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Falando de Capeia Raiana São já cinquenta anos de vivência com esta tradição que sinceramente não sei há quantos anos ela existe, falo apenas da minha experiência, pois não possuo dados históricos sobre o assunto e como tal vou tentar relembrar tudo aquilo que mais me marcou durante todos estes anos relacionado com a Capeia Raiana, e com certeza que muito do que vou tentar dizer não será novidade para alguns dos leitores deste jornal, esses que me perdoem o atrevimento e algo que não esteja de acordo com o que eles pensam e sabem sobre o assunto. Sou natural de uma das Aldeias Raianas, ALDEIA VELHA, que tenta manter ainda bem viva esta tradição. Faz parte da vida deste povo e penso que irá continuar por muitos e bons anos. Recordo os meus tempos de garoto em que calcorreava a pé, os caminhos para ir ver as Capeias das outras Aldeias tais como Aldeia do Bispo, Lageosa da Raia e Forecalhos, por serem aquelas que mais perto ficavam de Aldeia Velha. É bom lembrar que nesses tempos ainda não havia os meios de transporte que hoje existem. íamos na véspera da Capeia, dormíamos num palheiro, comíamos em casa dos amigos, que os havia e muitos, e no dia da 'apeia lá estávamos espreitando, por debaixo dos carros de bois que faziam a chamada praça e da qual não loucas vezes os bois se conseguiam escapar, furando por debaixo dos carros ou até mesmo saltando por cima leres. Dadas estas fugas dos bois, devo dizer que durante os dias que duravam as Capeias sentia medo de andar pelo campo, tal era o receio de encontrar algum desses animais que tanto admiro e tanto receio ao mesmo tempo. Toda a Capeia Raiana é precedida do ENCERRO, que consiste em trazer os bois a pé, com a ajuda indispensável dos cavaleiros da terra e não só, das terras de Espanha até à praça da Aldeia. Não era fácil executar tal tarefa e muitas vezes os bois fugiam e andavam dias e dias espalhados pelos campos da Aldeia. Este Encerro tinha lugar da parte da manhã e todos nós esperávamos ansiosamente a chegada dos bois e quando eles já se aproximavam da Aldeia gritávamos, "já lá vem a poeira no alto da ramalheira", era sinal de que os bois já estavam perto. Se tudo corria bem os bois davam entrada na praça, conduzidos pelos cavaleiros e eram depois metidos nos currais. Naqueles tempos a praça era toda ela feita com carros de bois carregados de lenha, quase sempre de carvalho, e havia até um brio especial em ver quem apresentava o carro mais bem carregado, com a melhor "popa" e os paus todos certinhos, autênticas obras de arte, que infelizmente hoje já não existem. Claro que os Mordomos da Capeia faziam todos os possíveis por apresentar os seus carros de forma a serem os melhores. O Encerro foi e será sempre a parte mais interessante e que mais gente atrai ao espectáculo, não sendo poucas as centenas de espanhóis que aqui acorrem para o ver. Recordo tantos nos quais os touros fugiam, às vezes até já de dentro dos corrais e da própria praça e por incrível que pareça e atendendo ao perigo que todos nós corríamos, eram estas fugas que faziam com que os Encerros fossem considerados mais interessantes. Após o Encerro era deitado o boi da "prova", como que para ver logo se os bois iriam ser bons ou maus. O mais importante era que o touro mangasse bem no forcão e a malta aguentasse a pé firme as fortes cornadas dos corpulentos animais ávidos de fazer sangue e tudo faziam para o conseguir. Por volta das cinco horas da tarde dava-se então início à corrida, precedida do pedido da praça o que normalmente era feito à individualidade da terra que exercesse na altura um cargo considerado importante dentro ou fora da Aldeia, que podia ser um Militar de Alta patente natural da aldeia. Claro que após um breve discurso feito com o objectivo de incentivar a malta a que mostrassem toda a sua valentia ao enfrentar os touros não se deixassem apanhar, era concedida a autorização para que se desse início à corrida. O primeiro touro a sair é para os mordomos da Capeia, isto quer dizer que um deles tem de pegar à galha esquerda e o outra à galha direita. Na corrida havia, como hoje ainda há, urna peça fundamental e a mais importante que é o Forcão. O Forcão é feito em troncos de carvalho, tem a forma de um triângulo e serve para esperar o touro. Se o touro marrava bem ao forcão era bonito se não, não valia nada e era fortemente assobiado pela assistência. Nos tempos que agora tento recordar e como se pode ver nas imagens, o forcão era seguro por homens apenas dos lados, comandados por um ou dois "rabiadores", homens altos e fortes, de modo a não permitir que o touro conseguisse passar para trás, o que poria em risco a vida de todos os que pegavam ao forcão. Dado o pequeno número de homens que pegavam ao forcão e também ao poder dos bois, não poucas vezes, logo à primeira marrada, o forcão caía por terra, deixando presos debaixo dele alguns dos homens que antes o seguravam. Eram momentos de grande aflição com toda a gente a gritar e que muitas vezes acabava com colhidas graves. Infelizmente também assisti a colhidas mortais porque na realidade estas Capeias colocam em perigo a vida de muita gente, sobretudo daqueles que ajudam dentro do "corro". Penso, embora me custe aceitar, que é o perigo permanente que faz com que toda esta gente adore e continue a alimentar esta tradição da CAPEIA RAIANA. Havia e felizmente para ele e todos nós ainda cá anda hoje já quase com 80 anos uma figura muito típica e querida de todos que é o "Manho" de nacionalidade espanhola de nome Conrado, que a todos encantava com os seus passes de moleta muitas vezes dados de rodilhas. O Manho trazia quase sempre um grupo de jovens seus conterrâneos aos quais ia ensinando a sua arte de tourear. Tinha também uma característica especial, toureava sempre, entenda-se todos os anos, com a mesma camisa, que era a pele do seu corpo. Da cintura para cima não havia peças de roupa e as calças às vezes saiam rasgados. Claro que todo este esforço era compensado com um peditório feito dentro da praça pela rapaziada, e o "Manho" cá estaria no próximo ano para gáudio de todos nós. Fazendo uma comparação do que acontece hoje e o que acontecia há 50 anos poderei dizer que a tradição continua a ter um peso enorme nesta ten-a. O Encerro perdeu em qualidade uma vez que os touros com os quais é feito, não são todos aqueles que irão ser corridos, os considerados maiores e más bravos vêm num camião sendo depois descarregados para a praça a fim de que todo o povo os possa ver. Os touros são acompanhados quase em todo o trajecto que fazem, por um grande número de cavaleiros, de pessoas andando ao seu lado, de indivíduos montados, uns nas suas motorizadas, outros em camionetas, carrinhas, jipes e tractores, o que, diga-se em abono da verdade, em nada beneficia o encerro, antes pelo contrário. Quanto à praça, hoje já são poucos os carros de bois que a compõem e mesmo esses carregados já de outra forma. Ela é essencialmente feita de palcos, quer sejam de madeira ou ferro, e de tractores preparados para o efeito. Tem os indispensáveis salva-vidas e nos momentos de grande perigo cada um tenta saltar para onde pode, a fim de não ser colhido pelos terríveis cornos do touro. O forcão continua a ser feito da mesma maneira, só que hoje o número de homens (quase todos rapazes solteiros) que lhe pegam para enfrentar o touro é muito maior e já não se pega só dos lados mas também no meio e são estes que aguentam a maior parte do peso do forcão e a força do embate do touro. Tornou-se assim mais seguro pegar ao forcão e diminuiu o perigo do boi passar para trás, o que hoje raramente acontece. Hoje os animais não são tão mal tratados, pois já não há varas dentro da praça com as quais se batiam e picavam os touros. Continuam no entanto a serem corridos desembolados, o que faz com que todos os que andam dentro da praça estejam em perigo permanente de sofrer uma cornada. Pessoalmente sou a favor dos toiros embalados, pois penso que o mais importante é salvaguardar a vida de cada um. Não tenho dúvidas de que esta tradição se vai manter por muitos e muitos anos e faço votos para que cada vez mais os rapazes corram o menor risco possível e que a Capeia seja um modo de divertimento e de vida e nunca um modo de morte. José Alves da Silva in - Nova Guarda, 11 de Agosto 2000 |
Última Actualização: Abril 08, 2002. |