ADRIANA MARIA DE VASCONCELOS FEIJÓ |
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA E MUNICIPALIZAÇÃO DAS AÇÕES. A IMPORTÂNCIA DOS CONSELHOS DE DIREITOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS. ADRIANA MARIA DE VASCONCELOS FEIJÓ * Ao verificarmos que hodiernamente fala-se muito sobre a descentralização das ações a nível federal, estadual e municipal, objetivando a implantação de políticas nas áreas de saúde, educação e ação social entre outras, com a participação da própria comunidade, dispusemo-nos a escrever estas linhas. Entretanto, registramos que não temos a pretensão de esgotar o tema, mas apenas contribuirmos para o debate. De início, cabe destacar que no atual momento histórico as políticas públicas no Estado brasileiro têm suas bases operacionais fixadas no município. Por essa razão, a sociedade civil, através de entidades legalmente constituídas, deve assumir a iniciativa de apontar o método adequado de aplicação e desenvolvimento das diretrizes das políticas de atendimento traçadas no âmbito municipal, estabelecendo as diretrizes básicas desse atendimento de acordo com as peculiaridades locais, num verdadeiro exercício de cidadania. Cidadania que compreendemos tratar-se de uma prerrogativa de participação do indivíduo na organização e no funcionamento do Poder Público, já que o respeito aos direitos sociais das chamadas "minorias" ou hipossuficientes, é responsabilidade do Estado, da família e da sociedade. Contudo, vale gizar que essas minorias na verdade apresentam-se quantitativamente como maioria da população brasileira e apenas sob o ponto de vista da partilha do poder é que cabe falar em minorias. Outrossim, ao falarmos em cidadania incontinenti lembramos do processo de democratização que felizmente vem atingindo o Estado brasileiro, ainda que a passos lentos, razão pela qual trazemos à colação uma passagem lapidar retirada da vasta obra de Norberto Bobbio, onde o mesmo pontificou que a democratização equivale ao "exercício de procedimentos que permitem a participação dos interessados nas deliberações de um corpo coletivo", sendo que nas democracias mais adiantadas, a participação política de cada cidadão encontra-se "incluída numa esfera muito mais ampla da sociedade em seu conjunto e que não existe decisão política que não esteja condicionada ou, inclusive, determinada por aquilo que acontece na sociedade civil". O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA OU PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR na formação e no controle das políticas públicas, inserto na Carta da República de 1988 (art. 204, inc. II) e na legislação infraconstitucional, tem por escopo possibilitar a tomada de decisões pela população, sob o argumento de que é no cerne da comunidade que iremos obter um diagnóstico confiável e preciso dos problemas sociais. É a própria comunidade que está verdadeiramente apta para decidir sobre suas necessidades, prioridades e a melhor forma de se empregar o erário. Dessa modo, verificamos que esse princípio permite o aprimoramento do processo democrático no Estado Democrático de Direito. Demais disso, não se deve perder de vista que a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, como também a promoção do bem de todos, dentre outros (art. 3º da CR/88). Portanto, ao reconhecermos a participação popular na formulação e controle das políticas públicas, estamos assegurando ao cidadão o poder constitucionalmente estabelecido de cobrar, na via administrativa ou na via judicial, o cumprimento dessas políticas e a efetividade dos objetivos fundamentais supracitados. É através dessa cobrança que o cidadão participante pode exigir da autoridade em situação irregular, que a mesma haja acertadamente no que pertine ao rumo das políticas públicas. Ademais, no atual momento histórico não se pode negar que a participação do cidadão na tomada de decisões sobre as políticas públicas representa um avanço da democracia neste país, razão pela qual, aumentando o campo de considerações, não é supérfluo rememorarmos o magistério da ilustre Tânia da Silva Pereira, que afirmou trata-se de algo prioritário "a incorporação do setor privado ao esforço de retomada do desenvolvimento econômico e social, permitindo ao Estado mobilizar toda a sua energia, capacidade gerencial e recursos materiais na tarefa de promover a melhoria da qualidade de vida da população". Diante disso, o texto constitucional e a legislação infraconstitucional prevêem a participação democrática da comunidade na formação de vários conselhos federais, estaduais e municipais, com poderes deliberativos e fiscalizatórios, sendo esses conselhos formados por igual número de representantes de órgãos governamentais e organizações não governamentais (ONGs), tais como associações, entidades filantrópicas, clubes, sindicatos etc., que possibilitam a intervenção da sociedade civil, através de entidades legalmente constituídas, nas decisões coletivas. Podemos citar como exemplos os conselhos da ação social, criados pela Lei n.º 8.742, de 07.12.93 (Lei Orgânica da Assistência Social), conselhos da saúde, criados pela Lei n.º 8.080, de 19.09.90, conselhos da educação, criados pela Lei n.º 9.394, de 20.12.96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), conselhos da criança e do adolescente, criados pela Lei n.º 8.069, de 13.07.90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e conselhos dos direitos dos idosos, criados pela Lei n.º 8.842, de 04.01.94. De outra parte, se analisarmos nossas bases históricas verificaremos que no Estado brasileiro foram registrados como precedentes dos atuais conselhos de direitos os "conselhos populares", surgidos na década de 80, que representaram um início de participação na gestão das cidades; os "conselhos comunitários", que surgiram inicialmente em São Paulo e corresponderam ao início da participação autônoma e concreta da sociedade civil nas políticas públicas locais e o Conselho de Administração da Saúde Previdenciária, com competência para organizar e aperfeiçoar a assistência médica naquela década. Portanto, os conselhos de direitos, como já afirmamos acima, são órgãos deliberativos não consultivos e controladores das ações governamentais em todos os níveis. Esses conselhos deverão indicar ao órgão executor secretaria de saúde, secretaria de educação, secretaria de ação social etc. -, com base em estudos e levantamentos das carências sociais registradas no seu âmbito de ação, a necessidade de se suprir ou restaurar essas carências com prioridade. E ainda, caso essas metas não sejam observadas pelo órgão executor, caberá ao conselho de direitos comunicar ao Ministério Público tal fato, para que o mesmo adote as providências legais cabíveis, fazendo uso dos mecanismos legais disponíveis para defesa do direito violado. Todavia, os conselhos de direitos não são responsáveis pela execução das diretrizes que apontaram, uma vez que essa tarefa cabe aos órgãos governamentais responsáveis por sua implantação e execução no âmbito de suas políticas sociais básicas. Vale ressaltar que à luz dos princípios constitucionais, ao afirmarmos que os conselhos de direitos são deliberativos queremos com isso dizer que os mesmos possuem competência para tomar decisões, formulando, aprovando ou rejeitando os projetos aos mesmos encaminhados. Quanto ao seu caráter de órgão controlador das ações em todos os níveis, assim são entendidos por atuarem de forma ampla, após a fixação das diretrizes governamentais. Já no que diz respeito à participação paritária, significa que todo conselho de direitos é composto por igual número de membros representando o Poder Público preferencialmente na área da saúde, educação, ação social etc. - e a sociedade civil. Neste ponto encontramos o caráter de freio ao arbítrio e contrapeso ao desvio da norma legal, enquanto mecanismo de equilíbrio imposto pelas normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito, fundado nos princípios da igualdade, legalidade e inafastabilidade do controle judicial. Anote-se que, cada conselho de direitos deve ter como área de atuação a União, o Estado ou o município, conforme seja o mesmo federal, estadual ou municipal. Não poderá haver no mesmo espaço territorial mais de um conselho de direitos que verse sobre a mesma área de atuação, ou seja, no mesmo município não poderá haver mais de um conselho de direitos do idoso, por exemplo. À guisa de ilustração, podemos citar como exemplos de atuação dos conselhos de direitos as hipóteses de fomentação da conscientização da sociedade a respeito dos direitos e garantias relacionados a sua área de atuação, a divulgação desses direitos e garantias, a realização de um intercâmbio entre os órgãos governamentais e não governamentais, possibilitando uma política coerente, o acompanhamento dos casos de violações dos direitos, enquanto detentor de subsídios pertinentes a deliberações acerca das políticas sociais etc. É importante ressaltar que para o correto funcionamento dos conselhos de direitos, necessário se faz que os mesmos sejam compostos por pessoas assisadas, austeras, circunspectas e imunes a eventual figura do caudilho ou ao humor politiqueiro do momento, pessoas conscientes acerca do âmbito de sua atuação, da situação político-social da população local e dos mecanismos de atuação. Esses conselhos devem ser integrados por organizações não governamentais atuantes no âmbito das atribuições do conselho respectivo, adotando atitudes descentralizadoras, participativas e articuladoras, com maior legitimidade das decisões tomadas, pois não podemos olvidar que o objetivo primordial dessa mudança de postura do legislador pátrio foi justamente visando garantir a concretização dos direitos sociais reconhecidos pela atual Carta da República, que é considerada como uma Constituição de cunho social. Daí a idéia de que ouvindo-se a comunidade local e garantindo-se o exercício de seu direito de fiscalizar, verificaremos a implantação das políticas públicas num concreto exercício da cidadania. Destarte, com a experiência de várias décadas em que a determinação das ações surgiam de forma decrescente, partindo-se do mais alto escalão dos poderes constituídos para desaguar naquela comunidade mais primária de nossa sociedade, sem nenhuma noção da realidade social peculiar a cada região deste país e ainda atento às mutações da sociedade, o legislador brasileiro verificou que a inversão desse processo ocasionaria a criação de ações voltadas para a realidade concreta de cada comunidade e o erário passaria a ser empregado priorizando as necessidades locais, tendo como agente fiscalizador direto pessoas e entidades que participam do processo social. Com esse novo modelo, o cidadão passa a ser um participante do processo social e não mais um mero espectador. No que pertine ao PRINCÍPIO DA DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA, insculpido no art. 204, inc. I do texto constitucional de 1988, tem o mesmo arrimo na autonomia das unidades federadas - Estados e municípios -, reconhecendo a estas unidades a possibilidade de criar os entes organizacionais que mais se adeqüem à cultura política e às peculiaridades do local. Nesse contexto, à União cabe apenas a responsabilidade de fixar normas gerais e coordenar administrativa e politicamente essa descentralização, enquanto aos Estados e municípios cabe a responsabilidade de coordenar e executar os programas sociais. O princípio da descentralização é um princípio constitucional norteador do ordenamento jurídico, como podemos verificar ao realizarmos uma leitura sistemática dos dispositivos constitucionais contidos nos arts. 60 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que trata da educação; 198, inc. I, que trata da saúde; 204, inc. II, que trata da assistência social; 227, § 7º, que trata da criança e do adolescente. Assim, com a implantação desse novo modelo que procura substituir a verticalidade centralizadora das decisões pela horizontalidade descentralizadora, com a articulação institucional e a participação da comunidade representada por entidades legalmente constituídas, as decisões, coordenação e controle das ações passam a ter um caráter condizente com a realidade local. Tocante ao PRINCÍPIO DA MUNICIPALIZAÇÃO DAS AÇÕES, contido no art. 204 do documento constitucional de 1988, tem o mesmo por base a idéia de que as soluções devem ser encontradas na própria comunidade, com a participação do cidadão que vivencia a realidade local e ainda, no fato de que na gestão autônoma das políticas sociais, o município assume as decisões atinentes à infância e juventude, à terceira idade, ao portador de deficiência, à saúde, à educação etc., fixando os programas sociais que deverão atender aos mesmos, cabendo aos conselhos de direitos a fixação das políticas sociais, uma vez que irão deliberar a respeito daquelas políticas bem como sobre a aplicação dos recursos financeiros, conforme já salientamos. Dessa forma, escorada no entendimento de Wilson Donizeti Liberati e conforme demonstramos nas considerações até o momento elencadas, concluímos com a certeza de que o segredo operacional da aplicabilidade das diretrizes de atendimento está na participação da sociedade civil, integrada pelos seus diversos segmentos, numa construção do ideário da cidadania responsável. Esse é o consectário engendrado pela dinâmica social que tem o mérito de modificar infaustas, antigas e ultrapassadas instituições como a do poder centralizador que nascia na esfera federal e tinha no município a ponta do sistema, na maioria das vezes totalmente alheio à realidade local e a seus escolhos. * 12ª Promotora de Justiça de Arapiraca/AL, integrante da Equipe de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência e do Idoso, do 1º Centro de Apoio Operacional do Ministério Público de Alagoas. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA: BOBBIO, Norberto: Estado, Governo, Sociedade Para Uma Teoria Geral da Política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 7ª edição, 1999. CURY, Munir et alii (coords.): Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado Comentários Jurídicos e Sociais. São Paulo: Malheiros Editores, 2ª edição, 1996. FIGUEIRÊDO, Luiz Carlos de Barros: Temas de Direito da Criança e do Adolescente. Pernambuco: Editora Nossa Livraria, 1997. LIBERATI: Wilson Donizeti: Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. MANZINI-COYRE, Maria de Luordes: O Que é Cidadania. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, n.º 250, 2ª edição, 1997. PEREIRA, Tânia da Silva: Direito da Criança e do Adolescente Uma Proposta Interdisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1996. |