Ambiente Medieval

A Idade Média, considerada desde o Romantismo a época mais importante na formação da civilização européia, caracteriza-se por valores culturais de inspiração clássica, mas subordinados a finalidades éticas e religiosas, isto é, cristianizados. Assim, embora os autores clássicos sejam lidos e estudados - filósofos, oradores e poetas, tais como Aristóteles, Cícero, Sêneca, Virgílio e Ovídio -, as suas obras são selecionadas e adaptadas à nova mentalidade, de inspiração cristã, a qual só assimila os valores culturais adequados aos princípios morais e religiosos por que se rege. E a estrutura hierárquica que domina a sociedade medieval abrange também a cultura, em que o estudo da Teologia ocupa o primeiro lugar, pois o ideal de vida do homem medieval é essencialmente teocêntrico. Nesta época, o mundo divino constitui a verdadeira realidade: assim se explica a visão do universo em dois planos, expressa através do alegorismo, que interpreta o mundo terreno como símbolo de espírito e do sobrenatural. Os primeiros centros difusores da cultura medieval são os conventos, onde o latim, língua da Igreja e língua culta por excelência (adotada por todas as pessoas letradas, abrangidas pela designação de clercs ou clérigos), serve de veículo à cultura monástica ou médio-latinística, expressa por meio de obras religiosas, morais e filosóficas, e também por uma poesia de amor idealizado, que muito deve à retórica clássica. Mas na Idade Média surge também uma cultura em língua vulgar que, refletindo a atmosfera cavaleiresca, aspira a um novo ideal e afirma um conceito de vida já inteiramente alheio aos valores religiosos: a escola poética provençal. Nesta época a cultura é essencialmente transmitida por via oral: pregação dos monges, leitura escutada da Bíblia e, de livros religiosos e profanos, canto litúrgico, poesias cantadas por trovadores e jograis. Os santuários, onde convergiam os peregrinos, vindos dos mais diversos pontos do mundo cristão, e as capelas, centro de romarias locais, podem considerar-se o foco de irradiação dessa cultura oral, predominantemente em língua vulgar ou romanço. Assim, de acordo com o dualismo lingüístico que a caracteriza, a Idade Média define-se por dois tipos de cultura, que coexistem e por vezes se influenciam, mas que permanecem fundamentalmente alheios, como dois mundos opostos: a cultura laica ou profana, transmitida oralmente, em língua vulgar; a cultura monástica, escrita e erudita, inicialmente só expressa em latim, mas adotando depois a língua vulgar em traduções. A primeira, divulgada pelo canto nas romarias ou peregrinações e nas cortes dos reis e dos grandes senhores, é constituída por composições em verso, líricas e sátiricas, abrangidas sob a designação de poesia trovadoresca.

Uma Nova Religião, Nova Música

Foi a propagação da religião cristã, partindo de um culto local na Judéia e transformando-se na fé aceita em todo mundo ocidental, que provocou o desenvolvimento da música européia. O cristianismo surgiu como um ramo do judaísmo, tendo conseqüentemente sua música origem, em parte, no canto judaico (os cantores da sinagoga tinham um serviço extra aos domingos, além do sábado judeu), mas também na Grécia clássica via Roma imperial.
Quando o imperador Constantino proclamou o cristianismo como religião oficial do Império Romano, no ano 325 d.C., a música litúrgica também foi influenciada pelos dialetos dos locais onde a nova fé lançava suas raízes, incorporando elementos de origem tradicional, sagrados e profanos. Não decorreu muito tempo até existirem inúmeras variantes da música de culto cristã.
O Rito Ambrosiano (chamado depois de Santo Ambrósio, viveu no século IV), que ainda é praticado no Norte da Itália, deu a outros ritos o princípio das
antífonas, que são um cantochão entoado sob a forma de responsos, a dois coros, ainda hoje chamados decani e cantoris, nas catedrais e igrejas. Na França havia o Rito Gaulês; na Espanha, a música litúrgica era dominada desde os primórdios do século VIII pelos mouros-cristãos, e em Constantinopla florecia o Rito Bizantino.

Sofisticação e Complexidade

A música sacra tinha com freqüência feito uso de hinos com palavras sem grande significado (a Aleluia hebraica é um exemplo particularmente antigo). Se era fácil aprender e recordar melodias quando cada sílaba do texto tinha a nota correspondente, era muito mais difícil quando a cada sílaba eram atribuídas várias notas. Assim os textos de hinos foram ampliados com mais palavras ou frases no sentido de transformar um canto particularmente bom em outro realmente memorável (ao resultado assim obtido deu-se o nome de seqüência). Com o tempo, os hinos estabelecidos adquiriram novas seções intermediárias de texto e melodias: são conhecidos como tropos, e quanto mais diversificados se tornavam, maior era a necessidade de registrá-los para aprendê-los de cor.

Modos Gregorianos

A notação musical foi desenvolvida quando se tornou essencial, mais uma vez mostrando-se a necessidade mãe da invenção. Perto do ano 600 d.C., o papa Gregório, o grande, determinou que fossem sistematizadas as variações da escala, ou modo musical, habitualmente usadas na música litúrgica cristã. Identificou-as utilizando as letras do alfabeto, como ainda hoje é feita com a notação moderna das pautas, e deu-lhes um nome a partir de designações gregas antigas já ligadas à diferentes escalas. Estas ficaram conhecidas como modos gregorianos e sobrevivem no cantochão sagrado católico romano. O serviço religioso católico, as completas e as missas solenes realizadas para celebrações da Igreja têm muito do cantochão gregoriano e são um prazer para o ouvido - música sacra na sua forma mais pura e simples.
Com o decorrer do tempo, os compositores acharam os simples modos gregorianos muito pouco elaborados, desprezando-os por vezes em proveito das escalas diatônicas, formadas por tons e semitons. Agora os tons podiam ser registrados utilizando-se letras, embora nem sempre fosse óbvio se o intervalo de uma para outra era ascendente ou descendente, sem mencionar o fato de algumas notas deverem ser cantadas mais rapidamente que outras. Alguns músicos, tentando fornecer um máximo de informações acerca da escrita musical, utilizaram sinais de acentuação e letras para identificar a nota de maior duração.

 

Harmonias Paralelas

Atualmente, quando duas pessoas cantam em conjunto, a segunda voz cantará as segundas, repetindo a melodia a uma distância de três notas (uma terça), acima ou abaixo. No século IX surgiu um livro intitulado Música Enchiriadis descrevendo a música cantada e/ou tocada em três partes distintas, mas simultâneas: primeiro a melodia, depois uma duplicação da melodia em oitava (por exemplo, soprano com tenor) e, por fim, a terceira voz intermediária, fazendo a duplicação na quarta ou na quinta superior ou inferior. Essa forma de canto harmônico era designada organum, talvez devido ao fato de a voz ser então acompanhada por um órgão, cuja utilização tinha até esse momento sido abolida da música cristã, do mesmo modo que os outros instrumentos, por serem reminiscências da música romana pagã. Porém, essa duplicação trazia seus problemas, e muitas vezes os cantores tinham de encobrir tremendas justaposições com pequenas alterações.

Notação Musical

A possibilidade de um cantor fazer uma modificação errada deve ter acelerado o aparecimento de uma notação musical mais sofisticada. Sabe-se que, por volta do ano 871, um monge que vivia perto de Tournai, no Norte da França, escreveu os textos gregos e latinos da Glória cantando na missa católica, e sobre o texto grego traçou vários sinais indicando a altura, a duração e o acento tônico. São chamados neumas (designação proveniente da palavra grega que significa inclinação ou sinal). Derivavam de vários protótipos bizantinos e durante o Século X começaram a ser vulgarmente utilizados na França, Alemanha e Inglaterra, tornando-se um material de notação capaz de fornecer diretivas amplas e precisas para a execução musical.
Em 1504, o ramo bizantino do cristianismo desligou-se da influência romana. Tornou-se o Rito Ortodoxo Grego e associou-se a outras músicas orientais, preservando uma imutável adesão à melodia tradicional, que não viria a ser alterada nem substituída. Somente os rituais cristãos europeus, desenvolvendo sua identidade musical, necessitaram que sua música, cada vez mais complexa, fosse passada à escrita.
Algum tempo depois, em Limoges, novecentos monges incluíram em seu serviço pascal um interlúdio chamado
Quem Quaeritis, em que as três Marias visitam o túmulo de Cristo e conversam com o anjo que lhes diz que Cristo "não está aqui; Ele subiu aos céus". Era cantado em Latim por um coro de quatro elementos que também atuavam na representação. Há um livro sobre a produção teatral da versão representada e cantada em Winchester, Inglaterra, c. 970. Outros dramas religiosos foram acrescentados aos serviços eclesiásticos em ocasiões próprias, formando um elo entre o drama grego clássico e as primeiras óperas italianas da Camerata florentina, em 1600.
Essas pequenas peças musicais sacras devem ter sido associadas à óperas profanas, que podem ter sua origem nelas. A igreja nunca apoiou a vanguarda artística, mesmo nos tempos áureos, mas estava sempre pronta a pedir emprestada uma boa melodia ao diabo, como afirmou séculos mais tarde Martinho Lutero. Infelizmente, nenhuma das óperas profanas até a
Representação de Robin e Marion foi escrita. Robin e Marion é uma comédia pastoril francesa com canções de Adam de la Halle (c. 1237-1288), que se encontrava a serviço de Carlos de Anjou - quer dizer, trezentos anos depois do Quem Quaeritis.

Os Trovadores

Grupos de poetas-músicos que floreceu no sul da França, em uma região chamada Provença, no começo do séc. XII. Acredita-se que os trovadores podem ter calcado seus versos líricos em obras de poetas árabes da Espanha e de clássicos romanos como Ovídio. Tanto a música secular, como os longos poemas épicos do século XI, as canções de gesta (canções sobre feitos de uma pessoa histórica ou lendária), as cantigas das Cruzadas (a partir 1096) e as cantigas dos trovadores parecem todas monofônicas - composições poéticas sem acompanhamento musical. Não se tem conhecimento de qualquer música para canções de gesta, mas documentos antigos levam a pensar que os versos eram todos cantados no mesmo tom e que alguns tons já poderiam ter existido nas melodias litúrgicas. Por vezes, devem ter sido acompanhadas por algum instrumento. A música, como as mercadorias e novas idéias de todos tipos, percorreu as principais rotas comerciais; mercadorias e maneiras vieram da Itália à França passando pela Alemanha; a música secular dos trovadores foi em direção oposta, aclimatando-se lentamente aos costumes alemães, assim como percorreu também a rota dos cruzados. A maioria desses poemas celebravam os feitos de Carlos Magno e outros heróis. Muitos estudiosos acreditam que os monges escreveram a maior parte das canções de gesta para glorificar os fundadores e/ou mantenedores de seus mosteiros. As canções de gesta constituíram um ciclo de poemas, dos quais A Canção de Rolando é o mais famoso. Um segundo grupo de poemas chamados romances corteses (romances da corte) desenvolveu-se junto com as canções de gesta. Tratavam de temas de amor, de magia e cavalaria. Chrétien de Troyes, que escreveu aproximadamente de 1160 a 1190, é o mais conhecido dos autores de romances corteses. Ele tentou combinar os ideais guerreiros das canções de gesta com uma nova atitude romântica em relação à mulher. Freqüentemente, baseou-se nas lendas do rei Artur. O poema narrativo mais importante da literatura francesa da Idade Média é o Romance da Rosa, uma alegoria em duas partes. Guillaume de Lorris, que viveu no início do séc. XIII, escreveu a primeira parte antes de 1250, e Jean Meung (1250-1305) escreveu a segunda parte provavelmente 50 anos mais tarde. A primeira parte constitui um manual do amor cortesão. A segunda parte ataca os males sociais da época. O Romance da Rosa deu início a um tipo de filosofia moral que reapareceu mais tarde nas obras de Rabelais, Molière e Voltaire.
As canções de amor eram as mais importantes entre as ricas e variadas formas poéticas usadas pelos trovadores. Nelas, o poeta imaginava a dama de seus sonhos como um modelo de virtude, e dedicava seu talento a cantar-lhe as qualidades. O ideal amoroso dos trovadores e o enaltecimento das mulheres influenciaram muitos escritores posteriores, entre os quais Dante e Petrarca.
A literatura romântica criou de um trovador modesto (cuja língua era o provençal, a langue d'oc) e de seu colega, o trouvère (trovador do Norte da França, que compunha em langue d'oeuil), cantando suas trovas acompanhadas por um alaúde ou instrumento semelhante. A evidência histórica não confirma esta idéia. A trova que Ricardo, Coração de Leão, ele próprio um trouvère, compôs no cativeiro em Dürnstein mostra que a Arte de Trovar era uma vocação aristocrática. Um trovador particularmente famoso foi Bernard de Vendadorn, que Eleanor de Aquitânia levou consigo para Inglaterra quando se tornou mulher de Henrique II e mãe de Ricardo, Coração de Leão.
Na Alemanha, por volta de 1180, os trovadores designavam-se a si próprios Minneesänger - ou seja, cantores do amor - mas do amor cortês, separado do amor físico. Suas trovas sobreviveram graças à sua expressão melodiosa (muitas vezes inspirada na dos trovadores). Um dos trovadores mais conhecidos era Walter von der Vogelweide (c. 1170-1230), retratado na ópera romantica de Richard Wagner, Tannhäuser (1845), uma história sobre trovadores e seus torneios musicais. Muitas canções e obras literárias relatam as façanhas dos trovadores. Um romance de sir Walter Scott, O Talismã, conta a história de Blondel, o trovador favorito de Ricardo, Coração de Leão, rei da Inglaterra. Outro aristocrata de grande importância para difusão das atividades dos trovadores, sendo ele mesmo um deles, foi Afonso X, O Sábio ou Alfonso, El Sabio, rei de Castela (Toledo 1221 - Sevilha 1284). Foi imperador germânico (1267- 1272). Notável pelo incentivo aos empreendimentos culturais. Escreveu em galaico-português cerca de 30 cantigas inseridas nos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional; são na maioria, poemas satíricos de conteúdo moral e político. Os quatrocentos e vinte poemas musicados que escreveu, denominados Cantigas de Santa Maria, chegaram-nos em dois códices, um do Escurial e outro de Florença, ambos com belas iluminuras.

A Carreira Musical

A música elegeu para si própria uma padroeira, a mártir Santa Cecília, do século II, que entoava hinos enquanto era queimada viva num caldeirão sobre carvões em brasa. Apesar de sua padroeira, a música continuou a ser uma carreira de homens, talvez até 1600 quando apareceu Francesca Caccini, a primeira compositora famosa. O músico secular era também um nobre, como o duque de Arquitânia ou o rei Ricardo I, da Inglaterra, ou ainda um jogral itinerante, inteligente mas inculto, ou um simples trabalhador que cantava enquanto trabalhava, inventando, talvez, as cantigas à medida que lhe ocorriam.
Um rapaz musicalmente dotado esperaria por uma carreira primeiro como corista, quer da corte quer da Igreja, o que no fundo era a mesma coisa. Se fosse descoberto cedo o suficiente, receberia uma educação esmerada em todos os domínios, mais especialmente em música. Era sua única oportunidade de tornar-se um músico profissional, tocando, cantando ou compondo.
Muitas vezes, para prolongar sua carreira, fazia-se monge - o celibato não era impossível; alguns músicos mantinham-no, o que não era difícil com uma mestra tão exigente como Santa Cecília. Não surpreenderá, no entanto, verificar que nem todos os monges respeitavam estritamente seus votos. O mosteiro dos beneditinos, na Baviera, possui uma coleção de cantigas do século XII, denominada
Carmina Burana, muito ligada à bebida, à dança e ao amor. Muitas dessas cantigas eram compostas pelos goliardos, ou estudantes de vida irregular que deixavam o mosteiro e partiam.
O emprego como músico de igreja não impedia a composição profana; sem a nomeação para a capela de uma corte ou fundação eclesiástica, nenhum músico plebeu podia aspirar ao sucesso.
 

O Pentagrama - Guido d'Arezzo

Um músico assim era o monge Guido, mestre de coro da Catedral de Arezzo na Toscana e encarregado do coro da escola por volta de 1030. Conhecendo certamente os progressos musicais, e sendo ele próprio um músico inventivo, concebeu um sistema para aprender música de ouvido. Descobriu uma melodia profana, hino que os meninos cantores entoavam a São João, para que os protegesse da rouquidão, cada linha da qual começava com uma nota mais aguda que a anterior. Associou à melodia a um texto sagrado em Latim, cuja primeira sílaba de cada linha podia dar o nome de cada nota da escala musical. Em seguida, fixou cada mnemônica num esboço da mão humana:  

Ut queant laxis
Resonare fibris
Mira gestorum
Famuli tuorum
Solve polluti
Labi reatum
Sancte Ioannes

Cuja tradução é: Para que nós, servos, com nitidez e língua desimpedida, o milagre e a força dos teus feitos elogiemos, tira-nos a grave culpa da língua manchada, São João.
Cada articulação da mão de Guido foi associada a um intervalo da escala, de tal modo que os meninos do coro de Arezzo sabiam exatamente qual nota deveriam cantar: Guido afirmava que assim se poderia aprender música em apenas alguns dias, em vez de levar várias semanas. Solfège ou solfeggio (solfejo), como o sistema ficou conhecido, foi rapidamente adotado pelos estudantes de canto para a memorização de exercícios vocais. Durante o século XIX, o sistema de Guido foi adaptado para transformar-se no sol-fá tônico dos nossos dias, e usado para ensinar não-músico a cantar música coral. Foi nessa época que alguns tons foram reformulados de modo a facilitar o canto. Ut tornou-se dó, sa tornou-se te (em francês si).
Guido d'Arezzo também escreveu bastante acerca do novo sistema de notação usando uma pauta com várias linhas, onde o fá e o dó eram especialmente assinalados com tinta colorida para marcar o tom. A mão de Guido e seu sistema depressa floreceram e encorajaram outros compositores a fazer música mais elaborada e interessante.
Em meados do século XIII, a sutileza da organização musical era de tal ordem que exigia um novo e mais preciso método de notação para traduzir a duração extra de cada nota, bem como as pausas intervenientes. Linhas e compassos estavam ainda por ser inventados, mas a métrica musical encontrava-se já dividida em
perfeito, três tempos (ligados à Santíssima Trindade e, por isso, mais adequados à música de igreja), representado por um círculo, e imperfeito, dois tempos, representado por um semicírculo como um "C". A igreja discordou do "C" e recomendou o "O". Em termos modernos, as valsas vienenses estavam na moda e as marchas, não. As danças populares sempre preferiam "O", mas os hinos anglicanos e os coros luteranos estão mais próximos do "C". Há sem dúvida exceções e combinações - por exemplo, a jiga no compasso de 6/8 (a melodia Lilliburlero é um exemplo conhecido). A moderna notação em claves aguda e grave ficou definida somente em 1600 e, desde então, tem-se desenvolvido nitidamente - quer dizer, até os tempos modernos.
 

Polifonia

As comparações entre músicas de diferentes culturas proporcionam perspectivas esclarecedoras; o que aconteceu com a música ocidental na época das Cruzadas foi fundamental. Não foi nada menos do que a criação da polifonia, música para mais de uma parte ou voz, que levaria inexoravelmente à criação da harmonia e intensificaria a necessidade de um sistema de notação adequado. Talvez essa evolução esteja ligada à necessidade de se fazer ouvir individualmente e não como uma massa, ou à descoberta de que os interiores de pedra das igrejas amplificavam a voz e lhe davam mais ressonância. A mudança começou imperceptivelmente, de início, com as vozes em uníssono na oitava, acomodando diferentes faixas de baixo e tenor, de contralto e soprano. Depois, era acrescentada uma terceira voz, cantando no intervalo de uma quinta acima da voz mais grave. Com certeza isto era mais do que mera conveniência. A harmonia aberta simples tinha uma clareza austera, penetrante, como os harmônicos ressonantes dos monges tibetanos. Não foi tão grande o salto dessa harmonia simples para a idéia de começar em uníssono, separando-se da quarta ou quinta, e voltando a se juntar. E ainda assim o processo levou cerca de duzentos anos.
A prática era conhecida como
Organum, um termo extraído do latim, significando todo o corpo de recursos para fazer música - instrumentos e vozes. Parece provável que algumas dessas idéias tenham sido extraídas da música popular. De início, o Organum foi uma prática improvisada e o Cantochão ainda era ensinado como uma única linha. Foi precisamente por essa época que houve o cisma da Igreja Católica: a Ortodoxa Oriental, com base em Constantinopla, e a Católica Romana, em Roma. A tendência para a divisão há muito tempo se fazia clara, e quando a separação realmente ocorreu, em 1054, a Igreja Ortodoxa Oriental manteve a prática do Cantochão uníssono.
Um lugar fascinante para se acompanhar a mudança de som da música ocidental é a Espanha. Lá os Mouros tiveram supremacia durante várias centenas de anos, exceto no quadrante noroeste, cujo centro era a cidade de Santiago de Compostela. A tradição cristã sustentava que os ossos do apóstolo Tiago estavam enterrados lá. Os Mouros exibiam uma poderosa relíquia que possuíam - o braço direito mumificado de Maomé, para lembrar aos cristão espanhóis o poder islâmico. No século IX, o descobrimento do túmulo de São Tiago pareceu uma revelação enviada por Deus; embora a prova fosse discutível, o lugar imediatamente se tornou um ponto de peregrinação. O próprio Carlos Magno o visitou. Os fiéis chegavam às centenas de milhares. Seu avanço, saindo da França, da Inglaterra, dos Países Baixos, da Escandinávia, da Alemanha, era facilitado por hospedarias estabelecidas pelos monges do Mosteiro de Cluny, na parte centro-leste da França. Dizem alguns que esse reinado religioso de Cluny estendia-se a dois mil locais, mas é provável que o número esteja abaixo de 350 - o que ainda é um reino considerável para a Europa daqueles tempos -, e a rota de peregrinação para Santiago era sua espinha dorsal. Os cristãos passaram a acredita que uma visita a três lugares - Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela - assegurava permanência na eternidade. Um dos propósitos das Cruzadas, que tiveram início em 1096 d.C., foi a tomada de Jerusalém. Sua conquista ao fim de três anos causou um estremecimento de júbilo no Ocidente, especialmente entre os peregrinos de Santiago, que se tornou o local de inspiração nas guerras entre os cristãos e os mouros. Ao longo dessa rota ouvia-se uma imensa variedade de música, pois entre as pessoas de todas as partes da cristandade havia um intercâmbio de canções, cantos, danças. A catedral de Santiago foi erigida, destruída e erigida novamente.
A catedral que hoje se vê tem uma fachada do final do século XVII, ocultando a antiga entrada principal do século XII com seus arcos nobres. Lá encontramos um dos melhores exemplos do papel vital que a música desempenha na vida do povo e da igreja. No arco central, conhecido como Portico de la Gloria, acha-se gravado todo um instrumentário medieval. No ápice do arco há um primitivo instrumento de teclado portátil para dois executantes; um virava uma manivela e o outro tocava. Em outros pontos encontramos tocadores de viola e cordas dedilhadas, alguns parecendo transfixados por seus próprios sons. Curiosamente, não há instrumentos de sopro ou metais (a proibição contra instrumentos fazia-se valer de tempos em tempos). Essa música deve ter tido uma esplêndida ressonância nessa bela catedral, uma das mais antigas do Período Gótico, e com certeza ela foi enriquecida pela famosa escola de composição lá estabelecida na mesma época.
Foi também na Espanha que as três principais religiões monoteístas, todas originadas no Monte Sinai, se juntaram novamente, uma fusão que teve muito a ver com o som singular da música espanhola. Os mouros continuavam tolerantes para com todos os povos que haviam encontrado na Península Ibérica, porque não havia mouros em número suficiente para colonizar a área toda. Judeus e cristãos que não desejavam converter-se ao islamismo tinham permissão para continuar sem serem perturbados, embora os mouros habilmente exigissem deles um imposto especial em troca de sua tolerância. Os cristãos inconversos passaram a ser conhecidos como moçárabes, que pode ser traduzido como falsos árabes ou árabes imaginários. Sob a influência mourisca, sua antiga forma de cantochão tornou-se mais ornada e, muito depois que os mouros se foram, os moçárabes agarraram-se à sua tradição, resistindo a todas as tentativas para que se conformassem às práticas de Roma. Seu centro era a cidade de Toledo. Lá ainda se observa o rito moçárabes até os dias de hoje, na capela da igreja de Santa Maria la Blanca, pelas poucas famílias ainda remanescentes. Elas nos remetem ao tempo em que, há mais de mil anos, o mouro e o cristão aprenderam a viver lado a lado.
As Cruzadas foram mais do que um choque de espadas - foram um choque de culturas, artes e ciências. Quando os cruzados penetraram na África do Norte e no Oriente Próximo, entraram em contato com povos diferentes que seguiam sua própria tradição musical, e os cristãos se surpreenderam com a força dessa música. O instrumento de palheta dupla, a charamela, que desde então se desenvolveu dando origem ao oboé e ao fagote, lá florescia em uma grande diversidade de tamanhos e timbres. Alguns tinham o volume e a intensidade de um trompete, e a banda militar islâmica, com dúzias desses instrumentos, era capaz de produzir um som ensurdecedor e terrificante. Os muçulmanos eram um povo diversificado, unificado pelo islamismo, como o cristianismo havia unificado a Europa. Os mouros marroquinos, por exemplo, consideravam-se completamente distintos dos da Espanha, e no ano 800 d.C. já existia um bairro espanhol na velha capital marroquina de Fez, ocupada pelos mouros repatriados.
Não se pode reconstituir o espírito que animou os cruzados, do mesmo modo que não se pode sentir o esplendor que a música deve ter tido para os exércitos que voltavam para casa, nas grandes catedrais góticas francesas que se erguiam em Saint Denis, Laon e Chartres, e mais tarde nas da Espanha, em Burgos, Leon e Toledo.
Força subversiva foi a presença da música profana: a poesia lírica aristocrática dos
Troubadours, cantada nos castelos, e a poesia lírica popular, cantada nas aldeias.
Essa música foi, mais tarde, chamada de Ars Antiqua. Mas Antiga ela só é em relação a outra, posterior: Ars Nova. No século XIII, a Ars Antiqua era nova; é a arte que pertence à chamada
Renascença do século XIII, florescimento das cidades e construção das catedrais, vida nova nas Universidades, tradução de Aristóteles e de escritos árabes para o latim e elaboração da grande síntese filosófica de São Tomás de Aquino.
Houve, dentro do Coral Gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico, à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão rica matéria melódica, os
melismos que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor métrico da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma, recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus.
Os primeiros textos da Ars Antiqua foram encontrados na biblioteca da igreja de Saint-Marcial, em Limorges. Mas o desenvolvimento dessa nova arte realizou-se na Schola Cantorum da Catedral de Notre Dame de Paris. Registra-se a atividade de um Magister Leoninus. Mas o grande nome da Ars Antiqua é seu discípulo e sucessor na direção daquela escola parisiense por volta de 1200, Magister Perotinus; na história da nossa música, é o primeiro compositor que sai da obscuridade do anonimato. Várias obras de Perotinus encontram-se no manuscrito H196 da biblioteca da Faculdade de Medicina de Montpellier e no Antiphonarium Mediceum da Biblioteca Laurenziana em Florença.
A Notre Dame de Paris tornou-se o centro da música ocidental, quando a própria França passou a ser o foco da vida cultural da Europa medieval. Essa música tem a marca inconfundível da Europa, especialmente nos trabalhos dos dois primeiros compositores cujos nomes chegaram até nós - Léonin e Pérotin, que atuavam como mestres de música em Notre Dame entre 1150 e 1236. Sua prática do
orgamun constitui uma verdadeira revelação, como os raios do sol filtrados através do extraordinário vermelho e azul dos vitrais da catedral. Pela primeira vez, três e quatro vozes distintas podiam ser combinadas em partes que não eram improvisadas, mas sim o produto de um único artista criativo. As harmonias eram controladas por seu senso de compatibilidade de intervalos e condução de voz. Nessa música, os únicos intervalos regularmente tolerados eram a oitava, a quinta e a quarta. As terceiras e as segundas eram admitidas como perturbações momentâneas, ocasionadas por movimentos independentes das vozes. Em Organum para três ou quatro vozes, cada parte parece ter sido acrescentada separadamente sobre um Cantus Firmus, ou canto de acompanhamento, geralmente extraído do cantochão. Era mais importante que as vozes acrescentadas combinassem mais plenamente com o Cantus Firmus do que entre si.
O número de vozes distintas usadas no
Organum parece que estava relacionado à importância da ocasião no calendário eclesiástico, como por exemplo o trabalho a quatro vozes de Pérotin, longo e maravilhosamente elaborado, que começa com as palavras Sederunt Principes. Em tal música, uma única sílaba do Cantus Firmus pode ser mantida, por um minuto ou mais, como um suporte, enquanto as outras vozes elaboram os ornamentos. As cópias escritas da música de Léonin e Pérotin devem sua sobrevivência à sua fama, porque ela se estendeu para muito além de Paris. A Escócia, a Itália e a Alemanha têm sido as melhores fontes. Mas o trabalho de cópia deve ter sido feito pelos Monges Irlandeses, que se encontravam entre os mais capazes transcritores de música, e que eram recrutados já no tempo de Carlos Magno para as escolas capitulares no continente.
Notre Dame, portanto, não era um tesouro antigo; era a estrutura mais nova e mais alta de Paris, e suas duas torres podiam ser vistas por toda parte. Dentro da catedral não havia fileiras bem arrumadas de genuflexórios, mas palha e estrume de animais de passo lento, levados para dentro durante o frio do inverno por seus proprietários. Com o mal tempo, o mercado na praça em frente à igreja se esvaziava: compradores e vendedores procuravam abrigo e calor sob o teto do templo.
As regras para a música estabelecidas em Notre Dame baniram todos os intervalos, exceto os mais puros. Porém, ao mesmo tempo, longe dos esplendores de Paris, ouvia-se um outro som, o de vozes que se movimentavam em terceiras paralelas. Para a rigorosa mente eclesiástica francesa, essas harmonias eram bárbaras, um caminho certo para o diabo - ter-se-iam originado com as canções populares e, por isso, associavam-se ao carnal e ao sensual. Nas Ilhas Orkney, ao norte do território principal da Escócia, foi descoberta uma das mais antigas provas do uso de terças paralelas, o
Hymn to Saint Magnus, um santo padroeiro da região. Constitui um dos muitos indícios de que a prática tenha vindo da Islândia e da Escandinávia, onde as terceiras paralelas não eram proibidas. É provável que os Vikings tenham gostado de música cantada em terças paralelas, já na idade do ferro sua trompa de metal, o Lur, estava bastante disseminada. Provavelmente, os etruscos trouxeram para a área a arte de trabalhar o cobre, e as trompas metálicas em pares e grupos já eram conhecidas no início dos tempos romanos. Esses instrumentos têm bom som quando tocados ao intervalo de terças. Talvez isso tenha influenciado a prática musical na canção, particularmente depois da conquista da Inglaterra, no século XI, onde os duetos de todas as espécies eram populares, incluindo os instrumentos que se destinavam à dança. Os mestres de música ingleses foram os primeiros a declarar oficialmente que o intervalo de uma terça era aceitável.
Desse período vem um exemplo que continua sendo tão famoso e que ainda hoje é cantado, o célebre
Sumer Is Icumem In. Embora o manuscrito que o contém tenha sido escrito por volta de 1260, e o cânone tenha sido acrescentado duas ou três décadas mais tarde, a música é bem mais antiga e já era amplamente conhecida. As instruções medievais dizem que a peça deve ser cantada por quatro vozes, cada qual entrando em uma distância determinada, acompanhada por duas vozes mais graves e, provavelmente, reforçadas por instrumentos. A maioria das canções ou cânones podia ser prontamente transmitida ao ouvido, mas isto era muito difícil, e as variações melódicas muito sutis; era fácil perder o fio. Sumer tinha de ser escrito para garantir que os cantores a reproduziriam corretamente e, dessa forma, o ensino se tornasse mais fácil. Subsiste como uma obra-prima pela sua engenhosidade técnica e apelo imediato e, também, porque sua dificuldade representa um desafio. É preciso que se note algo crucial com respeito a essa canção: quando todas as suas vozes soam em conjunto, elas se mesclam em dois acordes alternados, que contêm a semente de algo extraordinário, o efeito mais poderoso que conhecemos na harmonia ocidental: a tensão estabelecida entre a nota tônica e o acorde que serve de porta que conduz a ela. É uma ironia maravilhosa o fato de uma das provas mais primitivas desta descoberta musical ter chegado até nós no manuscrito de uma canção popular. Em muitas áreas da evolução cultural o fato precede o registro; pode ser que a própria notação tenha detido o progresso harmônico, porque por muito tempo não conseguiu atender ao desafio de transcrever o que o ouvido aceitou imediatamente.
A polifonia parece ter sido uma arte norte-européia e o seu desenvolvimento em Compostela deve ter sido uma espécie de esporte. A mais antiga coletânea de obras de Compostela, o
Codex Calixtinus, é um volume de aparência muito moderna para o século XII, utilizando uma notação do cantochão em quatro linhas antes do seu uso universal; mas a grande maioria das obras que ele contém consiste em cantochão, e a mais famosa das obras polifônicas dele, o Congaudeant catholici, é atribuída a Mestre Alberto de Paris.
Manuscritos ingleses da época contêm obras importadas da França que serviam como modelos para os compositores ingleses, mas a música polifônica só apareceu mais tarde na Itália e na Alemanha.
A importância do desenvolvimento musical em Notre Dame pode ser avaliada pelo fato de que os seus líderes, Léonin e Pérotin, foram os primeiros compositores a saírem do anonimato, que era o destino natural do músico medieval, e mesmo assim conhecidos da posteridade por apelidos; cada nome é um diminutivo: Leãozinho e Pedrinho. Léonin atuou entre 1150 e 1180, e Pérotin provavelmente continuou a sua obra, ao que parece depois de começar como um dos integrantes do coro de meninos de Léonin, até cerca de 1230. Ambos trabalharam no que era então uma nova catedral, pois o edifício do coro da Notre Dame só foi concluído em 1183. Pouco se sabe sobre ambos, mas parece que Pérotin era subchantre, ou primeiro baixo, do coro da catedral.
A súbita atividade revolucionária dos músicos na França e Espanha durante o século XII é apenas parte de um desenvolvimento muito maior da vida intelectual européia. O comércio e a organização municipal mostram a influência das novas idéias e os modos progressistas de pensar; o peso e a solidez do estilo arquitetural conhecido na Bretanha como
normando ocasionou maior riqueza e requinte do gótico; floresciam a literatura e as artes fora da igreja; foram lançadas as pedras angulares da filosofia escolástica, não apenas por Pedro Abelardo, cujas idéias revolucionárias tanto quanto sua vida tragicamente escandalosa foram causa de sua perseguição pelos tradicionalistas, mas pelos filósofos europeus muito mais ousados na especulação que os mestres subseqüentes da escola. As universidades foram fundadas atendendo ao novo desejo de conhecimento, e por sua existência estimulavam o pensamento especulativo e novas idéias, não só em teologia e filosofia, mas também em música, que era parte do currículo normal da universidade em virtude de sua aliança com a teologia, como assunto prático, e com a filosofia, como ilustração matemática de idéias filosóficas.
De muitos modos o surgimento das cidades teve tanto efeito quanto o novo prestígio da música e estudo acadêmico da sua teoria. Nas cidades a música tornou-se uma necessidade social e cerimonial com a formação das bandas citadinas de guardas,
Standtpfeifer e Pifferi que tornaram a música instrumental mais popular e respeitável. Ao mesmo tempo, os cidadãos abastados davam cada vez mais dinheiro à Igreja para possibilitar parte de todo esse desenvolvimento.
Inevitavelmente, o tipo de música ouvido fora da Igreja começou a influir na música ouvida dentro dela. A introdução de instrumentos no culto levou o compositor religioso às técnicas, ritmos e estilos melódicos empregados na música secular. É certo que a música secular dos séculos XII e XIII, com seus ritmos dançáveis e os idiomas melódicos dos compositores de Limoges e Notre Dame, introduziram tanto falas como os instrumentos do mundo secular na Igreja; mas é impossível acreditar que o novo estilo tivesse saltado já plenamente desenvolvido para a liturgia.
Possivelmente
Sumer is icumen in projete alguma luz sobre a questão das influências populares nos primeiros dias da polifonia religiosa. A complexidade contrapontual de um cânon a quatro vozes sobre um baixo de apoio contínuo não era simplesmente a música de uma canção ligeira, mas hino cristão, o Perspice christicola, cantado na Abadia. Orientações em latim, anexas ao texto religioso, explicam como a semibreve deve ser cantada, sugerindo que os cantores do Convento de Reading não estavam familiarizados com um contraponto tão altamente desenvolvido. Mas o contraponto naquele grau de aperfeiçoamento não podia surgir plenamente evoluído sem ter um lugar de origem; perece que fora do Convento de Reading essas proezas técnicas não eram incomuns e que algumas pessoas tinham acesso a elas, e o ágil ritmo 12 por oito da canção não está tão longe das vivazes partes superiores escritas em São Marcial e Notre Dame.
A primeira mudança no sentido da liberdade na música religiosa deu-se mediante o
Conductus, que tinha um texto metrificado e era, como o seu título declara, música processional, influente por exigir música em notação compassada e vozes movendo-se juntas homofonicamente, e através das Clausula, nas quais um texto em prosa era musicado de modo cantochânico para tenor e duas ou três mais vozes que se moviam, não homofonicamente no mesmo ritmo, mas polifônica e livremente contra ela. A Clausula já era parte integrante de liturgia, mas o Conductus e o seu sucessor, o Moteto, eram acréscimos ao texto do ritual e podiam por isso ser tratados com maior liberdade pelo compositor. O Moteto, que se tornou a mais influente das formas musicais primitivas, aparentemente introduziu-se na Missa como acréscimo musical que se seguia ao Gradual. O Gradual era cantado, como o Cantochão sempre fora, por todo o corpo de cantores, ao passo que o Moteto era função de qualquer grupo de cantores preparados para executar a polifonia.
Naturalmente, o
Moteto tirou vantagem das liberdades implícitas em ser uma intromissão extralitúrgica e devocional no serviço. Não raro tinha um texto, ou pelo menos se referia a ele, usado na liturgia em outros contextos, de modo que tinha também um cantochão em seu teor como em sua base musical, mas evoluiu numa variedade de aspectos estranhos e objetáveis para os tradicionalistas. Ele admitia acompanhamento instrumental e juntava diferentes textos nas diversas vozes; havia Motetos nos quais quatro ou cinco notas de uma melodia cantochânica eram tudo de que o compositor precisava; era, em outras palavras, a mais fecunda e influente das formas que a Igreja medieval desenvolvera, e os desafios que oferecia levaram a considerável evolução da técnica. Essa a razão pela qual em pouco tempo se transferiu das salas de banquete da aristocracia e veio a se tornar uma forma secular e religiosa - não raro parecendo uma canção para solo vocal com as suas demais partes (vozes) polifônicas destinadas a instrumentos.
Isso não isentava o compositor do contato com as palavras essenciais da liturgia. Só era permitido ao compositor glorificar o serviço mediante acréscimos aos seus textos. Os
Tropos davam oportunidade ao escritor das Clausulae mas o prendiam de antemão a uma melodia cantochânica e ao texto que cresceu nela, de modo que, com o tempo, o Conductus e o Moteto mais livres foram mais promissores na evolução musical.
Embora o trabalho dos compositores fosse extralitúrgico, expunham-se aos invariáveis argumentos sobre o uso de música excessivamente complicada no culto. Quando o canto da Missa e dos Ofícios, relativamente cedo em sua história, ficou tão complicado que só cantores treinados podiam executá-los bem, as autoridades mais severas protestaram, alegando que a magnificência da música desviava a atenção das palavras do ritual, e observavam também que os movimentos, gestos e expressões faciais dos cantores ao cantarem música difícil eram, por sua vez, pouco edificantes e perturbadores da atenção.
A vitória da música sobre os seus detratores mostra-se pelo simples fato de que o refinamento do canto tornou-se costumeiro por toda a Europa. Quando os estilos musicais mais revolucionários irromperam na música religiosa nos séculos XI e XII, igualando pelo som o vigor e inconvencionalidade dos edifícios nos quais ela era cantada e a riqueza da decoração visual que eles admitiam, o espírito reacionário exprimiu-se vigorosamente.
A situação é difícil de esclarecer; enquanto a música harmoniosa, rítmica, compassada, e o acompanhamento instrumental se tornavam cada vez mais comuns, mesmo uma ordem religiosa tão severa como os
cistercienses - descendentes dos beneditinos e criada como protesto contra o que São Bernardo, seu criador, achava ser conforto e luxo da antiga ordem - observava em 1217 que em algumas de suas casas os monges estavam cantando música a várias vozes, e no século XIV permitia construção de órgãos em suas igrejas. Entretanto, já em 1526, o superior da Ordem na Inglaterra insistia em que a abadia em Thame parasse de cantar música polifônica. Nenhum edito do tipo mais tarde em vigor controlou a música cantada durante a liturgia; não, talvez, que as autoridades estivessem dispostas a tolerar qualquer coisa, mas porque a gama e variedade de práticas em uso nunca foram de todo apreciadas por quem pudesse achar necessário o controle. Portanto, enquanto vários fatos ocorriam, Aeldred, que era abade de Rivaulx em meados do século XII, protestou contra a música religiosa requintada em termos que encantaram o puritano William Prynne, que 500 anos depois os traduziu em vigoroso, robusto e admirável inglês de panfletista puritano:

Para que tem a igreja tantos órgãos e instrumentos musicais ? Para que fim, pergunto, esse terrível soprador de foles, exprimindo mais os estrondos do trovão que a suavidade da voz ? Para que servem a contração e inflecção da voz (...).
Enquanto isso, o povo conivente, tremendo e espantado, admira o som do órgão, o ruído dos címbalos e instrumentos musicais, a harmonia de gaitas e trombetas.

H. Davey. History of English Music. 1921 2ª ed.

John of Salisbury, erudito de reputação internacional no século XII, era também vigoroso em sua oposição às "enervantes execuções feitas com todos os artifícios da arte. Pode-se pensar em canto de sereias, mas não de homens, e fica-se espantado ante a facilidade dos cantores, de fato, incomparável com a do rouxinol, a do papagaio, com qualquer coisa existente de mais notável nesse tipo. (...) Em tudo isso, as notas altas ou mesmo as superiores da escala misturam-se de tal modo com as baixas e mais graves que os ouvidos ficam quase privados do seu poder de distinguir" [citado em H. E. Wooldridge. Oxford History of Music].
John de Muris, cônego de Paris e mestre da Sorbonne, falecido em 1370, era ainda mais ardoroso ao denunciar os excessos 200 anos depois, protestando com aparentemente excessiva violência contra o escândalo do que ele chamava, na terminologia da época, música "colorida":

O Magnus abuses! Magna ruditas! Nam inducere cum deberent delectationem adducunt tristitiam (...) Mihi non congruis, mihi adversaris, scandalum tu mihi es; utinam taceres; sed deliras et discordus.

Apesar de tudo isso, a intromissão de música estranha ao cantochão no tratamento das próprias palavras litúrgicas, diferentemente de acréscimos extralitúrgicos ao texto do ritual, não parece ter seguido qualquer norma estrita e não foi automaticamente sujeita a censura pelas autoridades. Os queixosos cujas palavras foram utilizadas para representar a atitude conservadora não eram, afinal, autoridades musicais ou administrativas; exprimiam apenas objeção de ordem pessoal, embora influente, de religiosos, a algo de novo que achavam ser uma degradação do real propósito do culto. Em muitos lugares a música polifônica, como o Moteto, insinuou-se no serviço entre as seções da liturgia, porém as grandes obras dos compositores de Notre Dame eram não só litúrgicas, mas aparentemente encomendadas por autoridades eclesiásticas. O Liber organi, através do qual suas obras ficaram conhecidas, contém seqüências de textos litúrgicos para a Missa e os Ofícios. Pode-se inclusive historiar a origem de algumas delas. O bispo Eude de Sally, em 1198, divulgou um edito a pedido do Papa, instituindo a comemoração da Festa da Circuncisão em 1º de janeiro, em lugar da duvidosa comemoração dos estudantes, a "Festa do Jumento", que antes ocupava o dia, e esse edito mencionava especificamente a música que seria cantada:

O responsório e Benedicamus [nas Vésperas] podem ser cantados como um triplum, um quadruplum, ou em órgão (...) O terceiro e sexto responsórios [nas Matinas] serão cantados em órgão, em triplum ou em quadruplum (...). O responsório e Aleluia [na Missa] serão cantados em triplum, quadruplum ou em órgão.

Triplum e quadruplum significavam música a três ou quatro vozes, a ser cantada, no caso, como o órgão, para textos especificamente liturgicos. O trecho sugere que o enorme quadruplum Viderunt de Pérotin foi escrito - pois o texto é apropriado para as festas natalinas - para a comemoração da Festa da Circuncisão na Notre Dame. Um ano depois o bispo divulgou outro edito ordenando que, "na Missa, o responsório e a Aleluia sejam cantados em triplum, em quadruplum ou como órgão". Pode ser que outra obra prima de Pérotin, o quadruplum Sederunt principes (o texto é o intróito da Missa do dia de Santo Estevão) foi composto para 26 de dezembro de 1199, atendendo aos desejos do bispo Eude de Sully.
Mas à parte essas irrupções ocasionais da música na própria liturgia, o costume geral em muitos lugares parece ter sido que todo texto litúrgico fosse cantado no cantochão tradicional e que as peças polifônicas se insinuassem no ritual, como aconteceu com o
Moteto, ou se juntassem às devoções extralitúrgicas que se tornavam cada vez mais populares no decorrer da Idade Média. Prestava-se grande devoção extralitúrgica à Virgem Maria; a sua Missa era cantada diariamente além da Missa própria do dia, e cantavam-se hinos ou uma Antífona em seu louvor todas as tardes diante da imagem dela. Essas práticas extralitúrgicas davam ao músico liberdade maior que a concedida para o culto diário, e é bem provável que as obras em louvor da Virgem, que superam em número qualquer outra obra religiosa sobrevivente da alta Idade Média, se devam não apenas à devoção pessoal do compositor, mas também ao fato de que o culto da Virgem Maria lhe permitisse maior liberdade de ação do que em outra circunstância. Assim, o novo estilo de música paulatinamente se apossou de palavras que outrora haviam sido sacrosantas.
Na verdade, porém, o Liber organi de Léonin e Pérotin, que inclui muitas músicas sabidamente de outros autores, contém música para o "Próprio" da Missa, textos para os quais, pertencentes a ocasiões específicas, variam de dia a dia, e que os editos do bispo Eude davam ao compositor liberdade para elaborar. Quem ouvisse uma Missa de Victoria, Palestrina ou qualquer de seus sucessores, ouvia música para o "Ordinário" invariável do ritual, e não as inserções variáveis que dependiam do dia real da comemoração. A seqüência do "Ordinário", as partes da Missa tradicionalmente cantadas pela congregação, e a primeira Missa a que se pode atribuir nome do compositor - a de Machaut - foi provavelmente composta para a coroação do rei francês Carlos V em Reims, em 1364. A solenidade e pompa da ocasião explicam e escusam a sua audácia revolucionária; porém, mais de um século antes, as palavras do texto litúrgico já haviam começado a ser regularmente tratadas pelos compositores, não obstante os freqüêntes ataques amargos à música religiosa "progressista".

Canções para o Povo

A forma musical do século XIII foi o motete (do francês mot, que significava palavra), cuja essência consistia na introdução de textos profanos em vernáculo. Na França, Espanha e Inglaterra encontramos hinos na língua nacional, não em Latim, e música profana escrita e composta com verdadeira sofisticação.
Que a música popular era sofisticada, já se sabe através de Gerald Cambrensis, escritor galês de 1175 que observa que numa reunião de compatriotas seus eram ouvidas tantas composições vocais quantos os cantores presentes. Pode-se ter certeza de que alguns deles acompanhavam seu vizinho, tal como se faz hoje, e que harmonizavam em terças e sextas - esses intervalos melífluos (que flui como mel; suave, brando; doce) que a Igreja desprezava mas que, mais tarde, compositores ingleses espalharam pela Europa. Imitavam também a melodia do cantor que estava a seu lado, criando depois um
cânone, como em Sumer is icumen in, e posteriormente Three blind mice e London's burning ?. O conceito de cânone é, ao mesmo tempo, intelectual e ingênuo. A criança fica encantada e fascinada ao descobrir que resulta harmonia quando alguém segue a melodia começada pelo companheiro; o compositor erudito deleita-se com a criação de tais complicações, levando-as assim ainda mais longe.

Música Vocal - Introdução

Durante o século XV, consolidaram-se as formas musicais religiosas que, além do gregoriano, continuariam existindo até os nossos dias: a missa e o motete, estabelecendo-se o caráter unitário da "missa". Ao longo dos séculos XV e XVI foram oferecidas várias soluções para o problema da unificação das suas diferentes partes, segmentando-se em quatro tipo: Cantos firmus ou missa tenore, baseada numa melodia já existente, em que aparece uma voz contínua (normalmente de tenor) nas diferentes partes da obra. O Cantus firmus original pode ser religioso ou profano. Entre esses últimos, o mais conhecido e utilizado foi a canção L'homme armé, base para inúmeras missas. Missa paráfrase: parte também de uma melodia monódica anterior, utilizada como base na construção da missa polifônica. As difentes partes da melodia original aparecem nas diferentes vozes da missa, imitando-se umas às outras. Missa paródia nesse caso, utiliza-se uma obra anterior polifônica, normalmente um motete. Ao escrever a missa, o autor não só modifica o texto, como acrescenta, suprime e intercambia as linhas melódicas ou, inclusive, as modifica, mas ainda imitando-as. Missas originais ou sine nomine: o compositor utiliza a sua técnica e o seu talento para preparar um material completamente novo. São identificadas pelo modo como estão compostas ou, também, por algum engenho técnico em que se baseiam. As missas correspondentes a esses grupos são conhecidas pelos nomes das obras que lhes serviram de ponto de partida (Missa L'Homme armé, Missa Pange Lingua). Nelas, o compositor quase sempre apoia-se numa tradição anterior, do mesmo modo o homem medieval e o renascentista usavam o pensamento clássico, a Bíblia e autores escolásticos como fontes de conhecimento, tão válidas quanto o racionalismo científico. As missas que contêm as cinco partes do ordinário são conhecidas como Missa de Glória. Há, ainda, as missas fúnebres, chamadas Réquiem ou Pro defunctis, com parte do ordinário, partes próprias da liturgia mortuária (como irae ou Lux aeterna) e algumas partes do ofício, mas nunca o glória. É grande sua variedade e seus recursos técnicos e estéticos. A recriação de melodias gregorianas é frequente no ofício fúnebre, utilizando o cantus firmus e, também, sons mais graves, que representem a morte ou o inferno. Ao longo do século XV, o motete perdeu o seu caráter profano, convertendo-se em protótipo religioso, que adotou o Latim como língua e reduzindo a quantidade de textos. Também permitem uma grande liberdade textual, passando a ser utilizados tanto nas cerimônias litúrgicas, como em outras funções religiosas (procissões) e nas devoções domésticas. Pode-se defini-lo como um texto dividido em pequenas seções, com um certo sentido lógico, às quais correspondem episódios musicais. O contraste entre as seções pode ser: temático, técnico ou baseado no colorido e tessitura das vozes. A economia das cadências presente no motete, bem como a concatenação dos seus episódios conservam o seu caráter unitário.

Mestres Inglêses e Franco-Flamengos do Século XV

Terminada a guerra dos Cem Anos, a Inglaterra e o ducado de Borgonha converteram-se nos centros da cultura musical do século XV. Os compositores ingleses viajaram ao continente europeu na primeira metade daquele século. Alguns estabeleceram-se onde hoje é a França, na época território inglês. O mais importante foi John Dunstable (1385-1453), autor de motetes, hinos e antífonas, além de outras obras de caráter profano. No seu trabalho, o texto é o que define a forma musical, o anúncio do que seria uma das características do renascimento. No entanto, a grande contribuição da música inglesa está na busca de sonoridades completas (acordes com terceiras e quintas, ou sextas). O ducado de Borgonha comandou a evolução musical da época. Sua pacífica situação política, em relação ao resto da França, favoreceu o desenvolvimento de uma corte refinada, com um complexo cerimonial e gostos artísticos elegantes. A burguesia contribuiu igualmente para o desenvolvimento artístico, cujos resultados manifestaram-se, sobretudo, na música e na pintura. O auge burguês e a transferência do ducado ao imperador Maximiliano I, em 1477, trasladou o centro cultural para os Países Baixos. Esta escola, ao longo de quase 200 anos espalhou sua influência por grande parte da Europa. A presença de cantores germânicos, a sedução das obras inglesas e os intercâmbios com Itália, contribuíram para a criação de uma linguagem internacional comum.

DufayGUILLAUME DUFAY (1400-1474) O mais representativo dos compositores flamengos da primeira geração. Nascido na fronteira franco-belga, passou parte de sua vida na Itália, ao serviço de instituições eclesiásticas e de nobres, como a corte de Sabóia ou os Malatesta, e morreu como cônego de catedral de Cambrai. Escreveu um moteto para a consagração da catedral de Florença, em 1436, sendo que seu legado mais transcendente é um conjunto de missas, oito das quais, sem nenhuma dúvida, são de sua autoria. São missas cantus firmus para tenores religiosos, a quatro vozes, sendo que, em determinadas passagens, o número de vozes é reduzido e o cantus firmus eliminado. A alternância entre passagens a quatro e a duas vozes, ou mesmo a três, aparece ao longo da polifonia de Dufay. Esta seria uma das características da música seguinte. Dufay também foi o autor da primeira missa de Réquiem que se conhece, apesar de não conservada.

ockeghemJOHANNES OCKEGHEM (1420-1495) É a figura indiscutível da polifonia religiosa de meados do século XV. Nunca viajou à Itália e sua vida esteve sempre ligada à França e à sua corte. Foi um compositor pesquisador, o que não significa que não tivesse talento. Algumas de suas obras contêm uma técnica de contraponto bastante complexa, além de um refinamento intelectual fora do comum. A produção mais importante de Ockeghem foram as suas missas, também compondo belos motetes marianos e um Réquiem polifônico, que é o mais antigo que se tem notícia. Utiliza a técnica do cantus firmus nas treze missas que compôs, além de rebuscados efeitos, como na Missa Prolationum, onde cada voz segue um compasso diferente, originando contínuos cânones (cada voz repete ou imita o anterior). Quase todas foram escritas para quatro vozes, com tessituras clássicas (superius, altus, tenor e bassus), utilizando registros graves e evitando o cruzamento entre elas.

JosquinJOSQUIN DES PRÈS (1445-1521) Uma das mudanças mais importantes deste período foi a definição da figura do compositor como indivíduo, já que, durante os primeiros séculos, as obras anônimas, os manuscritos e suas variantes, ou improvisações dos cantores, foram os que formaram os livros litúrgicos do coro. A partir do século XV, destacaram-se os caracteres individuais. Deste modo, podemos falar de várias gerações de músicos franco-flamengos, a terceira das quais, entre o final século XV e começo do século XVI é representada pelo francês Josquin des Près. É provável que tenha começado, menino, no coro da igreja de Saint Quentin. Depois, passou vários anos na Itália, mais precisamente em Milão, Roma e Ferrara. Foi cantor da capela papal e da catedral de Milão, e também serviu a nobres como os duques Galazzo Maria Sforza e Ercole I del Este. Trabalhou para a corte francesa, passou seus últimos anos como cônego de Santa Gúdula, Bruxelas, e foi prebendado (cargo eclesiástico) na corporação dos cônegos de Condé-sur-l'Escaut, onde morreu. Sua vida errante demonstra o interesse que havia na contratação de seus serviços. Des près também foi um dos primeiros autores cuja obra difundiu-se graças à imprensa. Em 1501, apareceria a primeira antologia de música polifônica impressa. Sobre des Près, Lutero comentou: "o amo das notas, elas devem fazem o que ele queria, enquanto que os outros devem fazer o que queriam as notas". Foi comparado com Miguel Ângelo pelo humanista florentino Cosimo Bartoli. Se havia algo em que os reformadores religiosos e os humanistas coincidiam, quanto à opinião musical, era em priorizar mais a palavra do que a música. Este foi o princípio adotado por Des Près: o texto determinava o desenvolvimento da linha melódica, tanto na sua forma como no seu significado. Buscando textos mais claros, eliminou as complexidades melódicas e de contra-ponto de compositores como Ockeghem e respeitou a acentuação das palavras e a pontuação das frases.
A importância da letra e a maior variedade dos textos consolidam o motete, que passou a ter preferência em relação à missa por ser uma forma mais refinada. Des Près compôs, além de obras profanas em francês ou italiano, umas vinte missas e quase uma centena de motetes. As missas representam o lado mais conservador de sua música, já que utilizou os recursos convencionais. Na Missa Pange Lingua aplicou a técnica de paráfrase: o início e outros fragmentos desse hino gregoriano aparecem em diferenciadas vozes, imitando-se umas às outras.
Uma maior variedade e qualidade podem ser apreciados nos seus motetes, onde a técnica de imitação, com sucessivas entradas das vozes, substituiu à técnica do cantus firmus, variando o colorido da obra de acordo com a altura das melodias e com a disposição das partes polifônicas. Em algumas das suas obras, talvez da última etapa, Des Près, tentou expressar, com o movimento da música, o significado das palavras, como fariam depois os madrigalistas e os adeptos da música reservata. Em muitos casos, Des Près musicou motetes, com textos bíblicos (principalmente Salmos) e litúrgicos (sequências).
Entre os muitos notáveis compositores franco-flamengos contemporâneos de Des Près, que trabalharam o gênero religioso com grande perícia, Jacob Obrecht (1450-1505), autor de várias missas cantus firmus, e Heinrich Isaac (1450-1517), que compôs mais de trezentas obras para o próprio das missas dominicais e dias santos, reunidas no Choralis Constantinus.
Na Alemanha, a música polifônica litúrgica conservou muitas características medievais até o século XVI, demonstrando pouca originalidade ao utilizar como modelo as composições franco-flamengas. A monodia religiosa ocupava um lugar de destaque, com obras litúrgicas em latim, na linha do posterior cantochão; em alemão, com caráter devoto; e sobre textos bíblicos, interpretados pelos meistersingers, herdeiros da tradição das cortes medievais, influenciados pelo cantochão e pela canção popular.
A Inglaterra ocupava um lugar periférico e conservador desde meados do século XV, depois de Dunstable e do isolamento político desencadeado pela Guerra das Duas Rosas. Os músicos ingleses quase não mantiveram relação com o continente europeu até a segunda década do século XVI. Por esse motivo seu estilo praticamente não utilizou as técnicas do contra-ponto imitativo dos franco-flamengos; ao contrário, deram preferência a uma sonoridade com acordes cheios para quatro, cinco e seis vozes, dentro de um estilo bastante simples e com passagens melódicas enfeitadas em algumas sílabas. Além das formas habituais da música litúrgica (missas e motetes), os compositores ingleses continuaram praticando sua tradicional inclinação pelos textos marianos, especialmente o magnificat, canto que utilizava a polifonia somente na metade dos versos (pares ou ímpares), alternando-o com o cantochão, sendo John Taverner (1495-1545) seu representante mais importante. Quanto à música religiosa não litúrgica, desenvolveu-se o carol, canção de Natal com várias estrofes, seguidas de um burden (estribilho). Nelas, utilizava-se o inglês e o latim indistinta e, às vezes, conjuntamente; seu sabor popular concedeu-lhe um uso didático.
A duplicidade linguística que se pode observar em todas as escolas - música litúrgica, em latim, e canções populares, em linguagem vulgar -, observa-se, também, na Espanha. A maior parte dos compositores como Juan Cornago, Juan de Anchieta (1462-1523), Francisco de Peñalosa (1470-1528) e Juan de la Encina (1468-1530) serviam às cortes de Aragon ou de Castela, compondo música tanto religiosa como profana. A polifonia litúrgica espanhola caracterizou-se pela simplicidade, pelo silabismo, pela clareza do texto e pela escassez de elementos profanos. Em catelhano, o villancico(canção de Natal com quadras e estribilho) foi a forma mais comum, utilizando diferentes números de vozes sobre textos tanto profanos como religiosos. Estas composições encontram-se reunidas no Cancionero de Palacio e no de Upsala.
Finalmente, na Itália, a lauda, herdeira das laude polifônicas, foi adotada pela maior parte da música religiosa. Utilizaram-se melodias populares conhecidas, modificando-se o texto original. Sua música era semelhante à  frottola profana: simples, homorrítimica e silábica, sua difusão enlaça-se a certas estruturas do século XVI, como o oratório.

Orlando LassusORLANDO LASSO (1532-1594) Orlando Lasso entrou para a história como modelo ideal de músico, tanto social como esteticamente. Sua vida parecia não ter contratempos e não conheceu o fracasso; seu destino foi saborear o êxito; foi admirado, mimado e disputado por reis e príncipes: o imperador Maximiliano II, o rei Luís IX, da França, e o próprio Papa, que era também um príncipe, lutavam para que ele abandonasse a corte bávara, ainda que temporariamente, para deleitá-los com algumas mostras de sua arte.
Viajante incansável, apesar da promessa que fez aos 24 anos - de manter um comportamento estável enquanto trabalhasse para Alberto V, o duque da Baviera -, Lasso soube assimilar e aproveitar todas as novidades que surgiam tanto no mundo católico como no luterano; e soube, também, deixar assentados os fundamentos de sua técnica e de sua imaginação sem limites em todos os lugares em que fez escala durante seus intermináveis traslados pela Europa.
Lasso deixara sua pátria - Mons, na região belga de Hainaut - aos doze anos, para se estabelecer na Itália, primeiro como menino-cantor da Capela de Fernando de Gonzaga, o vice-rei da Sicília, e mais tarde como cantor em Milão, Nápolis, Florença e Roma - na Capela de São João de Latrão, sede episcopal do Papa. Todas essas mudanças se realizaram no espaço de apenas dez anos, pois em 1555 Lasso já se encontrava na Antuérpia buscando editor para as suas primeiras obras.
Depois de permanecer um ano em sua terra natal, provavelmente para se restabelecer da intensa experiência italiana, passou o resto da vida na corte de Munique, onde faleceu, segundo registra a história, de demência senil, em 1594.
Foi em Munique que Lasso encontrou o seu lugar, pois a música interpretada na Capela da corte não conhecia barreiras estéticas nem ideológicas. A técnica era única e aplicada indiferentemente ao religioso e ao profano, e todas as tendências eram aceitas: a
villanella e o madrigal italianos, a chanson flamenga, o lieder alemão...
Porém, e apesar de que em Munique reinasse o humanismo musical, havia certa predileção pela herança litúrgica dos antepassados flamengos: a
Missa e o Moteto.

Omnes de Saba venient e Tui sunt coeli são motetos que se interpretam no ciclo litúrgico do Natal. O texto do primeiro corresponde à primeira seção gradual da missa do dia de Reis; o segundo, ao ofertório da missa do dia de Natal.
Salve Regina e Alma Redemptoris Mater são cânticos à Virgem Maria que os livros litúrgicos denominam Antífonas marianas. Sua função, desde meados do século XIV, é a de rematar o Ofício das Completas, a última hora litúrgica do dia.

Cada um dos quatro tempos do ano litúrgico, que transcorre paralelamente às quatro estações solares, interpreta a sua própria Antífona:

Nunca a história do moteto escreveria páginas tão grandiosas quanto com os Salmos penitenciais (Psalmi poenitentialis) de Orlando de Lasso. Os números 6, 31, 37, 50, 101, 139 e 142, do Saltério composto pelo Rei Davi, não representam só o apogeu das sofisticadas técnicas da escola franco-flamenga, senão que significam, sobretudo, um compêndio das características técnicas fundamentais do moteto: cada versículo se enlaça ao seguinte com um diferente tema musical; cada uma das vozes entra gradualmente e de forma imitativa; o contraponto serve de contraste à harmonia; a utilização de um grupo de cinco vozes contrasta, talvez de forma concertada, com blocos a duas, três ou quatro vozes; a extensão do texto cria um moteto monumental.
Os Salmos penitenciais não cumprem uma função litúrgica em sentido estrito; formam, contudo, uma estrutura completa cujo fim é ser recitada ou cantada em serviços religiosos privados e em atos de austeridade, de sobriedade, nos quais a compunção é o sentimento dominante. A prática destes atos piedosos era uma herança ideológica e gráfica da Idade Média: os Saltérios miniados, que reúnem salmos, orações e ofícios privados para o consumo de reis e senhores feudais converteram-se, com a invenção da imprensa, nos Livros das Horas, pequenos volumes que uniam a doutrina espiritual gráfica e os Ofícios privados para cada dia da semana, para cada hora do dia ou para atos de devoção especial durante o ano.
Não se sabe o verdadeiro motivo que levou Lasso a compor os seus salmos. Sabe-se que os escreveu recém-chegado na capela do duque bávaro - por volta de 1556 -, regida, no âmbito espiritual, pelos jesuítas. No palácio de Alberto V (como era prática dominante também nos ducados italianos), a piedade individual e o serviço religioso privado substituíam as liturgias catedralícias; e em Munique esta piedade devia ser intensa e os ofícios especialmente solenes, porque a Baviera, na época de Alberto IV, era o único reduto da Contra-reforma numa Alemanha dominada pelo espírito protestante. A cópia manuscrita que Alberto V mandou fazer proporciona uma mostra das tendências estéticas que se gestavam na corte, um amplo panorama caracterizado por uma nova forma de sentir a música. Tão nova que, alguns anos depois, daria pé a uma forte controvérsia entre a tradição de Artusi e a vanguarda de Montiverdi, até que este último, em Veneza, soube transformá-la em prática corrente. Conservando na Biblioteca do estado bávaro de Munique, o original dos Salmos penitenciais foi copiado a mão em quatro volumes, luxuosamente encadernados, entre 1563 e 1570: dois volumes estavam destinados à música e outros dois aos comentários, ilustrados ambos com cenas bíblicas pelo pintor do duque, Hans Mülich. Estes livros explicam não só os conceitos teológicos dos salmos e a sua interpretação católica, como também a função que a música cumpre. Os comentários do médico humanista da corte ducal, Samuel Quickelberg, adiantavam conceitos que depois, no Barroco, seriam essenciais: a arte de compor consiste em expressar, através dos sons, as emoções do texto, em reviver, com uma simbologia de figuras melódicas, todas as possibilidades que oferece a acústica. "Singulorum affectum vim exprimendo, rem quasi actam ante oculos ponendo" (expor a força dos afetos, mostrar o texto como realidade diante dos olhos): esta é linguagem da grande comoção das artes plásticas da época, da união de todas as artes, defendida mais tarde pelo Barroco; é a doutrina dos afetos, das figuras retóricas que Quickelberg define como música reservata, é a fidelidade ao conteúdo emocional do texto, seu predomínio sobre a música, enfim, uma antecipação a Lasso, à essência interpretativa da
Seconda Prattica montiverdiana.

Portugal: Polifonia no Séc. XVII

Do ponto de vista estilístico, podemos considerar a polifonia portuguesa do século XVII como uma continuação da tradição renascentista. Como aconteceu na Inglaterra, o uso do contraponto; que alcançou o auge com compositores do século XVI, como Palestrina, Lassus ou Victoria; continuou sendo, durante boa parte do século seguinte, uma realidade entre os autores portugueses. Enquanto, na Europa, autores como Monteverdi, Caccini, Schütz ou Rossi consolidavam as formas concertantes, o estilo recitativo, o uso do baixo contínuo ou a tradução sonora dos efeitos através de u]ma nova linguagem harmônica e tímbrica (elementos constituintes do estilo Barroco); os autores mais destacados da polifonia portuguesa, como Cardoso, Magalhães ou Duarte Lobo, mantinham, no século XVII, a sua crença na tradição renascentista mais pura.
Outro elemento característico do Barroco luso é a influência, por causa da proximidade geográfica, política e cultural, das escolas espanholas na música portuguesa da época. Deve-se recordar que com a morte do rei português, dom Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir (1578), a Coroa espanhola, na pessoa do seu rei Felipe II, anexou Portugal à Espanha até os tempos do conde-duque de Olivares (1
o Ministro de Felipe IV). A composição de um Réquiem é, para qualquer compositor, um desafio que vai além dos aspectos técnicos e circunstanciais da criação musical. Neste caso, é ainda mais, já que ao caráter hiper-transcendente de uma música destinada ao mais inevitável dos destinos humanos, têm de ser somados os importantes precedentes que dois séculos de escritura vocal renascentista haviam doado ao gênero. O Réquiem (1605) composto por Tomás Luis de Victoria é, talvez, o mais brilhante antecedente e a sua construção a seis vozes (dois sopranos, contralto, dois tenores e baixo) anuncia já as intenções expressivas pré-barrocas.
O Réquiem de frei Manuel Cardoso (ilustre polifonista português) reproduzia também o elenco a seis vozes, se bem que duplicado os contraltos (dois sopranos, dois contraltos, tenor e baixo) e não os tenores. Duarte Lobo publicou uma Missa de defuntos em 1621, em que optou por um efeito sonoro ainda maior, com oito vozes, duplicando as quatro habituais; porém, não em disposição policoral, como era o costume generalizado no século XVII.
Duarte Lobo nasceu em 1565. Estudou na catedral de Évora, com Manuel Mendes. Possivelmente, foi lá onde conheceu o Réquiem de Victoria. Depois de ocupar o cargo de maestro de capela da catedral de Évora, passou a desempenhar a mesma função no Hospital Real de Lisboa. Em 1594, já era maestro de capela na catedral da capital portuguesa. Duarte Lobo gozou, em vida, do mais alto reconhecimento, sendo para muitos o autor português mais notável do seu tempo. Morreu em 1646. Por desgraça, o terremoto de Lisboa de 1755 destruiu uma grande parte da obra deste compositor.           

Espanha: Música e Músicos

A Inglaterra e a Espanha têm impressionantes afinidades musicais. Ambos os países tiveram períodos medievais ricos e fascinantes, nos quais as invasões e os governantes de várias nacionalidades fizeram com que se abrissem a influências amplamente diferentes do exterior.
As conquistas dos compositores medievais foram eclipsadas por quase dois séculos de absoluta maestria na música polifônica vocal da Renascença. O declínio veio no século XVIII, embora um estranho raio de luz ainda iluminasse um cenário bem árido.

DOS MENESTREIS MOUROS A FANTASIA
A Espanha sempre trouxe imagens musicais fortes à mente das pessoas. Muitas vêm do gosto muito característico pelo instrumentos típicos das suas várias regiões.
A invasão moura, em 711, trouxe numerosos instrumentos, que acrescentaram uma vibração sem precedentes aos sons disponíveis aos compositores da Península Ibérica. Entre eles, havia diversos instrumentos de percussão, como o bandair (tamborim) e o ud (alaúde). Este último foi particularmente favorecido pela sorte, pois a Espanha desenvolveu um apetite sem fim por instrumentos de cordas dedilhadas, destacando a vihuela (misto de alaúde e violão) e o próprio violão, um símbolo permanente da Espanha. Em seu celebrado
Libro de buen amor, Juan Ruiz, arcebispo de Hita, cita uma lista enorme de instrumentos utilizados no século XIV. Ele evoca um espetáculo contagiante de cordas, sopros e percussão prorrompendo em "um canto de aclamação multicolorido", como os pássaros da primavera recém-descobrindo seu poder de cantar (de A Short History of Spanish Music, de Ann Livermore).
Sabe-se que muitas das músicas seculares e litúrgicas foram escritas ou improvisadas durante o período medieval. Os cristãos, muito menos intolerantes nesta época do que alguns séculos mais tarde, deliciavam-se com as atividades dos menestréis mouros, bem como preferiam seus fabricantes de instrumentos. Infelizmente,  pouca coisa sobreviveu ao tempo, e o que existe nos famosos manuscritos de Calixtine e Las Huelgas têm uma forte influência internacional, chegando à elegia e à polifonia inglesa.
O início da Renascença assistiu à criação da Espanha moderna, com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em 1492, que unificou os dois estados mais influentes da península. Apesar de que um dos primeiros atos do casal foi a criação da famosa Inquisição, esta foi uma época grandiosa e, de várias maneiras, muito liberal para a música espanhola.
A composição secular floreceu como sempre e tinha não apenas os sons distintivos das várias línguas espanholas, mas também formas de versos característicos que, ao serem musicados, frequentemente remetiam à música folclórica. O Romance e o Villancico foram as principais formas. Sendo o Romance uma expressão literária, baseada numa espécie de canto popular, e a palavra Villancico servindo para virtualmente tudo na música espanhola que tivesse um refrão preliminar, independente da existência da palavra "coro"; com efeito, a palavra queria dizer canção espanhola que não deveria ser confundida com o Romance.
Juan de Encina é o compositor mais conhecido. Sua música é altamente expressiva, e ele compôs melodias com um sotaque espanhol característico, obtido pela citação ou imitação de canções ou danças folclóricas. Sua carreira coincide precisamente com os grandes eventos de 1492. O século XVI assistiu à publicação de uma vasta coleção para a alaudística vihuela, um dos instrumentos mais intimistas e mais belos do período. Fantasias ornamentadas de Luis de Milán estão lado a lado com variações maravilhosas sobre linhas ou melodias do baixo tradicional; no século XX, Rodrigo pôde "se apropriar" da Canarios, de Gaspar Sanz (uma versão mais recente de um número de dança popular) sem comprometer de forma alguma a modernidade popular de seu Concerto para Violão.

MÚSICA CELESTIAL
Morales
O século XVI é dominado pelo grande triunvirato de Morales, Guerrero e Victoria. Eles escreveram principalmente música sacra, no extraordinariamente popular estilo polifônico do período. Não era música a capela, pois todas as indicações são de que as capelas e catedrais empregavam instrumentistas para missas e outros eventos. Mas o estilo é comparável ao de Byrd, Palestrina e Lassus. As partes se "movimentam" com pontos em comum, a dissonância é estritamente controlada e as linhas melódicas frequentemente se baseavam em material já existente, como uma canção ou moteto popular. Não dá para dizer que a música soe espanhola, mas muitos apontam as qualidades expressivas da música, notavalmente, sua preocupação com o texto (Palestrina opta geralmente por algo mais generalizado); isto pode ser ouvido de maneira Victoriamais nítida no extraordinário Réquiem de Victoria. Sua música tem também uma qualidade elevada e mística, bem peculiar à Espanha da época. Estes três compositores são o autêntico pináculo da música espanhola. Assim como a Espanha chegou aos céus com sua música coral, os fabricantes de órgãos fizeram coisas espantosas em vários séculos, produzindo instrumentos de cores surpreendentes e caixas lindamente ornamentadas.
Antonio de Cabezón foi o primeiro grande compositor para órgão; suas obras mostram um gênio para a variação e estão cheias de mecanismos contrapontísticos intrincados. Ele foi sucedido por uma séria de grandes organistas, como Joan Baptista Cabanilles. A tradição de teclado continuou no século XVIII, com Antonio Soler, e obteve destaque no renascimento do final do século XIX.             

O MAGNETISMO DA MÚSICA ESPANHOLA      
A Espanha carregava o fardo de estruturas políticas e religiosas ortodoxas; seus governantes gostavam da pompa e do poder militar; quando invadiram a Inglaterra, colocaram canhões tão pesados no convés de suas embarcações que não podiam ser armados e disparados a tempo de eles se defenderem do ataque dos ingleses. Não surpreende que um país que se regozijava no espetáculo desenvolvesse um gosto por grandes sinfonias de batalhas para órgão ou combinações instrumentais. Isso passou a fazer parte até mesmo das missas. Joan Cereols (1618-80) sofreu, como todos os compositores espanhóis do século XVII, com a ausência da técnica de impressão de música na Península Ibérica, e suas partituras restantes são caracteristicamente escassas em especificações musicais. Entretanto, elas incluem uma linha de acompanhamento, indicando o uso de instrumentos. Sua Missa de Batalla (Missa de Batalha) é arranjada de maneira esplêndida para três coros, e pode ser (nunca saberemos o quão autenticamente) acompanhada, com extraordinário efeito, por cordas, sopros e percussão.
A discussão sobre música espanhola não seria completa sem mencionar os numerosos compositores estrangeiros atraídos por seus idiomas nativos.
Em suas numerosas sonatas para teclado, Domenico Scarlatti inspirou-se no violão, que então dominava o repertório para cordas dedilhadas, e muitos anos mais tarde, compositores do final do século XIX e do início do século XX rivalizavam-se em suas obras no estilo espanhol. Boa parte da melhor música nesta categoria vasta foi de Debussy e Ravel, cujos resultados, por sua vez, causaram profundo efeito nos compositores espanhóis.
A ópera em vernáculo, na Espanha, esteve, como na maioria dos países, constantemente ameaçada pela ópera italiana. Entretanto, a zarzuela mostrou-se versátil. Era um tipo de ópera espanhola com diálogos, bem parecida com o Singspiel alemão, embora mais antiga (as obras mais conhecidas são de Juan Hidalgo, datando do final do século XVII).
Apesar dos vários desafios enfrentados, a ópera espanhola renasceu grandemente no século XIX, e vem prosperando desde então.                         

Música Vocal no século XVI

As características mais destacadas do século XVI são:

- A culminação da música sacra polifônica
- A ascensão e o desenvolvimento do madrigal na Itália
- A breve mas brilhante obra dos madrigalistas ingleses
- Os efeitos da Reforma
- A ascensão da música instrumental

Byrd Na obra de compositores como Isaac e Josquin des Près, a técnica contrapontística da escola flamenga tinha atingido um alto nível de competência e era aplicada à produção de música de real expressividade. Os grandes compositores do século XVI alcançaram ainda maior competência e expressividade em suas Missas e Motetes, estando as realizações supremas nas obras de Palestrina, Victoria, Lassus e Byrd. O Motetos, do qual os alicerces pós-Machaut tinham sido criados por Dunstable e fortalecidos por Dufay e seus sucessores, assumia agora enorme importância. No Moteto verdadeiramente polifônico, os princípios estruturais gerais são os seguintes: cada frase sucessiva de palavras é introduzida por um "ponto de imitação" ou "fuga", (note-se que essa técnica de imitação é importante não só como um método estrutural do século XVI, mas também como origem fundamental, a qual atingiu o seu clímax de perfeição nas mãos de J.S. Bach) entrando as vozes uma após outra com a mesma figura melódica, embora não necessariamente na mesma altura de som. Essa figura é usada, geralmente com repetição bastante considerável de palavras, a fim de construir uma "seção" completa; cada seção encerra-se com cadência e, como regra, a figura para o ponto de imitação seguinte surge dentro dessa cadência, pelo que as seções são entrelaçadas. Assim, é criada uma teia contrapontística contínua de som. Os motetos eram escritos para três a oito vozes, embora existam exemplos extravagantes ocasionais, como Spem in alium, de Thomas Tallis, para quarenta vozes, num arranjo para coros em oitenta e cinco partes.
Tallis
Tallis não foi o único compositor do século XVI a tentar uma tarefa de tamanha magnitude e complexidade, mas foi o único a conseguir produzir música real sob tais condições. Entretanto, os motetos não eram sempre e inteiramente contrapontístico em sua tessitura; havia dois outros métodos comuns de procedimento. Um é quase inteiramente sem acordes, com pouco ou nenhum movimento realmente independente das vozes. Ave Verum Corpus, de Victoria, e O Bone Jesu, de Palestrina, são bons exemplos. O outro tipo situa-se entre o puramente polifônico e o sem acordes. Baseia-se não tanto na técnica imitativa quanto no contraste de grupos variáveis de vozes dentro do coro que consistia em não menos de cinco vozes. Há relativamente pouco uso do coro pleno, mas a variação nas combinações usadas é explorada até o limite - uma espécie de orquestração Palestrinavocal. Tu es Petrus, de Palestrina, é um exemplo desse tipo de motete, e o mesmo método é usado com grande eficácia na Missa em cinco partes de Byrd. Em motetos mais extensos, os três estilos podiam ser usados para diferentes seções. Deve-se ressaltar que o tipo de moteto sem acordes manifesta um crescente sentimento pelos acordes e progressões de acordes como tais. Pode-se afirmar que, nas obras polifônicas do período, os acordes nascem do entrelaçamento de linhas melódicas e ritmicas simultâneas, a tessitura é concebida horizontalmente e as progressões de acordes são, por assim dizer, incidentais. Mas numa obra como Ave Verum Corpus parece evidente que Victoria devia estar pensando em termos de acordes, atitude que de agora em diante assumirá importância cada vez maior. A mesma atitude é bastante clara numa passagem como a abertura do Stabat Mater de Palestrina.
O material básico para Missas e Motetes era freqüentemente extraído cantochão. O uso do
cantus firmus secular para missas estava se extinguindo rapidamente. No começo de sua de carreira, Palestrina escreveu algumas Missas sobre cantus firmi seculares, incluindo duas sobre L'Homme armé, mas de um total de noventa e três, muito poucas baseiam-se nesse material.



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Última manutenção: 03/jan/1999

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