parece sempre tirar a credibilidade
dessas tentativas de se inventar uma ética piedosa para o pop. O
encarte de As Quatro Estações mostra quais são as
fontes da religiosidade perseguida pela Legião Urbana: a Doutrina
de Buda, o Tao te King; a Bíblia; Camões (que, segundo Caetano
Veloso, pode ser lido com o I Ching). Essas fontes não são
usadas como doutrinas, ou como solução para os males do mundo.
A religiosidade aqui não é fundamento, não é
conforto, mas sim um enfrentamento direto com o nada, com o vazio do Nirvana,
com o aprendizado pelo amor vazio.
Tudo
ainda é parte da melancolia: "Há tempos o encanto está
ausente" (Há Tempos); "Até bem pouco tempo atrás /
Poderíamos mudar o mundo" (Quando o Sol Bater Na Janela do Teu Quarto);
"Meu coração é tão tosco / E tão pobre,
não sabe ainda / Os caminhos do mundo" (Sete Cidades). A conquista
da ética, da tranqüilidade e do amor é feita não
com a derrota do mal, como numa profissão de fé desesperada.
Determina-se: "De hoje em diante, / Todo dia vai ser o dia mais importante"
(Eu era um lobisomem juvenil). E revogam-se todas as disposições
em contrário. É tudo uma questão de vontade: "O Brasil
é o país do futuro
/
Eu quero tudo pra cima" (1965 (Duas Tribos). Basta querer, basta querer
estar do lado do Bem, para praticar a bondade. As Quatro Estações
é um pequeno tratado sobre a virtude, é um manual de como
ser virtuoso depois do punk, quando já não se acredita em
nada. Tudo é obvio, como se deve ser numa situação
como essa. A Legião Urbana canta a lealdade, a nobreza, o carinho,
a amizade. Mas canta sobretudo o amor, a mais "encantadora" das virtudes.
Pois: "Quando se aprende a amar/ O mundo passa a ser seu" (Se fiquei esperando
Meu Amor Passar); "Sem amor eu nada seria / Só o amor conhece o
que é verdade" (Monte Castelo). Então: a verdade não
pode ser encontrada no mundo, mas ela é produto de nossa relação
amorosa com o mundo.
A
ausência de sentido, a imperfeição do mundo, o "no
future" não impede o amor: "É preciso amar as pessoas / Como
se não houvesse amanhã" (Pais e Filhos). Mas quem fala? Quem
canta? Quem diz que as coisas e as pessoas são assim e que devemos
aprender a amá-las? As Quatro Estações continua, ainda
bem, a ser um disco sem um contro de enunciação, sem o local
de onde é dita a verdade. Pais e Filhos, por exemplo (talvez o maior
sucessor radiofônico desse disco), é a mais polifônica
das canções
da
Legião Urbana. A cada verso muda quem está falando. A canção
é feita através de cut-ups de declarações cotidianas
das mais improváveis procedências, No restante do disco, surgem
inúmeras citações: não importa a coerência
lógica do que vai sendo cantado, estrofe após estrofe. O
disco termina com o Agnus Dei, em oração, pedindo a paz.
A paz pode ser uma dádiva ilógica. Para quem esperava a bem-aventurança
pacífica, ou a passagem imediata para o paraíso, depois da
eterna mudança de As Quatro Estações, Legião
Urbana V deve ter sido uma surpresa (à primeira vista pelo menos)
muito estranha. Ezequiel Neves, no press-release que escreveu para o disco,
comparou esse novo conjunto de canções a um réquem.
Talvez tenha razão: V - lançdo em dezembro de 1991 - é
o álbum mais triste, e talvez por isso mesmo o mais belo, da Legião
Urbana. Mas não é um disco sobre a morte, nem mesmo sobre
a perda, é mais uma apologia da serenidade que se tem quando se
descobre a beleza no barulho da realidade (tanto que, na foto do encarte,
Renato Russo veste uma t-shirt do Jesus and Mary Chain - e V é o
disco menos barulhento da Legião), é - para usar em lugar-comum
- um disco do inevitável amadurecimento. Tanto que tem uma música
chamada
Sereníssima.
Não é certamente o caminho mais fácil, nem o mais
seguro para a serenidade: "Consegui meu equilíbrio / Cortejando
a insanidade". Tal equilíbrio só pode ser instável,
um estado onde "o caos segue em frente / Com toda a calma do mundo". Mais
do que isso: um estado que não tem nenhum futuro assegurado: "A
felicidade mora aqui comigo / Até segunda ordem" (A
Montanha
Mágica). A Legião Urbana continua a trilhar seu caminho sagrado
pelo mundo profano do pop. Agora as imagens são mais guerreiras:
o Buda de As Quatro Estações reaparece, mas como o cruzado
alquimista, "sem sela e espada", de Metal Contra as Nuvens. Uma faixa instrumental
se chama A Ordem dos Templários. E o disco abre com uma cantiga
amorosa do século XIII. Estamos de volta à Idade Média,
vista mais como uma idade das trevas do que aquela festa contínua
do Pasolini? Estamos
de
volta aos anos 70? O encarte diz: "Bem-vidos aos anos 70". Mas a introdução
de Love Song, a primeira faixa do disco, poderia ser também a abertura
de um ambient-techo do The Orb. V é um disco obscuro, hermético
e também contemplativo. Mesmo o mais simples, o mais banal, o mais
coloqual o mais cotidiano ("Vamos chamar nossos amigos / A gente faz uma
feijoada" - O Mundo Anda Tão Complicado - ou "Os meus amigos todos
/ Estão procurando emprego" - O Teatro dos Vampiros) adquire uma
"densidade metafísica" (para citar Guimarães Rosa) incontrolável.
A polifonia continua solta. Talvez porque tudo faça sentido quando
colocado lado a lado com qualquer outra coisa. A Idade das Trevas é
a Idade do Ouro: "É, tudo faz sentido" (L'Âge D'Or). O que
é uma maneira educada de dizer que nada faz. Então chegamos
a O Descobrimento do Brasil. Não se trata, como poderia ser esperado
de um disco lançado em novembro de 1993, quando aparecem bandas
como Raimundos e Chico Science & Nação Zumbi, de uma
retomada das "raízes" nacionais. O Descobrimento do Brasil é
um mergulho na história da própria Legião Urbana,
e - para usar mais um lugar-comum - o encerramento de um ciclo. É
como se a serenidade da Legião Urbana de V fizesse as pazes com
o
desequilíbrio
punk do Aborto Elétrico. Perfeição, a primeira música
de trabalho desse disco, prova que tal pacificação é
possível. A indignação e a auto-ironia punk da primeira
parte dessa canção terminam com hino de confiança
no futuro: "Venha, que o que vem é perfeição". De
onde vem essa convicção? Como passamos a ter um futuro (e
uma história) assim tão de repente? A Legião Urbana
dá a resposta óbvia: "O fim-do-mundo já passou" (Vamos
Fazer um Filme). Mas do ponto de vista pessoal, o mundo continua, e o mundo
tem futuro, pois essa é a única maneira de continuar a viver:
"E você diz que tudo terminou / Mas qualquer um pode ver: / Só
terminou pra você" (Os Barcos). Sendo assim, nada está perdido
e continuamos a ter todo o tempo do mundo. Esse novo "nosso próprio
tempo" a Legião Urbana nos dá a única receita para
viver nossas vidas: imaginar tudo como se fosse um "musical dos anos 30"
(Vamos Fazer um Filme) no meio da Grande Depressão. E quem disse
que não dá para ser feliz no meio da Grande Depressão?
E quem disse que sem Deus tudo é permitido? A Legião Urbana
canta: "Eu não sei nada e continuo limpo" (A Fonte). E acrescenta,
como numa atualização (depois de todo esse "tempo") de Será:
"Sai de mim / Que eu não quero mais saber de você", isso porque
"Só estou aberto a quem sempre foi do Bem" (Do Espírito).
O ciclo termina com uma crença inabalável: "Meu espírito
Ninguém vai conseguir quebrar" (Um Dia Perfeito). A última
palavra de O Descobrimento do Brasil é YEAH, gritado, virtuosamente
punk. Estamos finalmente descobertos. Ao ouvinte só resta uma resposta:
Amém.
Hermano
Viana, setembro de 1995