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De "Nascimento de Uma Nação" ao "Resgate do Soldado Ryan" / última atualização em 18/09/1998 |
por Roberto Tietzmann / todos os direitos reservados, reprodução proibida.
obs. Texto publicado originalmente no "Café com Letrinha" nº01.
Não adianta. Os americanos gostam mesmo é de filme com gente fazendo picadinho de gente. O exemplo mais recente é "O Resgate do Soldado Ryan", que deixa todos os espectadores (em especial aqueles que sentarem nas primeiras filas, como eu) cobertos de sangue e vísceras dos soldados mortos em combate por quase três horas. Conselho de amigo: vá assistir Ryan de estômago VAZIO e sem comer carne 72h ANTES e DEPOIS de assistir ao filme. (p.s. se você der três voltas no cinema, serve também como simpatia para o Spielberg fazer uns filmes mais alegrinhos nos próximos anos. Quem sabe mais um Indiana Jones?).
Essa tradição de violência no cinema marca os filmes de Hollywood e não é de hoje. As histórias da conquista do oeste e outros episódios escabrosos aconteceram relativamente próximo do surgimento da indústria do cinema daquele país, alimentando-a fartamente. Os filmes de cowboy foram precedidos por shows que contavam com índios Apaches legítimos (uma espécie de Beto Carrero do velho oeste), e nestes shows se estabeleceram os paradigmas de histórias e situações da maioria dos westerns.
Os conflitos recentes interessam às pessoas. Geram histórias a respeito, fazendo nascer a partir dos fatos toda uma mitologia que -provavelmente- tem muito pouco a ver com o ocorrido. Isso não é novo. Trechos da vida de Cristo foram escritos "de ouvir falar". Portanto, não uma reportagem, mas uma mistura entre o fato e a ficção. Uma interpretação cultural da realidade. O cinema bebe da mesma fonte.
Outro grande conflito que sacudiu os EUA foi a Guerra da Secessão. Norte contra o Sul. Abolicionistas contra escravagistas. Entre outros bons filmes que saíram daí está "O Vento Levou" e "O Nascimento de Uma Nação". O primeiro, mais famoso, até hoje divertido e consumível é uma grande novelona com Scarlett O'Hara pra lá e pra cá buscando se dar bem em meio à guerra, namorando escroques e tal. O segundo, "Nascimento", é o grande divisor de águas do mundo do cinema.
Realizado em 1914 por D.W.Griffith, o filme contava a história de uma família -os Camerons- que tinha ramos ao norte e ao sul. Com a guerra, aqueles que antes eram amigos se tornam inimigos mortais. A condição do país supera as vontades individuais. Foi o primeiro longa-metragem realizado nos EUA (segundo Griffith, um filme que "deveria trazer diversão para a noite inteira") e consolidou a linguagem cinematográfica moderna. Até hoje bebemos da fonte de Griffith.
"Nascimento" tem grandes cenas de batalha. Bem coreografadas e envolventes até hoje. Realizado sob a ótica de um país então (quando da feitura do filme) já consolidado e confiante de si, a insanidade da guerra é retratada em tons melodramáticos. Parentes contra parentes. Não é um desconhecido na trincheira, é o seu primo! Ao final das coisas, o filme mostra a guerra algo como "as dores do parto" da nação americana. Os fins justificaram todos os meios.
Oitenta e poucos anos depois de Griffith haver feito sua obra-prima, Steven Spielberg resolveu fazer mais um filme sobre a segunda guerra mundial. Esse período da história parece fascinar o cineasta. Já realizou desde comédias sobre o tema (1941), passando por visões líricas do conflito (Império do Sol) até filmes quase documentais a respeito (A Lista de Schindler). Sem contar os Indianas, que abordam um período pouco anterior à guerra. "O Resgate do Soldado Ryan" é um filme que impressiona pela crueza de suas cenas de combate e pela ambiguidade da moral de ambos os lados do conflito.
Se em "Nascimento" os caras estavam lutando por objetivos bem definidos, ninguém em "Ryan" sabe exatamente porque está lá. Spielberg mostra um grupo de soldados que vai resgatar um irmão -o último vivo de uma família- através de uma zona conflagrada. Uma missão maluca que faz os soldados se perguntarem o tempo inteiro "Por que fazer isto? Lá por isso iam mandar alguém me buscar se precisasse?". O comandante faz o melhor que pode para responder. Mas acaba resumindo o objetivo em algo como "Se cumprir esta missão me fizer voltar para casa mais ligeiro, estou nessa. Fui!". Nada de grandes ideais, papo furado, etc. Na prática, lutar pela liberdade era fazer picadinho dos inimigos antes que eles fizessem você virar guisado. E... BLERGH! Os maquiadores trabalharam um bocado neste filme!!
Entre "Ryan" e "Nascimento" há menos de um século, mas neste meio tempo a visão que o cinema faz da vida mudou muito. Sem a visão de conjunto patriótica de um John Wayne, só resta aos soldados matarem para não serem mortos. Entre os dois conflitos verídicos mostrados no filme há mais ou menos um século. A guerra, pode apostar, continua a mesma porcaria insensata. Aposto um rifle que os filmes de hoje estão bem perto daquilo que ela é realmente.
p.s. "Ryan" tem também efeitos colaterais pedagógicos. O filme desperta uma vocação para seguir a carreira diplomática ou pacifista-ONG em geral. A guerra é muito absurda para você querer passar por isto algum dia da sua vida. Porém, se alguém vibrar com as cenas de carnificina, pode internar. É sério candidato a serial killer ou tem vocação para açougueiro!!