Legionário Da Ética
A melhor poesia brasileira de hoje não está só nos livros, mas também no vinil. Uma
nova geração de letristas, vinda na explosão e consolidação do rock nacional,
começa enfim a ser reconhecida. Entre eles, um destaque: Renato Manfredini Jr,
mais conhecido como Renato Russo, cantor e compositor do grupo Legião Urbana. (
... ) Aos 27 anos, dez de carreira - entre o underground e a consagração - e três LPs
gravados, ele é um dos maiores ídolos da nova música brasileira. (... )
Há um certo consenso em incluir você, o Cazuza, o Arnaldo Antunes e outros entre
os melhores poetas da nova geração, uma coisa que viria da música e não da poesia
livresca. Você concorda com essa avaliação?
RR - Eu me sinto honrado por isso, mas me vejo mais como um letrista, mesmo. Eu
escrevo algumas poesias em casa, mas essas eu não tenho coragem de mostrar.
Uma coisa que se percebe especialmente neste último LP, que tem músicas de
várias fases, é que as letras mais antigas vem com uma métrica bem "quadrada".
Mas diante de uma nova, como "Mais do mesmo", fica difícil imaginar como entra a
música.
RR - É, porque antigamente era pegar e ir em frente, mesmo porque a gente tinha
tanto assunto... Agora, a partir do momento em que eu já falei da Constituição, por
exemplo, em "Que País é Este", eu procuro falar de outras coisas, é um processo de
aprimoramento. O que tenho feito muito é procurar não coincidir a frase melódica
com o verso da letra.
Mas, mesmo que você trabalhe em cima da música, há muitas letras que sozinhas
são ótimos poemas.
RR - Quando você lê as letras antigas, sempre pergunta "Cadê a música?", mas eu
acho que, se há duas partes, letra e música, elas devem poder se impor
isoladamente. (...)
Você identifica alguma influência de outros escritores ou compositores no seu
trabalho?
RR - (... ) Tive muita influência dos poetas ingleses, Shakespeare principalmente.
Gosto muito de sonetos.
Você prefere então os clássicos? Não se interessa por literatura moderna, ou
mesmo experimentalismos?
RR - Olha, mesmo os escritores ingleses mais experimentais são muito mais fáceis
de entender, com algumas exceções, como o Joyce, mas ele era um inventor de
palavras. Não é como o Modernismo brasileiro, ou os experimentalismos de língua
latina, que geralmente são muito difíceis. É uma questão de simplicidade. Aí você
pensa na literatura dos beats pra cá. Eu não tenho lido nenhum escritor
contemporâneo diante de quem eu possa chegar e: ah! O que acontece com a poesia
inglesa é que ela é muito ligada à tradição da canção. Uma coisa que me atrai muito
nesse ponto é o cancioneiro elisabetano. Enquanto isso, no Brasil a música sempre
foi ligada a uma coisa mais folclórica. Sempre houve uma espécie de cisma, a poesia
de um lado, a música popular do outro. Em termos de construção, portanto, eu me
interesso mais pela poesia inglesa. Mas, em termos de temática, Fernando Pessoa e
Carlos Drummond. Aí sim... Se bem que para inspiração eu bebo em diversas fontes.
Leio muito a Bíblia, Lao-Tsé, o Tao Te-King, porque acho que ali estão as coisas
básicas. Atualmente, eu também leio coisas "B" - Stephen King, ou então
biografias, da Glória Swanson, do Cecil B. De Mille. Quando era garoto, eu lia
demais, principalmente os existencialistas. Dizem que o Kierkegaard era
existencialista. Eu o lia, lia muito o Sartre, tudo temperado com Thomas Mann. já
viu, né? (risos) Ficou muito complicado. Até que reli a Bíblia, e vi no Eclesiastes
coisas tão básicas... Porque a nossa geração, o pessoal mais novo, tem sempre uma
saída pro camp, uma liberdade maior para transar até o kitsch, enquanto as
gerações mais antigas da área de cultura têm uma coisa muito ressentida, muito
angustiada. E eu não quero ser uma pessoa amarga. (... ) E se é pra conhecer o
processo humano eu prefiro uma boa literatura, um Dostoiévski, um Balzac, em vez
de História da sexualidade.
Ferreira Gullar declarou no ano passado ao Estado de S. Paulo que a maior parte
dos artistas da geração roqueira não têm caráter. Você acha que a geração anterior
está jogando nas costas da atual a culpa pelos seus fracassos?
RR - Não, porque não houve fracasso. Eles fizeram muita coisa! O que eu entendo
dessa revolta do Gullar é que se eu, por exemplo, resolver lançar um livro, terei a
maior divulgação naturalmente. Essa coisa da música gera repercussão imediata,
não é como na literatura. Porque tem muita gente boa que batalha anos e anos e não
consegue nada. O próprio Gullar, que tem livros traduzidos em não sei quantas
línguas; a repercussão do seu trabalho no Brasil é muito pequena! Agora, é claro
que na nossa geração as pessoas têm uma agilidade muito maior para fazer as
coisas, ninguém fica esperando nada. De repente, o Arnaldo Antunes já tem um livro
pronto, a Plebe Rude já fez o seu filme experimental há anos, e todos se dão força. E
olha que o rock já fez muita coisa pela cultura brasileira nesses anos todos. Se não
fosse por isso, acho que eu já teria ido embora... Porque em vez de ficar sentado,
isolado num canto, reclamando, a gente trabalha, viaja pelo Brasil, vê como este
país é realmente uma federação, a realidade de cada estado é totalmente diferente
da de outro! Uma coisa de bom que a cultura rock fez no país foi acelerar o processo
de tribalização, de um lado, e de outro uma identidade planetária. Você marca
diferenças, porque enquanto o pop realmente é imperialista porque é um tipo de
música feito para qualquer público e imediatamente assimilável -, o rock se destina
sempre a segmentos localizados. É claro que fica um pouco complicado porque muito
rock se utiliza de elementos pop e vice-versa, mas a base é essa. Por essas coisas
todas, acho que acusar uma geração inteira da falta de caráter é um absurdo. (...)
Várias vezes você declarou que qualquer solução para os problemas do Brasil teria
que passar antes pela questão ética. Poderia explicar melhor?
RR - Sim, eu me baseio numa ética normativa, que diz o que é certo ou errado
fazem. É bom deixar claro que isso passa por uma avaliação interior, e não por uma
imposição, afinal já se matou muita gente com essa justificativa. Assim, um
engenheiro de obras sabe que não se deve poluir a Baía de Guanabara, ou o
governo sabe que não pode haver pessoas passando fome.
Mas quais seriam os fundamentos dessa ética? E como chegar a isso por uma via
prática?
RR - Acho que o básico para essa avaliação é a Declaração dos Direitos Humanos.
E isso teria que partir do núcleo da sociedade, que é a família. É uma questão de
educação! Porque não adianta ficar xingando o Sarney, na verdade os culpados pela
situação do país somos nós! Por exemplo: como a nova geração vai ter respeito pela
mais velha, se esta a ataca e está cheia de preconceitos?
Você não acha que hoje, no Brasil, estamos quase no extremo oposto desta
sociedade ética?
RR - Sim, você vê pela quantidade de pessoas que querem ir embora, o aviltamento
profissional de tanta gente, a falta de perspectivas. Mas eu acho que é justamente
nas situações extremas que as coisas podem mudar. O povo brasileiro, na verdade,
tem muito bom coração.
Mas o povo não seria muito propenso a seguir líderes messiânicos? No seu caso,
por exemplo, como pop star, você não pode negar que boa parte do público o trata
como um líder. Isso não o incomoda?
RR - Muito. No final da excursão do disco Dois, o clima já estava insuportável,
tanto que paramos para dar um tempo. Mas sempre fiz questão de colocar para as
pessoas que eu não era, de maneira nenhuma, o dono da verdade.
Voltando à questão da desagregação moral do país: a Aids, à parte a tragicomédia
dos "métodos" brasileiros de profilaxia, não serve também como mais um reforço
na repressão e no enquadramento?
RR - Sem dúvida, e pode-se ver isso nesses assassinatos rituais de homossexuais.
Veja a diferença do que acontece no exterior: na Europa, estão fazendo filmes
pornôs sobre safe sex! Toda essa movimentação em torno da Aids só serviu para
reforçar ainda mais a união do movimento gay. Aqui, acontece o contrário: foi
preciso matar o Luiz Antônio para os artistas iniciarem uma campanha, porque os
homossexuais estão acuados, com medo. Os hemofílicos estão fazendo, estão
lutando, mas precisava morrer o Henfil para esse problema sensibilizar a
população?
Você faz várias citações à astrologia nas suas músicas mais antigas, além de citar a
Bíblia e a filosofia oriental como suas leituras. Qual sua relação com a religião e
com o pensamento chamado "místico"?
RR - Já me envolvi a fundo com magia, Cabala, a ponto de ter de parar porque
estava mexendo com forças que escapavam ao meu controle. Joguei muito tarô,
fazia mapas astrais, estudei espiritismo, minha única frustração é ainda não ter
acesso aos Evangelhos não-canônicos, considerados heréticos pela Igreja. Tem
histórias sobre a ida de Cristo ao Tibete e à Inglaterra, onde esteve com os druidas.
Acredito numa dimensão espiritual, para mim Deus significa tudo. Claro que não é o
Deus da Igreja, o velhinho de barbas brancas. Agora até a ciência descobriu Deus,
sei de matemáticos e físicos que acham que, para um universo tão perfeito, tem que
haver um Deus.
Mas dizer "tem de ter" não é o mesmo que dizer "tem"...
RR - Sim, mas eles reconhecem que sempre haverá algo de inexplicável, de
inexplicado. O que acontece é que o homem matou Deus e hoje as pessoas estão
sem fé nenhuma. Na verdade, o Deus cristão matou todas as divindades pagãs
antes.
É curioso como isso lembra Nietzsche e sua tese sobre a morte de Deus e o niilismo
do último homem.
RR - Mas isso é Nietzsche! O super-homem é o homem espiritual, aquele que tira o
sentido e o valor de si, de seus atos. Como ele disse que o homem estaria para o
super-homem assim como o macaco está para o homem, eu vejo a mesma coisa em
Jesus Cristo, por exemplo. Na verdade, Nietzsche é um homem à procura de um
deus. Um deus que não é o Deus cristão.
Trechos da entrevista a Luiz Carlos Mansur, Caderno "Idéias", Jornal do Brasil,
23 de janeiro de 1988.