Eu Não Quero Mais Cuspir Em Ninguém:
A Voz De Renato Russo
Tomando emprestado uma expressão cunhada pelos sambistas cariocas, pode-se
dizer que o Legião Urbana está arrebentando a boca do balão. Ao lado do Ultraje a
Rigor e RPM, forma atualmente, o triunvirato das bandas mais populares do rock
brasileiro (...) Seu primeiro disco, que já vendeu mais de 50 mil cópias foi
considerado um dos melhores de 85 em enquetes realizadas pelo O Globo e Jornal
do Brasil e o melhor pela revista especializada Bizz, da editora Abril. Além disso,
houve destaque para o guitarrista Dado Villa-Lobos e para o compositor, poeta e
vocalista Renato Russo. Fugindo da confusão do carnaval do Rio, Renato veio para
Brasília descansar, depois de passar quase dois meses em estúdio (...) gravando a
base instrumental do novo elepê da Legião. Está aproveitando para terminar as
letras de algumas das 12 faixas do disco, que ainda não tem título, nem data para
ser lançado (...)
Esse segundo elepê, musicalmente, segue a linha do primeiro disco, ou a Legião
propõe alguma novidade?
RR - Acho que a mudança principal não será na música, na textura instrumental das
faixas, embora isso seja justamente o que vai chamar mais atenção a principio. Esse
disco não tem nenhuma "Geração Coca-Cola". Não estamos mais a fim de cuspir
em cima dos outros. Eu acho que isso foi uma coisa de um momento. Já foi feito.
Tem outros conjuntos que estão seguindo essa linha, acreditam nisso, acham uma
coisa muito legal. Tudo bem, não tenho nada contra, mas partimos pra outra. A
mudança, embora eu acredite que as pessoas vão sentir isso nas músicas, ela se
manifesta mais no lance da temática. A gente está pegando exatamente o que a
gente falava no primeiro disco, mas ao invés de ser aquela coisa corrosiva, aquela
coisa de atacar, estamos tentando dar um recado, tipo assim: não é bem por aí. Está
todo mundo muito sozinho, se ligando muito nas máquinas. Não é isso. O importante
é saber de sua família, das pessoas que estão próximas de você e não copiar o cara
que está na televisão. Foi isso que a gente começou a descobrir dentro do lance.
O primeiro disco de vocês tem uma certa unidade. Nenhuma música está ali
gratuitamente. O próximo tem também um fio condutor, um elo entre as várias
faixas?
RR - Olha, o disco estava sendo planejado para ser um álbum duplo. Iam ser 25
músicas. Grande parte desse material teria base acústica. A gente estava pegando
muita coisa feita entre Aborto Elétrico e a Legião, música que eu tocava no violão.
Íamos fazer arranjos para o conjunto tocar. Não deu certo por causa de uma série de
problemas. Então tivemos que fazer uma redefinição do trabalho. Agora será um
disco com 12 músicas, que tem um fio condutor, uma idéia central. A gente que se
liga muito no rock sabe que os grandes discos são uma idéia. Você pega Sgt.
Pepper's, dos Beatles; o primeiro dos Sex Pistols. É uma idéia, é um conjunto. E a
gente quer fazer isso nesse disco. Tem muita música de amor, mas tem, também,
música que fala do social, do político, mas num contexto emocional, num contexto
individual, algo mais ou menos como "Baader-Meinhof Blues", só que sem aquela
parte negativa. Eu acho que as idéias da gente estão bem gerais e não muito
específicas. É um lance assim, ao invés de falar mal das pessoas que poluem os
mares, ou das guerras, a gente prefere falar do universal, da experiência individual
de cada um. Todo mundo respira, todo mundo sonha, todo mundo é confuso
sexualmente, até certo ponto, todo mundo tem medo da morte. Então a gente quer
falar sobre isso: do ponto em comum que une todas as pessoas.
Numa matéria analítica sobre o rock brasileiro, publicada recentemente no jornal do
Brasil, o Tarik de Souza lhe chamou de neo-Jerry Adriani. Como você encarou isso?
RR - Olha, eu acho o Tarik um cara superlegal, mas ele entende é de MPB. Uma
coisa que me irrita um pouco são pessoas de determinadas áreas, falando de áreas
que não são delas. Eu não entendo nada de MPB. Sou amigo do Makalé, às vezes a
gente conversa e tal, mas eu não posso me meter a fazer a crítica do disco do
Moreira da Silva. O Tarik não tem base pra falar de rock. Ele é um excelente
jornalista, entende muito de MPB, tem um trabalho que eu respeito muitíssimo, mas
que não me venha falar de rock, pois ele não entende nada de rock. Mas, de uma
certa forma, ele tem um pouco de razão, porque meu timbre de voz é parecido com o
do Jerry Adriani, mas em uma ou outra música. Mas a partir do momento em que
isso é utilizado para rotular e em cima disso criar um texto jornalístico, acaba sendo
uma coisa de má-fé. Acho isso superdesnecessário. No entanto, acho que as pessoas
têm total liberdade para expressar suas opiniões.
Renato, agora que a Legião é uma banda conhecida nacionalmente, como é que
você vê essa questão do ídolo e de sua relação com os fãs?
RR - É muito legal as pessoas virem falar com a gente, reconhecer o trabalho da
gente. Mas, quanto mais conhecido você fica, mais estranho é o comportamento das
pessoas. Às vezes, chegam umas meninas pra falar com a gente, mas elas não são
como são verdadeiramente. Eu preferiria que elas chegassem normalmente, pra
conversar. Mas elas chegam querendo te agarrar. Não vêem você como ser
humano, como artista, mas como um objeto que está sendo transmitido pela TV,
pelos meios de comunicação de massa. E isso não é legal porque é uma viagem
muito destrutiva, tanto para o artista como para o fã.
Me parece que sua ligação afetiva com Brasilia é muito forte. Sempre que pode vem
à cidade?
RR - Eu adoro Brasília. Pra mim, é a melhor cidade do Brasil. Futuramente, eu
quero novamente morar em Brasília. Eu sei que a cidade tem muitos problemas, mas
são problemas ainda contornáveis. Aquela tal história, se a gente não começar a
pensar realmente nas satélites, vão acontecer algumas coisas terríveis. Brasília, o
Plano Piloto, é uma ilhazinha, com uma vida caríssima. Uma das cidades de vida
mais cara no país. E pode acontecer, realmente, uma coisa à la Revolução Francesa.
Eu tenho uns amigos místicos, que é outro lado da cidade que eu acho
superinteressante, que dizem o seguinte: se as coisas não forem bem encaminhadas,
pode surgir um grande ressentimento por parte das massas. E com toda razão. Em
Brasília, as crianças ainda podem brincar sozinhas nas quadras. No Rio, você não
pode ter um apartamento sem um guarda, uma casa sem cachorro. Aqui a coisa
ainda é tranqüila. Mas, e as satélites? Estou sabendo que estão fazendo um trabalho
legal por lá, mas a gente tem que ter consciência disso e reivindicar mais. (... ) Eu
acho assim, Brasília é uma cidade legal na medida em que você ainda pode
melhorá-la. Por exemplo, ainda está em tempo da gente tomar conta da poluição, de
dar um jeito no Paranoá, de ajeitar o trânsito. São coisas que ainda se pode
trabalhar. Agora eu gosto muito de Brasília, porque aqui eu passei a adolescência,
tenho meus amigos. Não são tantos, mas são pessoas especiais, que vão ficar pro
resto da vida. O pessoal que trabalha com arte, que agita a cidade, são pessoas
muito legais. Muita gente reclama que aqui não tem nada pra fazer, mas se você
procura, você acha. Tem o Instituto Goethe, a programação do Cine Brasília, que
está espetacular. Tem o Da Mata que é incrível. No Rio e em São Paulo existem
mais alternativas, mas é aquele circuitozinho. Você sai do cinema e tem que se
defrontar com aquele calor, com aquela poluição. Aqui, você sai da Cultura Inglesa e
aspira um ar puríssimo e pode sair por aí caminhando tranqüilamente. E existe o
intercâmbio cultural com as embaixadas e com as próprias pessoas. Você encontra
pessoas aqui de todos os cantos do país, de todas as profissões, com todos os
backgrounds possíveis. Isso dá uma interação de relacionamento humano,
emocional, que eu acho muito legal, ao contrário das grandes metrópoles onde hoje
só existem as tribos superfechadas.
Trechos da entrevista a Irlam Rocha Lima, Correio Braziliense, 18 de fevereiro de