Gostaria de expressar um agradecimento especial a revista AIR PRESS da qual sou assinante, pois algumas das histórias aqui narradas são originais da revista. 
 

Meu Primeiro Salto

Por: José Eustáquio dos Reis 
 
 
 
 
 
 
 
Aos cinquenta anos de idade, o sonho alimentado pelo jovem soldado de dezenove anos, quando servia nas fileiras do Exército Brasileiro, se tornaria realidade. O hiato que separa os dois períodos não foi suficiente para apagar a chama aventureira da juventude. As instruções e os testes exaustivos aplicados pelo instrutor, capitão Fragapani, não foram esquecidos. Salto livre de altura, corridas de distância e obstáculo com saco de areia nas costas; tudo ainda parecia possível de ser realizado, com o mesmo vigor dos áureos tempos. 
Mas a realidade era outra; os anos subtraíram resistência física, mas o desejo e a vontade de realizar o sonho de saltar de pára-quedas continuavam latentes e potencializados pela juventude e espírito também aventureiro do meu casal de filhos. Primeiro foi o filho. Ao contrário de meus pais e avós que frustraram o meus sonhos, dei-lhe um encorajador tapa nas costas e um "vá em frente. Vá em frente que eu vou também". 
No entanto, e com justa razão pelo desconhecimento da segurança, as preocupações das pessoas próximas não haviam passado e agora foi a vez de minha mulher que, balançando negativamente a cabeça, fez biquinho e me disse:-Am,am,am! Negativo, você está muito gordinho. Só vai saltar se perder dez quilos. Você já viu a sua barriga ? 
Já tinha olhado uma infinidade de vezes mas, assim, meio disfarçado e com ar de desprezo, olhei para a maldita e soberba barriga e fiz cara como a dizer "não está lá muito grande" Mas ninguém é bobo, e ainda mais ela que acompanhou a sua evoluçâo no tempo e no espaço 
E meu filho estava com a data marcada para instruções e primeiro salto e eu impotente para subtrair 10 dos meus 76 quilos sobre os quais se contabilizavam 22 quilos, produto de um investimento seguro de 31 anos. Sacrificar 10 quilos assim parecia-me até uma covardia comigo mesmo. 
Vigilantes do peso, caminhada, bicicleta e remos fixos e puft: em duas semanas três quilos se evaporaram. -É, a sua barriga diminuiu, disse a minha mulher. Esse foi o meu sinal de "start" e , para não permitir retrocesso, matriculei-me imediatamente no curso Avis Rara e, como um garotinho de cinco anos que pela primeira vez veste o seu uniforme e vai para a escolinha, lá estava eu no meio dos jovens para receber as instruções de paraquedismo. A tiracolo estava a minha filha de 42 quilos e 1,50 m de altura. 
Belo sábado de 02 de março /96. Escoltados pelo meu experiente filho de "um salto", lá fomos os três para Conselheiro Lafaiete, onde eu e minha filha deveríamos realizar o primeiro salto. Foram 100 quilômetros para lá, um dia todo de espera e, por fim, o pára-quedas nas costas, fotografias, encorajamento dos colegas e o avião. O grande momento havia chegado. 
No entanto, os olhares do piloto e do instrutor para o céu pareciam indicar outro caminho. Alguns pingos de chuva e , depois a chuva forte. 
Sair novamente do avião e voltar ao hangartalvez tenha sido a maior frustraço da minha vida. Senti-me o Pato Donald desmoralizado, curvado para a frente até quase tocar o solo com as asas. E o peso do pára-quedas realçava esta minha visão/fantasia. 
Não saltei mas já me considerava um paraquedista. E tanto isso é verdade que quando o piloto e o instrutor de rádio constataram que naquele dia não haveria mais condição de salto e pediram uma cerveginha, pensei egoisticamente: "se houver possibilidade, salto ainda hoje. O piloto pode beber até cair. Na decolagem não há problema e no pouso eu sou paraquedista e não preciso do avião". E olhem, quando pensei isso minha experiência era de "zero" salto. 
Cem quilômetros de volta a Belo horizonte e, no dia seguinte, domingo, outros quilômetros novamente para Conselheiro Lafaiete. 
Enfim eu iria saltar. 
Pára-quedas nas costa, capacete e óculos protetor, teste de rá'dio e o nosso instrutor Guilherme, mais uma vez, relembrou as instruçõs básicas de embarque e saída da aeronave, salto, anormalidades, pane, navegação e pouso. Mostrou-nos a direção do vento através de uma biruta toda rasgadae, apontado para o céu, mostrou-nos onde devería ser nosso Ponto de Saída(PS). Também determinou as referências A< B< C e ponto de pouso. Depois fez perguntas diversas para cada aluno; mais fotos e o embarque. 
Um a um, na ordem inversa do salto, protejemos os punhos de acionamento dos paraquedas, sentamos na porta, arrastamos o traseiro pelo piso da aeronave e nos comprimimos como sardinha na lata. O desconforto era tamanho que eu cheguei a pensar que isso é feito de propósito. Melhor lá fora, livre no desconhecido, do que aqui dentro comprimido no conhecido. 
Ronca o motor e o avião decola fazendo pressão no corpo equanto a porta é fechada. Silencia o motor, olho para os meus dois colegas, também de primeiro salto, que parecem tramquilos, mas vendo seus olhos, através do capacete aberto, notei que se moviam inquietos. 
De tempo em tempo conferíamos a altitude através do altímetro que trazíamos na altura do peito. 1.000, 2.000, 3.000, 4.000 pés. Avião com vento de nariz, motor desacelerado, porta aberta e um barulho e vento terríveis invadem o interior. Depois dos comandos padrões terem sido cumpridos, pude ver, a um ângulo muito pequeno, meu amigo Fernando, neste instante, já pára-quedista, despencar no espaço , numa resultante complicada de forças: uma vertical devida à gravidade e duas horizontais: de arrasto da aeronave e outra de opsição ao ar. A esses fatores soma-se, ainda, a turbulência provocada pela própria aeronave. 
Ver o instrutor recolher a fita "static line" e a bolsa protetora do velame e acessórios, foi motivo de alívio para todos. Timidamente, desejando que tudo tivesse saído certo para o companheiro, e também pegando uma carona de garantia para mim, perguntei de modo embaraçado: 
-Foi tudo bem? 
-Tudo, respondeu o Guilherme sorrindo, lendo os meus pensamentos e temores. 
E, enquanto o avião acelera novamente, fazendo uma curva de 360 graus à esquerda, buscando a trajetória anterior, arrasto-me para a posição na porta. O instrutor liga meu rádio, faz as últimas checagens e põe a cabeça para fora, para conferir o PS. Dá sinal de direção com o polegar para o piloto e vejo os seus cabelos colados para trás, pela força do vento. Pela porta vejo nuvens tênues e, lá em baixo, tudo pequeno. Bate na ,imha perna; olho para ele. 
-Tudo bem? 
-Tuuuuudo, balbucio. 
-Ponha os pés para fora. 
Teimo com o vento que joga os meus pés para trás e os apoio no estribo, fora do avião. Sentado na port, com as mãos apoiadas nos batentes, olho para o Guilherme. 
-Ao montante, olhe para cima. 
Vacilante, com o vento fustigando, solto a mão esquerda da porta e seguro firme no montante. Apoiando as pernas trêmulas, solto a mão direita. Totalmente fora do avião, à medida que me levanto escorrego as duas mãos pelo montante, subindo num ângulo de 45 graus, até quase tocar a asa, longe da porta. O pé direito é solto no are, em seguida, o esquerdo. Totalmente suspenso no ar, em pânico, olho para o Guilherme que bate duas fotografias e, concluindo sua missão, me libera para o salto levantando o polegar. 
-OK. 
Olho para cima, concentro na posição de cela e antes de soltar as mãos penso em milésimos de segundo: "O quê é que eu estou fazendo aqui nestas alturas, dependurado sob as asas de um avião? Dane-se". 
Solto as mãos. 
-Cela, um mil, dois mil, três mil, ............check. 
Um solavanco gangorrado, uma torção e três ou quatro giros nas linhas e, sem entender direito o quê estava acontecendo.... o delumbramento de flutuar. E o check visual que deveria ser feito de cima para baixo, na ordem velame, linhas e slider, foi feito mais ou menos, a partir do meio, porque quando percebi as linhas torcidas, no chamado twist, estava ciente que não tinha comando de navegabilidade. Não fosse desfeito o twist, nos 2.500 pés, marca vermelha no altímetro, eu teria que fazer o procedimento de emergência desconectando o pará-quedas principal e acionando o pará-quedas reserva. 
Embora tivesse treinado exaustivamente este procedimento dependurado no teto de uma sala em uma casa que dava vista para a rua, era isso o que menos queria fazer naquele momento. Mas, atendendo o manual e as recomendações dp instrutor, chutei o ar com a perna esquerda e o meu corpo alinhou-se rapidamente com o velame do pará-quedas. Não me lembrei de concluir o check visual. 
Desfeito o twist, a minha cabeça, que estava forçada para a frente pelos tirantes fechados, agora estava livre; olhei de rabo de olho e desconfiado para o altopensando na hipótese de os batoques , meus volantes de direção, não estarem lá. 
Viva! Estavam. 
Segurei-os vacilante e com timidez e não me lembro de tê-los retirado do velcro que os prende. Tudo parecia bem e os testes funcionais que me permitiriam navegar e pousar com segurança foramçã feitos, automaticamente, com displicência e a meio batoque, porque misturei as marchas preocupado em saber a localização do meu alvo 
E o rádio que estava ligado muito alto, chiou, estalou e não entendi nada do que estava falando. Pensei:"Ah meu Deus do Céu...só me faltava essa". 
Sem largar o batoque com medo de que desaparecesse, lá para cima, diminuí o volume e, só neste instante, percebi que ainda não havia instruções para mim. 
Lá de baixo, a voz do Zuza: 
-Eustáquio, belo salto. 90 graus para a esquerda......prossiga assim. 
O rádio só permite a comunicação do instrutor para o aluno e as minhas esperanças de que o Zuza me indicasse pelo menos o aeroporto foi para as cucuias. E, naquele momento, somente o alvo interessava-me. 
-Pai, beleza de salto.....Parabéns; "tamos" aqui em baixo te esperando. Era o Alexandre, meu filho, pegando uma carona no rádio. 
Tudo em baixo estava confuso porque a pista do aeroporto era de terra/grama e se misturava com a vegetação local. O asfalto, a rodovia e, paralelo a ela, o aeroporto. Identifiquei a pista, o hangar, o estacionamento dos carros e os meus pontos A, B e C. O alvo passou a ser unicamente questão de habilidade no pouso. E nisso, tinha a certeza, o Zuza não me deixaria falhar. 
Sim, agora entendia o temor do Amir Klink na sua viagem solitária da África até as costas brasileiras. A segurança básica reside em saber onde se está, onde se quer chegar, e quais os meios para realizar o feito. Nada me faltava. Do espaço via o meu alvo; nas mãos um pará-quedas ágil e dócil; no solo a biruta para indicar-me o sentido do vento e a minha garantia maior: O Zuza.
 -Eustáquio, 90 graus para a esquerda, para baixo, para cima, para o meio, para a beirada. Eustáquio, daqui a pouco o Adriano vai saltar e estarei falando com ele também. Preste atenção que direi sempre o nome primeiro, antes de passar as instruções.
Com tudo sob controle, podia curtir a minha relativa liberdade no espaço e a emoção do momento. Pratiquei o flair (freio) duas ou três vezes e isso provocava aumento de pressão sobre os tirantes das pernas. O contrário acontecia quando os batoques eram aliviados e suspensos, O freio  era liberado e a sensação era de que o corpo estava em queda livre momentanea. Um frio percorria a espinha dorsal e, pelo vento na cara, pelo barulho do vento no slider e pelo arfar das bordas de fuga do velame, sabia que desenvolvia velocidade. Girei várias vezes para a esquerda e direita fazendo ziguezague para perder altitude e já me sentia até dono do nariz, não fosse o Zuza lá em baixo.
E graças a Deus aquele santo estava lá, porque em nenhuma vez consultei o altímetro; nem me dei conta que o tinha comigo. Não me lembro de ter ouvido comandos de pouso para o Fernando. Ouvi os comandos do Adriano e já me aproximava do solo, sem olhar para a biruta, a 1.000 pés suponho, e o Zuza atento:
-Eustáquio, estica os braços...90 graus à esquerda....90 graus a esquerda....preparar para o pouso....FLAIR. Pousei com suavidade mas ao tocar o solo não senti as pernas e desequilibrei-me levemente para o lado direito.
Algumas palmas, ouvi gritos abafados de meus filhos e notei que estava meio surdo. Apertei as duas narinas, comprimi ar na cavidade nasal e agora sim, .....tudo bem.
Recolhi e abracei-me ao pará-quedas e, depois de cumprimentar e informar ao Zuza a minha dificuldade com o rádio, aguardei o pouso do Guilherme e do Adriano. Juntamo-nos com o Fernando e, num informa/pergunta/responde coisas de toda a ordem, nos dirigimos para o hangar.
Meu sinho estava realizado.
Na noite deste dia de domingo, como fazemos costumeiramente, rezamos em família pontualmente às 19:30 horas.
Aproveitei a oportunidade e falei mais ou menos assim para os meus filhos:
-Hoje realizaei meu sonho de saltar de pará-quedas e a Cristiane também. Quero lembrar os motivos pelos quais estou saltando e porque permito que vocês saltem.
Primeiro, porque acho o pará-quedismo seguro; segundo, porque a vida tem mesmo que ser vivida com um pouco de adrenalina. Por último, quero lembrar-lhes que cada um é dono de sua vida e tem de cuidar dela. As normas de segurança não podem ser negligenciadas.
Nesta noite, ao contrario da noite anterior, não dormi bem e na segunda-feira não consegui me concentrar no serviço. analisei as coisas assim:
A) se no momento em que estava sob as asas do avião o Dr. José Celso, presidente da empresa onde trabalho, passasse em outro avião e me reconhecesse. certamente ligaria imediatamente para o outro sócio, Dr. Fernando, e diria assim :- Fernando, acabo de ver o Eustáquio sob as asas de um avião, tirando fotografia. Está piradinho de Silva. Cancela aí, agora, a procuração dele.
B) Aprendi que a euforia paralisa e cega, tanto quanto o temor e o medo. No meu salto convivi com esses dois extremos e a verdade é que muita coisa importante passou despercebida. Não consegui sequer saber a cor do velame de meu pará-quedas; dúvida que permaneceu até que as fotografias do pouso fossem reveladas;
C) É muito fácil nos prendermos nas coisas ruins do que nas coisas boas. Todos os meus temores mostraram-se infundados. Embora conscientemente, soubesse que tinha segurança absoluta e que, na minha retarguarda, havia uma equipe competente dando-me suporte e garantias, fui prender-me justamente nasi coisas banais;
-O vento na porta do avião, não era maior do que quando se coloca a cabeça para fora da janela de um carro a 80 quilômetros por hora;
-Não se salta do avião para o solo. Neste tipo amador de salto, acredito que, no máximo em 20 metros, o pará-quedas já esteja totalmente aberto;
-Não tive problema com turbulência, linhas e nem com o rádio; identifiquei claramente o meu alvo e naveguei e pousei com extrema facilidade;
D) Já não vejo a imensidão dos ares tão misteriosa e distante. Sei que, melhor do que o piloto do avião, como pará-quedista, posso toca-la e até navegar nos seus braços desnudos e lassos;
E) As alturas normais do dia a dia tornaram-se muito pequenas. Moro no sétimo andar de um edifício e tenho a impressão que o solo está ao alcance de minha mão. Preciso até ficar atento para não cometer asneira;
F) A estatura e fragilidade física de minha filha contrasta com sua coragem e personalidade. Com o pará-quedas de 13 quilos, nas costas, alguem observou que ela lembrava uma tartaruguinha. Era uma verdadeira "Avis-Rara";
G) Concluí que a minha vida tem sido mesma de um pára-quedista. Vim do campo, depois da cidade pequena e tive que aventurar-me na cidade grande sozinho e sem dinheiro. Sem tradição, fazer engenharia foi o mesmo que mergulhar, sem pára-quedas num abismo desconhecido. Enfrentei rugido de "motores" e ventos fortes e, para furar na vida, tenho levado batocadas de toda a natureza e já dancei twist, samba e lambada. Creio até que ui o criador da dançad da garrafa que essa turma nova de baianos reivindica para si.
Uma pena que na minha trajetória não tive Guilhermes e Zuzas para me instruir e direcionarme nas horas dificeis. Certamente teria encurtado a estrada e os erros teriam sido incosequentes e menores. Mas também, aí já é de abusar; é querer demais.
Agradecimentos aos instrutores Guilherme, Zuza e Alex, do Avis Rara; Piloto "Killer"; Guto, pára-quedista e mestre na arte de dobrar pára-quedas e ao André, instrutor da Stratus.
Agradecimento especial para MArluce, minha mulher, que aguardou resignadamente, uma notícia qualquer de seus malucos aventureiros
 
 
 
 
José Eustáquio dos Reis
Belo Horizonte - MG
 
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