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Governo Novo em Bissau
Sábado, 20 de Fevereiro de 1999

Dos nossos enviados, Pedro Rosa Mendes (texto) e Manuel Roberto (fotos), em Bissau

FotoA Guiné recebe hoje um Governo novo. Francisco Fadul toma posse de um país do avesso. «Só há mortos e abutres nesta cidade». Bissau lavou-se um pouco. Mas a destruição abrange os bairros. A capital «perdeu o direito ao sonho». Só Umurú tem a chave do futuro: foi desmobilizado por loucura.

Umurú tem uma doença mental mas o Exército não reparou nisso e incorporou-o no início da guerra. Demoraram meio ano a constatar essa incapacidade e só há duas semanas o deixaram sair da Marinha, onde funciona o quartel-general das forças lealistas. Umurú está agora num cruzamento do Bairro de Belém. À sua volta, há ruas, bairros, uma cidade de zinco rebentado e janelas entaipadas, uma capital que esconde a destruição sob o calor porque os buracos das telhas escondem a explosão que houve lá dentro.

Todos circulam em desordem neste sítio e apenas Umurú, louco suposto, tem a chave do que se passa: aponta os dias num caderninho de escola. «Hoje é sexta, amanhã é sábado». Na Guiné, toma hoje posse um novo Governo. Nesta data, só uma certeza existe: «A seguir a sábado colocarei o domingo».

Francisco Fadul, primeiro-ministro indigitado, e os seus nove ministros do Governo de Unidade Nacional (GUN), estarão ao meio-dia no Palácio da República. Com a caução de um juramento prévio e de um discurso posterior, esses dez homens tomarão posse do país de Amílcar Cabral. A Pátria de Umurú. Uma terra do avesso.

«A Guiné nunca existiu. Um país não é o hino, não é a bandeira. Se Cabral voltasse agora à vida, faria tudo para que não acontecesse uma guerra assim», comenta o realizador guineense Flora Gomes, numa incursão guiada pela cartografia dos bombardeamentos. «Todos nós somos mortos. Andamos, falamos, mas somos mortos porque Bissau perdeu o direito até a sonhar».

Belém, Ajuda, Chão de Papel, Irak, Bisseque, Cupelon - as ruínas convivem com o seu disfarce, a destruição tapa-se de ruído e de presenças em algumas zonas centrais, como a Estrada do Aeroporto ou o Bandim, onde os comerciantes voltaram, transbordando para as faixas descendentes que entram na capital.

Mas há zonas minadas, soleiras sem ninguém sentado ao fim da tarde, ou franjas mais pobres, que sempre foram a «linha da frente» - um lugar assustador, inconstante - onde as marcas do conflito são mais óbvias. E há o engano: casas com duas, três pessoas à porta, jogando cartas, ouvindo rádio, fazendo nada, pessoas que estão ali em guarda, em nome das dez que faltam porque morreram, ou porque continuam entre as dezenas de milhares de refugiados em localidades periféricas.

«Bissau não sabe nada desta tragédia, qual é a culpa que estás a pagar, Bissau?», cantava ontem à tarde Vanda Baidjo, no dancing Tropicana, um dos que abriu para dar à cidade a imagem possível da normalidade. «As pessoas com fome, com doença, as minas no caminho, os ladrões a roubar, o sofrimento é grande». O tema, escrito durante a guerra por um compositor de Bafatá, termina em esperança: «Pelo caminho da paz, vamos».

O treinador lavou a rua

Estará limpa a estrada por onde os convidados para a posse do GUN descerão do aeroporto, controlado desde Junho pela Junta Militar, e Bissauzinho (o centro da cidade), também desde o início controlado por «Nino» Vieira e os lealistas. O treinador da selecção guineense de futebol, Martinho José Lima, começou anteontem ao fim do dia a tirar pás de esterco da vala central da Estrada do Aeroporto. A guerra, esta mais que outras, é uma acumulação de lixo: ontem à tarde, Martinho e os outros sete «voluntários» ainda não tinham acabado.

Mas tudo estará pronto, quer dizer, um pouco melhor: soldados senegaleses removiam, de véspera, centenas de sacos de areia que erguiam barreiras de controlo nas vias principais da cidade colonial; carregaram-nos no mesmo camião gigantesco, cor-de-laranja, que, quinta-feira à noite, devolveu à Marinha uma carga de «Jambaar» que estiveram na formatura de despedida mas que não embarcaram com o primeiro contingente senegalês a sair da Guiné-Bissau.

Por aí descerá a delegação portuguesa, chefiada pelo ministro Jaime Gama, com vários elementos dos Negócios Estrangeiros e a companhia de um ex-secretário de Estado de Durão Barroso, Luís Sousa Macedo. Macedo preside actualmente à associação empresarial portuguesa ELO e estará no GUN para avalizar e averiguar o papel de Portugal na reconstrução guineense. Com Jaime Gama, numa posse em trânsito - o ministro veio de Angola - aterra no Aeroporto Internacional e encerrado de Bissalanca o secretário executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, o angolano Marcolino Moco.

Um prisioneiro na cela

No Palácio, quatro discursos: Moco, o seu homólogo da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental, Francisco Fadul e, enfim, o Presidente «Nino». Haverá optimismo e o restante traje exigido, segundo o programa oficial: «Fato escuro, tradicional ou vestido longo». Mas ao meio-dia começará uma aventura difícil. «Enquanto houver fronteira, não haverá governação. Com o país dividido, o mandato do GUn será simbólico», analisa Manuel Rambout Barcelos, deputado da oposição, dirigente da União para a Mudança (UM), ex-ministro de «Nino», ex-PAIGC.

«A paz passa pela saída dos senegaleses. Enquanto isso nao se cumprir, não estará garantida, ou pode existir quando muito uma paz podre até à paz definitiva», comenta o deputado. Manuel Rambout Barcelos explica outras reservas: «O GUN ainda não tem programa e não sei se terão capacidade para definir um programa de transição, porque o Governo vai ser de transição, não vai ser de unidade».

Outros meios, como a diplomacia, são menos cépticos.O embaixador português, Francisco Henriques da Silva, faz a soma simples dos sinais positivos: uma «força expressiva» da ECOMOG no terreno; o primeiro encontro «Nino»-Mané em solo guineense, domingo passado; o encontro seguinte de ambos em Lomé; e a própria posse do Governo. «Tenho um optimismo mais consistente. Há dificuldades mas também existem condições».

Francisco Fadul, na Guiné do avesso, reside por segurança no cenário irreal da Central de Energia do novo aeroporto - dorme no chão, entre metralhadoras, sacos de arroz e uma sala de geradores onde voam andorinhas. Chefia cinco ministros escolhidos pela Junta e quatro pelo Presidente, todos civis e quase todos principiantes em governação, onde os quadros de reconhecida competência estão em maioria. É também um governo com poucas filiações partidárias - há um militante do PAIGC - mas com muitas simpatias - com a União para a Mudança, por exemplo.

Um horizonte mínimo - e, segundo alguns observadores, lúcido - do mandato de Fadul poderá passar pelo retomar do funcionamento do Estado (em paralisia completa), a normalização dos salários da Função Pública e a recuperação da actividade económica. Ambições maiores que essas poderão redundar em nada.

Um homem, talvez mais que outros, estará atento ao mandato de reconciliação que hoje vai ser prometido no Palácio: Iaia Dabó, irmão de Baciro Dabó (director da Segurança de Estado) e o mais importante dos três prisioneiros (oficiais) da Junta. Está na cela número 1 da prisão na Base Aérea de Bissalanca. Era comandante lealista da frente de Nhacra e foi preso a 4 de Janeiro. É acusado de vários crimes, incluindo violação e roubo, o que ele negou ontem ao PÚBLICO, numa entrevista sem algemas. «Sem liberdade de Iaia não há paz»

«Nesta cidade só há mortos e abutres», resume Flora Gomes. Um morto, que não anda nem fala, depende do êxito do GUN para ser enterrado: D. Settimio Ferrazetta, bispo de Bissau. Faleceu há um mês. «Agora já vimos demais», explica o padre Vicente, administrador apostólico. «Só será enterrado quando todos puderem vir a Bissau e assistir ao funeral».

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