A Face Oculta De Renato Russo
Ele não queria conceder uma entrevista sem o resto da banda de jeito algum.
Telefona de cá, argumenta de lá; afinal, Renato Russo e Bia Abramo se
encontraram para um verdadeiro face to face. Acompanhem as trilhas tortuosas das
idéias do vocalista e letrista do grupo eleito pelos leitores de Bizz como o melhor de
86.
Renato, agora a Legião Urbana está fazendo sucesso. O que mudou na sua vida
pessoal em função deste sucesso?
RR - Nada. Quer dizer, o que mudou é que agora eu tenho mais segurança e
confiança; menos dúvidas sobre as coisas nas quais eu acreditava. Se você trabalha
com sinceridade e dignidade, se tenta ser íntegro e seguir o que você acredita, sem
se deixar levar por pressões, você acaba conseguindo. Sei lá, a gente criou uma
base que não vai mais embora, não é aquela coisa de fazer sucesso e, de repente,
ter que ficar provando porque fez sucesso. Bem, uma coisa que mudou é que agora
eu conheço muito mais gente. É uma coisa bacana conhecer milhões de pessoas
superfabulosas, mas fabulosas de verdade - pessoas que valem a pena, que te dão
aquela coisa, poxa, eu não estou sozinho. Quer dizer, todo mundo está sozinho, mas
pelo menos...
A crítica, ao falar do trabalho do Legião, destaca sempre as suas letras. Você acha
que, de fato, as letras são a coisa mais importante?
RR - Não. Existem tantas coisas... mas eu não gosto de falar do Legião. A melhor
coisa é: nós quatro, do jeito que somos, temos conseguido fazer o que fizemos.
Gente, nós éramos uma banda underground! Eu gostaria que a coisa mais
importante fosse aquilo que as pessoas escrevem nas cartas para a gente: "Vocês
são legais porque são que nem a gente." Bom, eu acho que isso é uma
romantização... essa é a imagem do Legião, mas as pessoas percebem que nós
somos quatro amigos que fazem música. Não mudou nada. Até hoje eu não sei tocar
direito... A gente é super não profissional, é amador no bom sentido, de quem ama o
que faz. O importante é isso, mas as pessoas ficam em cima - Rolling Stones/Mick
Jagger, RPM/Paulo Ricardo... e não é Legião/Renato Russo. E Legião. Só que eu
falo mais - eu sou muito ambicioso -, dou sempre um jeito de falar a coisa certa na
hora exata. As letras só tentam provar que alguma coisa é possível... mas as letras
são feitas em cima do que os quatro vivem. Quando a gente começou era assim:
vamos fazer uma banda? Vamos. Então decidia o nome, as turnês, mas nem sabia
tocar.. Mas é isso, quem mais sonha é quem mais faz, eu acredito muito nisso, e
também que quem espera sempre alcança. Eu vivo dizendo isso, são as máximas de
Renato Russo... Era divertido, é divertido, se não forfun, não tem graça nenhuma.
Ultimamente, estava ficando meio pesado, daí eu dei uma parada para ficar
divertido de novo. (Pausa) Eu diria que é o seguinte: embora as letras sejam
importantes, elas são um meio e não um fim.
E qual é o fim?
RR - Não existem fins, existem meios. Eu sempre penso em começos, nunca em
fins.
O fato de ter abandonado o show no meio em Belém (27/02) tem a ver com essa
coisa que você disse de estar ficando pesado?
RR - Eu não abandonei o show. Acontece o seguinte: eu não tenho que ficar
recebendo lata de cerveja na cabeça e continuar cantando por causa do meu salário.
Ah, mas não tenho mesmo! O público fica naquela euforia mas eles não respeitam.
Qual é, será que eles não percebem que nós estamos do lado deles? Que a gente
está cantando coisas positivas, não está falando "taquem uma garrafa de cerveja na
cabeça da gente, porque eu sou mau". A gente tá falando: "Brigar para quê/se é
sem querer." Já tinha tido um incidente com o Arnaldo (dos Titãs) e eu falei: podem
tacar uma bolinha de papel, se foi feito com má intenção, eu paro! Tá pensando o
quê? Eu não sou mártir, não tenho que ficar agüentando moleque mal resolvido. Se é
porque o show está ruim tudo bem, mas estava todo mundo adorando, estava tudo
bem... e me tacaram uma bela de uma sandália Samoa. Ainda bem que não foi uma
garrafa! Depois me falaram que o Paulo Ricardo leva garrafa na cabeça - eu não sei
se isso é verdade - e continua cantando, que isso é uma coisa que acontece sempre e
ninguém teve esse ataque de estrela. Tudo bem, mas eu é que não vou ficar
satisfazendo público que quer ouvir "Eduardo e Mônica" exatamente como está no
disco, isso não é rock'n'roll! 'Ah, mas tem que tocar." Tem que tocar nada, eu faço
o que eu quero! (... ) Para mim, rock'n'roll é tocar, se divertir, fazer o maior auê e ir
embora. Quer dizer, basicamente, a gente tenta fazer a coisa de modo que ela seja
sincera, porque senão a gente não segura. Se não estivermos cem por cento ligados
no que estamos fazendo, não sai, vai entrar todo mundo em pânico. E tem outra,
neste país a mídia está muito desenvolvida, mas, por outro lado, não entendem
nada... E também você não tem o respaldo de uma estrutura já pronta, tem que se
matar de fazer show, o próprio pessoal da mídia não reconhece. Eles só pisam e
pisam... Se vocês são tão importantes e rock'n'roll é tão vulgar, por que falam tanto
de rock'n'roll? Por que precisa citar Adorno e Walter Benjamin para provar que não
vale a pena falar disso? Eu acho que a maior falta de juízo é discutir com alguém que
não tem juízo. É sempre aquela coisa, você tem que ficar pacientemente mostrando:
gente, não é por aí. As pessoas vêm me pedir entrevistas para me perguntar coisas
que não têm nada a ver: o que eu acho da venda de ingressos do Sambódromo para
o Carnaval... Pelo amor de Deus! Pó, vem me perguntar rock'n'roll, que pelo menos
eu conheço um pouco, e mesmo assim tenho minhas dúvidas... O que acontece no
Brasil é que, se você chega num certo nível, você passa a ter autoridade para tudo.
As vezes, isso dá medo. E se você tenta explicar o negócio do rock'n'roll... Eu tenho
problemas até em casa, eles acham que eu sou exagerado. Se eu fico três dias com
uma letra, eles falam: "0, júnior (o nome real de Russo é Renato Manfredini Jr.),
deixa de fazer drama, de ser fresco." Mas isso já está mudando, graças a Deus. O
que mais incomoda é quando você recebe uma sandália, quando as pessoas exigem
certas coisas que são o oposto do que você está fazendo. Essas coisas tipo concurso
pra banda de rock, como as gravadoras estão fazendo. Me diz, você está fazendo
rock'n'roll, vai se submeter a julgamento organizado? Isso prova que as pessoas
não sabem direito onde estão pisando. Se você está trabalhando seriamente, aquele
sério bom, vai correr atrás da informação. Quem sabe um pouquinho da história dos
Rolling Stones ou dos Beatles, que todo mundo tem que saber, não cai em arapuca
de gravadora. Aí o cara chega e fala: "Pô, rock'n'roll é uma barra, é um trabalho."
Trabalho o cú. No dia que rock'n'roll for trabalho, então não é mais rock'n'roll. Eu
tinha três empregos para ter dinheiro para comprar uma guitarra, porque a única
coisa que eu queria fazer na vida era ficar com a minha guitarra brincando o dia
inteiro, não era uma barra. Pô, vai explicar isso para as pessoas, elas vão dizer que
eu sou pedante. Agora é essa coisa, briguinhas, cada um por si - como dizem os
Titãs: "Cada um por si e Deus contra todos." Vocês nunca passaram pela fase de ir
para a casa dos amigos e ficar trocando disco? Só vai para a frente quem é fã. Às
vezes, os caras não são realmente fãs, não têm aquela coisa de ficar colecionando
tudo, recortando sobre o seu ídolo favorito. (Pausa) Eu acho isso uma coisa tão
bacana, porque permite uma ligação com a inocência, de quando você é criança e
acredita mesmo nas coisas... Rock é isso. Mas quando ficam te tacando sandálias e
fazendo exigências absurdas... Para provar o quê? Que rock'n'roll é rebeldia? Se
fosse rebelde realmente, não estaria fazendo rock'n'roll hoje em dia. Tem que ter o
pé no chão, as pessoas não percebem que quando as coisas vêm fácil, elas também
vão embora fácil. Sei lá, de repente, hoje em dia, até os pais estão querendo que
você tenha uma banda de rock... (... ) Claro que a gente sempre muda, né? Mas eu
acho que sou a mesma pessoa... E o bacana do rock'n'roll é isso, é você não crescer
nunca. Eu gosto do Menudo e pronto. Eu quero me divertir! As pessoas ficam
achando que eu sou meio bestinha, que eu não sou assim. Mas eu sou assim, eu sou
meio bobalhão mesmo. O mais importante - puxa, eu não te disse que eu falava pra
caramba? - é você tentar lidar com isso da melhor maneira possível. Mas é uma
coisa muito complexa... Ao mesmo tempo que as pessoas não têm a mínima noção
de como as coisas acontecem, elas têm acesso às coisas mais modernas... Então
está todo mundo vendo 9 1/2 Semanas de Amor - aliás, eu detestei esse filme...
É, eu também não gostei. E cinema, o que você tem visto?
RR - Ah, eu gosto de ver vídeos... Eu adoro filme de terror. Em geral, eu gosto
muito de produções americanas desconhecidas e de filmes ingleses... E filmes que
têm aquela coisa humana - eu gosto muito do Renoir e do Truffaut. Truffaut é o
máximo. Sabe, o Jules e Jim, que não é nada, mas é cinema, é bem feito e te mexe
por dentro. Eu gosto do Spielberg, se bem que ele pega isso e faz aquela
parafernália. Eu não tenho tido muito tempo de ir ao cinema. Outro dia eu revi Um
Lobisomem Americano em Londres - eu adoro esse filme. Para mim, não é só uma
história de lobisomem, é uma história de amor belíssima. Cinema... eu gosto muito.
Terror também me atrai muito. Acho que hoje em dia é um paralelo perfeito com o
mundo em que a gente está vivendo. Adoro a mitologia do vampiro... Eu acabei de
ler um livro, The Vampire Lestat, que eu achei bárbaro. Eu gosto muito de ler.
Do que você gosta em literatura?
RR - Ultimamente, eu não tenho lido muita ficção, eu tenho lido biografias, eu gosto
muito de biografias. Bem, Shakespeare eu sempre leio. Mas, virtualmente, eu leio
qualquer coisa... Histórias de feiticeiros, de terror, Stephen King, eu adoro... Bem
subliteratura mesmo, adoro coisas bem horripilantes. Mas também leio coisas sérias
para estudar a linguagem. Ultimamente, eu leio muito Drummond, pode escrever aí -
eu amo o Drummond, para mim só existem dois: o Fernando Pessoa e o Drummond.
E prosa?
RR - Prosa eu não conheço. Eu gosto de acompanhar o trabalho do Caetano, presto
atenção na construção gramatical, na divisão de sílabas. Até pouco tempo atrás, eu
estava estudando sonetos, aí eu lia Camões e tentava fazer os meus... Ah, que bobo
que eu sou... tão pedante... Porque um dos meus planos é, quando eu estiver com
uns 40, 50 anos, escrever ficção. Eu tenho a minha vida toda planejada.
Quais são os planos?
RR - Rock'n'roll, cinema e literatura. Cinema é muito difícil. Mas literatura eu já
quero treinar agora, porque, quando eu tiver já uma carga de vida, aí eu posso
escrever. Eu acredito que você tem que passar pelo tempo para poder escrever
como o Drummond, o García Márquez, o Thomas Mann...
Mas o Thomas Mann começou a escrever muito jovem...
RR - Eu sei, mas meu plano é dominar a técnica para depois escrever minhas
historinhas. Mas é difícil, a língua portuguesa é muitíssimo dificílima (risos).
Muitíssimo dificílima é péssimo... Meu plano é ser maior do que o Shakespeare...
Ah, é bacana, né? Você vai querer ser o quê? O Zezinho que escreve lá uns
romancezinhos? Ora bolas, o plano do Legião era ser que nem os Beatles... É
sempre bom ter um sonho. Eu estou guardando todas as pequenas histórias, talvez
você se veja numa das personagens... Uma coisa para a qual eu estou me
esforçando é ter uma disciplina mental, não no sentido besta da palavra, mas para
organizar e tentar lembrar coisas que eu gostaria de escrever.. Como foram as
nossas primeiras viagens para o Rio e São Paulo... Algo que nem em The Catcher in
the Rye, quando o Holden fala que ele gosta de um livro se depois ele fica querendo
que aquela pessoa exista e fica com vontade de conhecê-la. Eu gostaria de criar
personagens assim.
De certa forma, o seu trabalho com as letras já traz um pouco dessa visão
romântica. Por exemplo, o que é aparentemente político, eu percebo como uma
maneira de falar da condição de jovem no mundo, mais do que o aspecto político
mesmo...
RR - É, eu não percebo como sendo político, para mim é a minha vida. Se a gente
falava dessas coisas é porque estavam acontecendo com a gente. Eu só consigo
falar do que sinto e do que vejo, não tenho muita capacidade para inventar. E
sempre a partir do Renato Russo. Detesto ficar falando Renato Russo... é tão
chato... (... )
De onde você tirou esse nome?
RR - É porque, desde pequeno, eu tinha minhas bandas imaginárias. Ainda mais que
eu sou fã do Fernando Pessoa e, quando descobri que ele tinha os heterônimos, eu
inventei logo os meus. Eu tinha uma banda chamada Forty Second Street Band, que
era até com o Jeff Beck e com o Mick Taylor, eu era um cara chamado Eric Russel.
Eu achava esse nome a coisa mais linda do mundo e aí eu era louro e lindo e cheio
de gatinhas... Depois, tinha o Rousseau, o Jean Jacques, eu gostava daquela coisa
do nobre selvagem... Daí tinha o Henri Rousseau, um pintor que eu amo... e o
Bertrand Russel, que eu acho um cara muito legal. Ele escreveu uma coisa bacana,
a História da Filosofia Ocidental. Ele fala - não sei se é ele ou o Toynbee - que a
grande contribuição do século XX - e o rock'n'roll está incluído - vai ser a união de
todas as nações numa só. (Pausa) Acho que o grande mal da civilização ocidental é
não ter contato com a oriental. Todo esse pessoal proclama verdade, verdade,
verdade e não chega a solução nenhuma... Daí vem o Lao-Tsé e fala: (Renato imita
a voz do Mestre, do seriado Kung Fu) "Certo, não há resposta para nada porque há
resposta para tudo".
Você bebe nessa fonte oriental?
RR - É tão dificil... Foi o que me segurou... As coisas mais básicas são as seguintes:
quem acredita sempre alcança, respeito ao próximo, não faça aos outros aquilo que
você não quer que te façam... é meio por aí. No fundo, é o que o I Chinq fala, é o
que Buda fala, Cristo e Krishna também... Todo mundo falou, mas ninguém ouviu...
Se você tem a intenção de ter um coração puro e tenta seguir o negócio do trabalho
e da amizade ter um trabalho digno e tentar cultivar os amigos -, você não tem o que
temer. Eu acredito nisso, mesmo. Mas é uma dificuldade... Eu sou um monstro, né,
eu sou arrogante, egoísta, ambicioso, pedante, ah, eu me acho o máximo... Aí eu
penso: tá, Renato, você está dando uma de bonzinho, mas no fundo isso é vaidade,
você é pior do que todo mundo... Meu Deus, e se for verdade? O Grande Arquiteto
do Universo lá é que sabe... Eu tento. Eu sou muito jovem, isso realmente vem com
o tempo, eu já não fico mais tão nervoso. Mas eu ainda sou desbocado, impulsivo,
impaciente, ansioso, violento, ciumento... Mas eu também arrisco bastante, e isso é
uma coisa positiva. Eu sou tipo assim: ah, é para cortar o braço? Pronto, cortei, e
agora? Eu não tenho medo de fazer certas coisas. Às vezes, você se queima, mas é
uma qualidade. O que eu quero é ter disciplina, controlar o lado das emoções
desenfreadas, o mau humor. Eu percebo que as pessoas que se amam de verdade
conseguem isso. Eu fico na dúvida: será que eu já amei alguém de verdade? Have I
ever loved anyone? Sim e não; aquela coisa de respeito mútuo, de respeitar o outro
como parte de você e ao mesmo tempo como um ser totalmente diverso, é quando
pinta o amor de verdade, que é cada vez mais raro. Mas é uma coisa que eu quero
trabalhar. A partir do momento que você consegue isso com uma pessoa, você vai
estendendo para as outras. Energia chama energia, dize-me com quem andas e eu te
direi quem és... Mas falar é tão lindo, eu vou sair daqui e vou fazer a estupidez de
sempre. Eu gostaria de disciplinar esse plano, de ser uma pessoa forte, no sentido
de ter segurança... Se você quer ter alguém em quem confiar, confie em si mesmo.
Sei lá, muitas vezes você entra em cada depressão por causa de babaquice...
Trechos da entrevista a Bia Abramo, Bizz, abril de 1986