TV Crítica


05/01/03

Suzane e o sistema

Certa vez, durante o programa Casa dos Artistas, o ator Ricardo Macchi afirmou que o universo em que vivemos é basicamente espaço vazio. Inúmeros jornalistas, personalidades, e até intelectuais, consideraram que Macchi havia dito uma grande besteira. O fato é que o universo realmente é formado por espaço vazio. Até mesmo uma pesada barra de ouro maciça é formada por espaço vazio. Prova disto é que uma prensa cósmica, um buraco negro, poderia fazer com que essa barra ficasse do tamanho da cabeça de um alfinete, sem haver perda de massa.

As aparências enganam, não podemos confiar cegamente no nosso senso comum, naquilo que não possuí uma sólida fundamentação cientifica. A física, com o valioso suporte da matemática, nos mostrou que o mundo pode não ser o que aparenta.

Infelizmente, nem tudo pode ser comprovado de forma cientifica, tendo como base a matemática. Um bom exemplo é a psicologia, que ainda está baseada no senso comum, nos padrões impostos pela sociedade.

Na União Soviética, uma pessoa contrária ao regime socialista era considerada como vítima de uma perturbação mental. As clínicas psiquiátricas da Rússia estavam lotadas de cidadãos que não concordavam com o regime vigente. Nunca faltaram psiquiatras para endossar as atitudes dos dirigentes soviéticos. Mas não é necessário buscar na extinta URSS  exemplos de como a psicologia pode ser usada como meio de opressão e dominação. Aqui mesmo no Brasil tivemos inúmeros casos de pessoas que, por serem diferentes, eram internadas e "tratadas", com drogas e choques elétricos.

A psicologia não é uma ciência exata, ela não conta com os mesmo fundamentos da biologia ou da medicina. As inúmeras teorias e escolas permitem defender qualquer tipo de tese, por mais absurda que possa parecer. Desde o século XIX, pesquisadores tentam, sem muito sucesso, comprovar a influência genética no caráter psicológico de um individuo. Desta forma, a psicologia, aliada a genealogia, já foi utilizada para justificar o racismo.

Mas é necessário reconhecer que a partir da década de 70 a psicologia teve um notável desenvolvimento, não que tenha surgido alguma nova teoria que permitiu uma reformulação desta ciência. Foi simplesmente uma mudança no comportamento da sociedade ocidental que obrigou psicólogos e psiquiatras a evoluírem em seus procedimentos. Filmes como “Um Estranho no Ninho” e dramas de personalidades holywoodianas ajudaram a mudar a psicologia.

Lamentavelmente, este avanço virou retrocesso a partir da década de 90, mais uma vez por influência da sociedade, que voltou a adotar uma postura conservadora. Houve uma redescoberta dos valores morais, do casamento, da família e da religião. E a psicologia teve um papel fundamental na sustentação desta onda moralista.

O caso Suzane Louise parece resumir toda esta histórica erradica e contraditória da psicologia. Inúmeros profissionais são utilizados pela mídia como instrumento de demonização da jovem Suzane. Psicólogos e psiquiatras declaram apenas aquilo o que a sociedade deseja ouvir. Não há contestação, não há discussão, todos são unânimes: a jovem sofre um incurável desvio de personalidade, é uma psicopata, não há perdão, não há recuperação. Tudo resultado da falta de limites, da liberdade dada pelos pais, do consumismo da sociedade, da violência exibida pela TV, etc.

Porém, até pouco tempo atrás a psicologia era usada para justificar a morte de uma esposa infiel. Quantos maridos não se livraram da prisão e foram apresentados como vítimas. E o que dizer dos pais que matam suas filhas pelo simples fato de serem do sexo feminino? Um fato comum até hoje em alguns países asiáticos e que não é contestado pela psicologia. Será que os indivíduos de uma sociedade que aceita a morte de uma jovem quando o marido ou os pais descobre que ela perdeu a virgindade antes do casamento podem ser considerados como psicopatas?

Para completar, uma última questão: e se tivesse ocorrido o oposto na casa do casal Richthofen. E se os pais tivessem determinado a morte de Daniel e Suzana, será que haveria o mesmo estardalhaço. Uma dica: já tivemos fatos desta natureza, envolvendo famílias da alta sociedade. A repercussão foi desprezível. Outros casos de filhos que mataram os pais também não tiveram a mesma atenção da imprensa. Então, porque todo esse sensacionalismo em torno do caso Suzane?

Para começar, Suzane é uma jovem mulher. Se fosse homem, seria mais aceitável. Em nossa sociedade, machista, as mulheres devem ocupar uma posição de submissão. Os jovens devem ser submissos aos adultos. Mas o principal é que Suzane quebrou o mais tradicional sistema de dominação/opressão de nossa sociedade: numa família, os filhos devem ser submissos aos pais, assim como os empregados devem ser submissos aos patrões, os cidadãos ao governo e o mundo aos EUA.

Toda nossa sociedade está moldada dentro de um sistema de dominação/opressão, que se reproduz em diversos níveis. Até na religião que adotamos temos um típico modelo de dominação/opressão. O comunismo era odiado justamente por denunciar e contestar este modelo de dominação/opressão. E não foi coincidência  o fato da atual onda moralista ter surgido após o fim da URSS e o enfraquecimento dos partidos de esquerda.

A psicologia é uma peça chave em toda essa estrutura. Ela garante a manutenção do modelo. A Suzane é vista como uma grave ameaça a este modelo por ser uma mulher, por ser jovem e por enfrentado os seus pais. Por isso, ela deve ser endemonizada. Neste momento, todas as teorias da psicologia devem ser empregadas para condenar a jovem.

Obviamente, não queremos dizer que ela é inocente do crime que cometeu. Mas se queremos evoluir, devemos compreender corretamente o que está acontecendo. Neste momento, Suzane esta sendo julgada não apenas por um caso de duplo assassinato, mas por ter quebrado, em três níveis, o sistema de dominação/opressão vigente em nossa sociedade(mulher/homem, jovem/adulto, filho/pais). Os profissionais da psicologia, com raríssimas exceções, não têm ajudado a esclarecer esta tragédia. Pelo contrário, atuam como defensores de frente do sistema. E com a ajuda da mídia, utilizam este caso como um instrumento de doutrinação.

 

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