História


A Visão do Estrangeiro, dois viajantes europeus em São Gonçalo

O inglês John Luccock e o francês Augusto de Saint-Hilaire figuram entre os europeus que no século XIX visitaram São Gonçalo, deixando diários que muito contribuem para o conhecimento da antiga Freguesia numa época em que a produção literária, além de muito restrita, voltava-se quase que exclusivamente para os assuntos da Corte.

Com relação ao inglês John Luccock, que não era um cientista, mas sim um comerciante inteligente, dotado de uma cultura fora do vulgar, é interessante dizer que permaneceu entre os brasileiros durante dez anos (1808 a 1818) período superior ao da permanência de Saint-Hilaire que por aqui ficou de 1816 a 1822.

Vale a pena transcrever um trecho das anotações de Luccock que dá ênfase principalmente ao caráter hospitaleiro do povo gonçalense.

Diz ele que tendo ali chegado em hora adiantada de uma tarde, sem outra recomendação além do conhecimento ligeiro de um senhor do Rio, que possuía uma propriedade nas redondezas e cujo nome teria citado por acaso, acabou tendo pouso da noite fixado em uma miserável venda e o seu companheiro já tratava de tirar o melhor partido dos confortos ao seu alcance, quando um homem singelo se apresentou dizendo que os acompanhassem à casa do patrão, que ficaria desapontadíssimo se um inglês necessitasse de acomodação em São Gonçalo, quando sua casa ainda não estava cheia. "Não era preciso muito argumento para nos levar a trocar de residência - diz Luccock - rapidamente mudamos nossos cavalos e jantar, cuidaram dos primeiros na varanda", suprindo-os amplamente de rama de mandioca; quanto a nos, de pouco careceríamos, além do abrigo. Ofereceram-nos comida, semelhante à que em geral se fornece ao leitor dos escravos das fazendas, permitindo-nos, porém, como de costume, que arranjássemos coisa melhor à nossa custa."

"Cedo, na manhã seguinte, a fim de agradar ao 'feitor', como por aqui lhe chamam, embora com certo incômodo para nós outros, fomos ter à fazenda, concontrando-a em excelente ordem, com boas safras de mandioca, milho, abóbora, melância e feijão. As árvores frutíferas, embora pequenas ainda estavam sob boa direção; todas elas haviam sido sabiamente enxertadas, estando vários experiências em curso, em que se utilizam os ramos de uma fruta e os galhos ou brotos da outra."

"De passagem por São Gonçalo, por outra ocasião, com um amigo, paramos a uma porta que vimos aberta para pedir um gole d'água, refrigerante que sempre um estrangeiro pode rogar alguém que possua. Veio logo um convite amável a que apeássemos e nos aproveitássemos da sombra por algum tempo, coisa que gratamente aceitamos. Uma hora transcorreu em alegre prosa, quando então se aproximou o momento do jantar e de tal forma conosco instaram cortezmente a que dele partilhássemos que nos não restaram maneiras de recusar. Cerca de dez pessoas se achavam à mesa, todas elas plantadores abastados ou pequenos sitiantes. Em tais companhias o estranho mais proeminente é geralmente posto à cabeceira da mesa, com o dono da casa muitas vezes sentado próximo e a dona por detrás deste, em pé, a fim de dirigir os criados em suas obrigações. Cada prato que se traz é passado ao estranho, que dele se serve, servindo também freqüentemente aos demais: ninguém, contudo, principia a comer, antes que aquele dê exemplo. Se acontecer de recusar qualquer dos pratos, geralmente ele volta intacto.

Diz Luccock que pela manhã surgiram cavalos a fim de os levar ao local onde haviam emprazado as canoas a que os fossem esperar e escravos para lhes levarem a bagagem. "A hospitalidade é virtude comum entre os brasileiros, mas com as classes superiores de "ilhéus", conforme chamam os povos das ilhas ocidentais, é ela exercida de maneira e amplitude amáveis."

"Depois de deixar São Gonçalo, a região se faz acidentada em sua superfície, descendo suavemente em direção das campinas de Guaxendiba, para cuja produção abundante a capital proporciona um mercado lucrativo e permanentes", conclui o viajante inglês.

Enquanto John Luccock estava mais interessado nas vantagens comerciais que o nosso país pudesse oferecer, o botânico Augusto de Saint-Hilaire para cá viera estritamente com objetivos científicos. Em suas numerosas, extensas e demoradas viagens pelo nosso país, fez preciosas coleções, especialmente de plantas e animais. Todavia, não se limitou, em suas observações, ao campo das ciências naturais. Coligiu inúmeros dados importantes para a geografia, a história e a etnografia.

Na parte histórica as informações de Saint-Hilaire se fundamentaram nas já citadas "Memórias Históricas do Rio de Janeiro", de autoria do Monsenhor Pizarro, transcrevendo trechos e mencionando dados estatísticos antes de fazer observações sobre as plantações de cana-de-açúcar, cultivo do café e do milho, procurando quase estabelecer uma analogia com a agricultura das terras de Minas Gerais.

"- À medida que se distancia da Capital ou dos portos que para ela conduzem as pequenas culturas devem naturalmente diminuir, e, demais, além de São Gonçalo as terras tornam-se melhores; ali comecei a ver algumas plantações de cana e disseram-me que há muitas outras nas vizinhaças. Garantiram-me também que, nos terrenos mais adequados, a cana dura algumas vezes 12 anos e mesmo mais; o que prova como essa região quente, baixa e úmida é mais favorável à cultura dessa gramínea que as regiões elevadas do interior de Minas Gerais. Também se cultiva o café nos arredores de São Gonçalo; para plantá-lo são escolhidos os lugares mais sombrios, e ele produz, bem disseram-me, do outro lado das colinas que limitam a estrada. O milho, que tive ocasião de ver, era pequeno e raquítico; supondo que a terra não é aqui bastante rica para essa planta; mas há uma vantagem que não se tem na Província de Minas; pode-se fazer duas colheitas do "Trigo da Turquia" por ano. Este cereal necessita de umidade para se desenvolver, motivo pelo qual somente uma vez se pode colher suas sementes nos lugares onde há uma longa estação seca; e isso não se dá nas regiões planas e pouco elevadas, vizinhas do Rio de Janeiro, pois que, sob um clima muito quente, uma alternativa de bom tempo e de chuvas deve necessariamente manter a vegetação em constante atividade".

Como o leitor pode observar o botânico francês é detalhista e muito bem informado sobre a produção agrícola de São Gonçalo, não deixando de fazer observações sobre o desenvolvimento da então Freguesia, sempre procurando estabelecer comparações com Minas Gerais.

Um dos mais belos patrimônios da arquitetura brasileira se encontra em São Gonçalo, não foi à toa que a Fazenda do Colubandê foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Conheça um pouco mais sobre ela aqui. Para voltar ao índice de História, clique aqui.



Bibliografia:
São Gonçalo - Salvador Mata e Silva e Osvaldo Luiz Ferreira - Editora Belarmino de Mattos - 1993. - CDD-372.8909815.

Revista Municípios do Brasil - Setembro/89, Agosto/90 e Setembro/95 - J.E.F. Editora Cultural Ltda.

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