Homem,
ignorante de
si mesmo
No seu conto Micromegas, Voltaire nos fala a respeito de um ser extraterrestre que fica abismado com os conhecimentos dos terráqueos, que são capazes se discorrer com precisão sobre os mais variados assuntos: desde a constituição das moscas até o cálculo da órbita dos planetas. Mas quando inquiridos a respeito do conhecimento do seu próprio ser, os sábois da Terra demonstram uma confusão dos diabos e as contradições são tantas que Micromegas se diverte ao escutá-los. Uma das facetas desse divertido conto voltairiano é revelar o homem como um ser ignorante de si mesmo.
O conhecimento de si mesmo, esse é o grande desafio que o homem enfrenta neste final de século. Segundo os analistas existenciais, o homem tem que lidar simultaneamente com três mundos. Na primeira instância vamos encontrar o Umwelt. Cujo significado literal é "o mundo ao redor"; é o aspecto biofísico do mundo. Em seguida vamos encontrar o Mitwelt, que significa "com o mundo"; nesta instância o homem lida com os seus semelhantes e ela representa o aspecto sociocultural do mundo. Finalmente na terceira instância vamos encontrar o Eigeenwelt, que significa "o mundo próprio" ou do relacionamento consigo mesmo; é o aspecto biopsicológico do mundo. O se na sua inteireza depende da integração dessas várias instâncias, que não é pacífica mas comporta convergências/divergências, harmonias/conflitos, certezas/dúvidas e assim por diante.
Apesar de bem informado sobre o mundo exterior, o homem continua a desconhecer o seu próprio ser. Na realidade, o homem inventou os mais espantosos meios de comunicação e freqüentemente vive encapsulado. Muitos não conseguem administrar os problemas imediatos colocados pelo mundo. O homem moderno vive no dia a dia a utopia do seu bem-estar material, negligenciando o cultivo do espírito. A irrealização do ser nos seus desejos materiais gera uma frustração, uma espécie de sentimento de perda do mundo.
Embora cada homem seja um ser ímpar, ele só existe em função dos demais. No conceito buberiano, o homem torna-se um "Eu" na medida em que se relaciona com um "Tu". É o mundo da intersubjetividade, em que o homem sociocultural compartilha com os demais as suas próprias experiências e emoções. Entretanto esta relação com os semelhantes nem sempre é pacífica: se viver é difícil, conviver é o diabo. Quando falhamos em nosso relacionamento intraespécie, há um sentimento de perda do outro.
Reinhold Niebuhr captou bem o nosso drama existencial: "O homem é o ser mais pertubante e problemático, ele é um problema para si mesmo". O homem tem que viver/conviver com suas contradições, conflitos e outras vivências que ele vai incorporando durante a vida. Além do mais, o modo de vida no mundo moderno acarreta um empobrecimento da vida interior do ser. E quando malogramos diante do nosso próprio ser, há um sentimento de perda do eu.
Todos nós temos que lidar com os problemas nas três instâncias, ainda há pouco mencionadas, até o fim de nossos dias. E as saídas, onde estão as saídas? Certamente eu não tenho o fio de Ariadne para conduzir o ser através desse labirinto e acho até que nesse labirinto todas as portas abrem para dentro. Mas nada impede que se possa amenizar a jornada dentro desse labirinto. O homem (particularmente o ocidental), dentro da sua tradição greco-judaico-cristã, continua pensando o mundo com uma óptica fragmentada. E é muito difícil construir um projeto de vida adequado, enfim encontrar um sentido para a vida, quando se superdimensiona uma determinada instância de nosso ser. Muitos, ao não encontrar um sentido para a vida, se desesperam ou descambam para um fanatismo religioso ou para uma corrente ideológica extremada, outros se entregam à apatia, ao hedonismo ou ao suicídio. Outros ainda recorrem aos psicoterapeutas. Rollo May argumenta que é preciso ultrapassar as teorias psicológicas e descobrir-se urgentemente a pessoa, o ser humano. E aduz: "A terapia em si é, freqüentemente, uma expressão de fragmentação de nossa época, ao contrário de uma iniciativa para derrotá-la". Há hoje no mundo um superconsumo de psicoterapias. Dizia Eurípides: "Quando Deus quer punir um homem primeiro lhe tira o juízo" e, podemos acrescentar, em seguida o faz deitar-se no divã do analista. O discursso asséptico dos terapeutas subdimensiona o ser integral. É uma espécie de: se você não pode mudar a realidade mude a sua cabeça. O homem não é uma abstração e não pode ser colocado no limbo da psicologia. É necessário ultrapassar a psicologização e analisar o ser nas suas múltiplas instâncias integradas. O homem apromora-se pela aquisição da cultura, pela prática da vida espiritual, pela fruição da arte, pela integração com os seus semelhantes e pela adaptação-e-respeito à natureza. Afinal de contas, alguém já disse, o homem tem de viver consigo mesmo e deve fazer tudo para estar sempre em boa companhia.
Wilson Luiz Sanvito