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Manifestação pela paz, com a Guiné suspensa da retirada das tropas estrangeiras
O Pedreiro Tirou Férias de Refugiado
Por PEDRO ROSA MENDES, em Brá
Terça-feira, 16 de Fevereiro de 1999

D. Settimio espera, embalsamado, que lhe dêem campa. Lembraram-se dele na manifestação pela paz: "Honra e glória ao nosso bispo." Ussumane viu passar os cartazes em frente ao dormitório. Fez férias de pedreiro na Pontinha: tornou-se refugiado na Guiné.

FotoUssumane Mané, pedreiro da Pontinha, Lisboa, está de férias no seu país desde Agosto, mas chegou a Bissau e tinha a casa desfeita pelas bombas. Há seis meses que vive na Estrada de João Landim, à saída de Safim. As férias habitam a contingência da guerra: a casa tem duas divisões. Na de Ussumane, dormem 40 pessoas, apenas dez da sua família; na outra, 25. No amontoado de colchões, são quase tantos como os que lhe passaram ontem à porta: uma manifestação "da sociedade civil" contra a guerra e a favor da paz.

A manifestação começou na saída norte de Safim, a uma vintena de quilómetros da capital, e atravessou a pequena localidade onde se acumulam 46 mil pessoas nas condições de Ussumane, refugiados de guerra. "Precisamos de paz, não precisamos de guerra", "Não esqueçam as crianças, futuro da Guiné" e outros "slogans" óbvios mas inevitáveis despontavam da pequena manifestação, formada sobretudo por crianças. A manifestação foi organizada pelo Movimento da Sociedade Civil para a Paz, Democracia e Desenvolvimento, que integra, por exemplo, a Liga guineense de Defesa dos Direitos do Homem, as missões católicas e a Cáritas.

O grupo percorreu várias estações da via sacra guineense: um jovem agonizando, sentado, já sem ver nada, com o esqueleto mapeado na pele, à porta de uma palhota; um quadrado de metro e meio de altura, feito de blocos soltos como um castelo de lego, telhado com ramos, cheio de refugiados; as tendas na berma; os vendedores senegaleses que fugiram do Mercado do Povo e acampam comércio no cruzamento da igreja.

Ussumane sente-se estrangeiro: ele é fula e está abrigado em casa de um papel (o grupo a que pertence o Presidente "Nino" Vieira). O pior é a falta de privacidade. O pior não é a rapariga deficiente no colchão do canto, quieta, de que não sabem o nome, "tem meningite desde há muito". Nem a senhora que transpira de malária no mesmo colchão que uma bebé de um ano, que não é sua filha mas de quem ela toma conta, já que tem de estar deitada. O pior, para Ussumane, não é a adolescente que tomou o banho da tarde e tenta aproveitar a escuridão da casa (há apenas uma janela para as 40 pessoas) para se cobrir dos olhares de homens que foram parar ao mesmo dormitório que ela.

O melhor, para Ussumane, é não ter de pagar o alojamento, nem a água. "A comida é que não está suficiente. O resto não se paga. É só solidariedade e harmonia." Nos primeiros dias do conflito, em Junho de 1998, um terço da população guineense tornou-se refugiada no interior. Se não fossem as famílias de acolhimento, teria havido uma tragédia. E Ussumane, passeando uma magnífica túnica branca, sabe que foi um milagre não ter havido cólera em casas como a sua. "Graças a Deus."

O pedreiro da Pontinha acompanha cinco vezes por dia as rezas dos modestos "muezzin" de Safim. Um homem que vestia branco comprido, como ele, mas de outra religião, tentou acabar com a guerra e morreu nela. A manifestação de ontem lembrou-se: "Honra e glória ao nosso bispo, D. Settimio." O bispo, que morreu no fim de Janeiro, tornou-se o mais bizarro dos refugiados da Guiné: o seu funeral ainda não se realizou porque os combates recomeçaram a 31 de Janeiro. O corpo, entre a morte e o repouso, espera pela campa a meio da catedral de Bissau, embalsamado dentro de um caixão.

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