Adriana Maria de Vasconcelos Feijó Promotora de Justiça |
PODER ESTATAL E CONSTITUIÇÃO* Adriana Maria de Vasconcelos Feijó Ao analisarmos o texto PODER ESTATAL E CONSTITUIÇÃO de autoria do eminente jurista alagoano Pontes de Miranda, integrante de sua obra Comentários à Constituição de 1946, verificamos que ao reconhecermos no povo o foco do poder estatal, nos Estados constituídos de forma democrática, encontramos um forte liame entre a vontade do povo e a daqueles que irão representá-lo nas casas legislativas, uma vez que localizamos no primeiro (povo) o cerne de todo o poder do Estado, já que a efetividade da norma de Direito é concretizada com sua observância pelos seus destinatários, devendo para isso ser um reflexo da realidade, necessidades e aspirações da sociedade a que se destina. Com a teorização do poder constituinte (teoria da legitimidade do poder), que surgiu no final do Séc. XVIII, apareceu posteriormente a idéia de que existiam duas categorias de pensamento político a saber, o povo e a nação, surgindo daí várias discussões atinentes à legitimidade do poder constituinte. Entretanto, cumpre ressaltar que o poder constituinte sempre existiu em toda sociedade política, ao passo que somente à partir do Séc. XVIII e em virtude do Iluminismo, do Contrato Social e do pensamento anti-autoritário do Racionalismo francês é que surgiu a teorização desse poder. Outrossim, a superioridade da Constituição abordada no texto supracitado encontra-se no fato de que estando a mesma destinada a organizar a estrutura do Estado, repartindo os poderes dos órgãos estatais, regulando a produção das demais normas e as relações do indivíduo com o Estado, deverá está no topo do ordenamento jurídico de um Estado (PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO), distribuindo juridicidade e constitucionalidade àquelas leis que estejam em posição hierárquica inferior, desde que compatíveis com o texto constitucional. É a Constituição que irá fundamentar a ordem jurídica de um Estado, encontrando-se por esse motivo no vértice do sistema jurídico, apoiada no supramencionado princípio da supremacia da Constituição do qual decorre a rigidez constitucional, ou seja, a maior dificuldade para se proceder a modificação do texto constitucional, pois iremos localizar nesse texto "as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas". Temos assim uma supremacia formal. Quando afirmamos a imutabilidade relativa da Constituição, estamos defendendo que a forma de se alterar o texto constitucional requer um procedimento especial, diferenciado daquele previsto para as demais normas jurídicas de categoria infraconstitucional. Porém, mesmo sendo a Constituição a norma responsável pela estrutura e organização do Estado, jamais poderemos aceitar que seja imutável (no sentido de imutabilidade absoluta), porque a própria sociedade cujas relações irá disciplinar, é por sua natureza mutável, não podendo ser engessada ainda que seja pelo texto de sua lei maior. O que se busca com isso é apenas um mecanismo para impedir ou dificultar que manobras políticas momentâneas, possam pôr a baixo através de uma simples lei ordinária, uma Constituição elaborada e promulgada como reflexo dos anseios sociais de um Estado. No que pertine a substituição de uma Constituição por outra (ab rogação), seja em razão de um movimento revolucionário popular ou de forma preestabelecida, deverá ser sempre responsabilidade de um poder constituinte originário, revestido dos caracteres da inicialidade, autonomia e incondicionalidade.
Inicialidade no sentido de que cabe a esse poder a elaboração da lei que irá ser a base do novo ordenamento jurídico, impondo idéias novas muitas vezes completamente diferentes daquelas anteriormente existentes retirando, por conseguinte, a vigência de toda legislação infraconstitucional que se apresente incompatível com a nova ordem constitucional por ele criada (revogação de toda legislação infraconstitucional que seja incompatível com a nova Constituição). Apenas a legislação que seja compatível com a nova ordem constitucional deverá subsistir, devido a imediata incidência das normas constitucionais (PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DAS NORMAS COMPATÍVEIS), entretanto, com uma nova significação devido a mudança ocorrida no sistema jurídico do Estado.
Autonomia no sentido de que o poder constituinte originário não se subordina a nenhum outro poder, podendo decidir qual a idéia de Direito que será implantada, o que equivale a ilimitação do poder constituinte originário (aspecto positivista). Todavia, há alguns aspectos que não poderão deixar de ser levados em consideração por esse poder, como os direitos que antecedem o próprio Estado, os direitos originários da natureza humana (Direito Natural), as normas de Direito Internacional, fatores metajurídicos, valores morais, entre outros (aspectos axiológicos / políticos), bem como os imperativos lógicos.
Incondicionalidade no sentido de que o poder constituinte originário não se curva a qualquer condição ou forma, pois conforme adverte Gabriel Ivo, "Não existe uma forma posta previamente que o vincule na sua expressão, seu desenho será traçado conforme forem os desígnios da conjuntura política". Quanto ao fato de que mesmo com a substituição da Constituição por outra as leis ordinárias que não conflitarem com a nova Constituição não serão revogadas, isso se deve a aplicação do princípio anteriormente citado da continuidade das normas compatíveis, desde que novos princípios incompatíveis com os anteriores não venham a ser implantados pelo novo texto constitucional, pois nesse caso haverá a prevalência desses novos princípios sobre as leis ordinárias advindas da ordem jurídica anterior, quando iremos constatar o "corte às leis inconstitucionais" citado por Pontes de Miranda no texto ora analisado. Algumas vezes, mesmo com defeito de técnica de conteúdo, mas com o intuito de garantir uma maior segurança jurídica, alguns princípios de Direito Penal, Civil ou Administrativo v. g., são consagrados no texto constitucional. Trata-se de uma abordagem formal da Constituição, já que muitas vezes as Constituições têm inserida em seu corpo matéria de mera aparência constitucional, mas que na realidade assim se designa tão-somente por está inserta no texto constitucional e não por dizer respeito aos elementos básicos ou institucionais da organização política de um Estado, isto é, não dizem respeito à forma de Estado, à organização ou estrutura da sociedade política. Esses princípios só prevalecerão, no caso de substituição da Constituição por outra, se não forem incompatíveis com a nova ordem jurídica imposta pela Constituição nova, devido à supremacia desta, de tal sorte que nenhuma norma ou princípio pode subsistir validamente se for incompatível com a Constituição. Ademais, esses princípios não mais estarão revestidos daquela segurança anterior quando encontravam-se no texto constitucional, passando a ser um simples princípio de Direito Penal, Civil ou Administrativo, conforme o caso, uma vez que a ordem constitucional tende a aceitar as normas e princípios anteriores à sua vigência quando sejam com ela compatíveis. Por oportuno, transcreveremos o posicionamento de Luís Roberto Barroso para quem "A regra geral de que a nova Constituição revoga inteiramente a ordem constitucional anterior não é incompatível com certas situações peculiares de subsistência de regras constitucionais precedentes". Todavia, esse aproveitamento legítimo das normas constitucionais integrantes do regime anterior, compatíveis com o novo sistema, é realizado através da DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (perda do caráter hierarquicamente superior) conforme demonstramos, devido ao fato de que muitas vezes o constituinte ao buscar - em razão da forma mais difícil de reforma da Constituição, distinta da forma utilizada para a feitura da lei ordinária o disciplinamento pelo texto da Constituição de matérias estranhas a mesma, o faz para encobri-las com uma maior garantia jurídica (FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE MATÉRIAS NÃO CONSTITUCIONAIS). Essas matérias pelo princípio da continuidade da legislação continuarão a existir, pois a revogação da Constituição não equivale necessariamente a revogação da legislação infraconstitucional anterior desde que compatível, conforme já salientamos. Leis que existiam anteriormente e não conflitam com a nova Constituição, continuam em vigor. Por fim, cumpre ressaltar escorada nas idéias defendida pelo douto Gabriel Ivo que um outro ponto importante - e decorrente da inicialidade do poder constituinte originário já analisado - é que ao revogar a Constituição anterior, o poder constituinte originário faz com que a mesma perca sua vigência por completo, substituindo a ordem constitucional até então em vigor e instaurando uma nova idéia de Direito, já que "Não pode haver, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, duas Constituições". Diante disso, não poderá haver aproveitamento de uma parte ou de todo o texto constitucional revogado (ainda naqueles pontos que não foram tratados pela nova Constituição), na condição de lei ordinária FENÔMENO DA DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO. Normas constitucionais revogadas não são reaproveitadas como lei ordinária da nova ordem jurídica implantada, uma vez que a matéria que regulavam não foi considerada pela nova Constituição. Além disso, "A única maneira de haver desconstitucionalização é a sua expressa previsão" ( in Manual de Direito Constitucional; Miranda, Jorge, Tomo II, p. 274, apud Gabriel Ivo). É 8ª Promotora de Justiça de Arapiraca, integrante da equipe de promoção, proteção e defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência e idosos, do 1º Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Alagoas. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA: A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL - COMPETÊNCIA PARA A ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO MEMBRO Ivo, Gabriel, Editora Max Limonad, São Paulo, 1997. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL Bonavides, Paulo, Malheiros Editores, 7ª edição, São Paulo, 1997. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO Silva, José Afonso da, Malheiros Editores, 10ª edição, São Paulo, 1995. DIREITO CONSTITUCIONAL Canotilho, J. J. Gomes, Editora Coimbra. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO Barroso, Luís Roberto, Editora Saraiva, São Paulo, 1996. INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Gusmão, Paulo Dourado de, Editora Forense, 13ª edição, Rio de Janeiro, 1989. |