No final de agosto de 1986 ainda era possível se assistir a um show da
Legião Urbana com os cotovelos sobre o palco do Noites Cariocas. A
banda estava na segunda semana de lançamento do álbum "Dois" no
Morro da Urca e podia-se saber qual seria a música seguinte no
espetáculo simplesmente lendo o set list preso com fita crepe aos pés de
Renato Russo. Atrás da fila do gargarejo, alguns punks pogavam em
paz. Mas em breve o disco teria vendido 800 mil cópias e grades de
isolamento teriam de ser postas entre o palco e a platéia.
Noutra noite fria, a de 18 de junho de 1988, entretanto, as grades postas
entre o gramado do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, e o
baixíssimo palco sobre o qual a Legião Urbana se apresentava não
contiveram o perigoso amálgama de amor & ódio de cerca de 50 mil
pessoas. Renato se enfureceu com as brigas à sua frente, um doente
mental subiu no palco e agarrou-o pelo pescoço, o show foi encerrado
antes do previsto e logo estourou um baita tumulto, um faroeste
caboclo com direito a cavalaria da PM e a bombas de gás lacrimogêneo.
Saldo: 60 pessoas detidas, 385 atendidas pelo serviço médico e 64
ônibus depredados. O grupo, Renato, sobretudo, foi acusado de
incitamento à baderna.
Estes dois shows - separados por menos de dois anos - sintetizam todos
os paradoxos de Renato Russo, da Legião Urbana, do BRock e do rock
internacional, Kurt Cobain que o diga. "Quando você faz sucesso com
uma banda de rock‘n’roll, você tem de conviver justamente com as
pessoas de quem queria fugir ao fundar uma banda de rock‘n’roll", me
dizia Renato em entrevista de setembro de 1987, meio do caminho entre
o Morro da Urca e o Planalto Central. Nessa época, o maior letrista da
história do rock brasileiro já anunciava a intenção de escorregar da
esfera pública - expressa em músicas como "Que país é este", sobre
corrupção - para a esfera privada - expressa em músicas como
"Meninos e meninas", sobre bissexualismo. Sua intenção, depois da
santa ira punk do início de carreira, era incluir o verso "eu te amo"
numa canção sem cair na banalidade. Conseguiu. E com louvor.
Até então cultor de medalhões como Led Zeppelin e Pink Floyd, o
baixista Renato Russo descobriu o punk rock em 1977, aos 17 anos,
quando outro professor da Cultura Inglesa, um escocês chamado Iain,
voltou da Grã-Bretanha falando de uns tais Sex Pistols. No ano
seguinte, junto a André Pretorius, guitarrista filho do embaixador
sul-africano no Brasil, e Felipe Lemos, baterista, Renato fundou o
Aborto Elétrico, embrião tanto da Legião Urbana (de Renato) quanto
do Capital Inicial (de Felipe), junto com o Plebe Rude, a santíssima
trindade do rico rock brasiliense dos anos 80.
O Aborto Elétrico - rápido e barulhento, fortemente influenciado pelos
Stooges e pelos Sex Pistols - sofreu com o entra-e-sai de integrantes e
nunca chegou a um disco próprio. Contudo, algumas de suas canções
foram posteriormente gravadas pela Legião (como "Geração
Coca-Cola" e "Conexão amazônica") e pelo Capital ("Veraneio
vascaína" e "Fátima"). Quando o Aborto Elétrico se desfez, na virada
de 1981 para 1982, Renato, então estudante de Jornalismo na UnB, se
transformou no famigerado Trovador Solitário, que, sozinho ao violão,
interpretava composições próprias, como "Eduardo e Mônica" e
"Química". Curiosamente foi uma fita dessa fase que chegou aos
ouvidos do então diretor-artístico da EMI, Jorge Davidson, que durante
algum tempo julgou ter nas mãos um grupo folk.
Engano desfeito e contrato fechado, em parte graças à propaganda de
seus velhos conhecidos Paralamas do Sucesso, já no cast da EMI, a
Legião partiu para o primeiro LP como um trio - Renato (voz e baixo),
Dado Villa-Lobos (guitarra) e Marcelo Bonfá (bateria) - e no meio do
caminho se tornou um quarteto - com a entrada de Renato Rocha
(baixo). Por quê? Porque Renato Russo queria ficar mais livre para
cantar e porque ferimentos nos pulsos, causados por uma tentativa de
suicídio, lhe haviam tirado parte dos movimentos das mãos. "Legião
Urbana", o disco, produzido pelo jornalista José Emílio Rondeau, foi
lançado às vésperas do primeiro Rock in Rio, em janeiro de 1985, e
hibernou por seis meses, quando finalmente começou a tocar nas rádios
quase faixa a faixa. Quando "Dois" chegou às lojas, um ano e meio
depois, as músicas de seu antecessor ainda estavam no ar.
E desde então tem sido assim: faixas de um álbum se emendando com
faixas do álbum anterior nos corações & mentes dos brasileiros -
mesmo com dois anos separando cada álbum. As de "Dois" se
emendando com as de "Que país é este 1978-1987", as deste com as de
"As quatro estações" (1989), as deste com as de "V" (1991), as deste
com as de "O descobrimento do Brasil" (1993). Centenas de milhares
de cópias vendidas de cada um deles.
Qual o segredo desse sucesso? Tanto no Noites Cariocas quanto no
Mané Garrincha, Renato Russo parecia estar cantando não para meia
dúzia de gatos pingados, não para uma turba de milhares, mas para um
único ouvinte. Suas letras eram universais porque eram profundamente
pessoais. Tanto ao falar de política quanto ao falar de amor, uma única
linha norteava sua poética: a busca da ética perdida. No recém-lançado
álbum "A tempestade", Renato clamava "não façamos do amor algo
desonesto" do mesmo modo que denunciava "nas favelas, no Senado,
sujeira pra todo lado" em "Que país é este", de 1978. Ponto de
encontro do macro com o micro? "Faroeste caboclo", de 1979, 159
versos narrando paixão & morte do traficante de drogas & homem
santo João de Santo Cristo, 159 versos espraiados por mais de nove
minutos de música, 159 versos vaiados impiedosamente por punks no
Morro da Urca em 1983 e decorados por qualquer criança de 5 anos
quando afinal saíram em disco e entraram nas rádios, em 1987.
Em sua carreira solo, como intérprete, e não autor, Renato Russo fez
questão de evitar qualquer paralelo ou antagonismo com a Legião
Urbana gravando canções em inglês ("The Stonewall celebration
concert", de 1994, que transformava até a tola "Cherish", de Madonna
& Pat Leonard, numa obra-prima) e em italiano ("Equilíbrio distante",
de 1995, que transformava até a progressiva "Dolcissima Maria", do
grupo Premiata Forneria Marconi, numa música pop). Como intérprete,
ainda, Renato fez uma arrepiante participação no mais recente disco
solo do ex-RPM Paulo Ricardo Medeiros, "Rock popular brasileiro",
na faixa "A cruz e a espada".
Com a morte de Renato Russo, o BRock perde não somente sua mais
potente voz, mas também o seu mais potente cérebro.