NA CURVA DAS EMOÇÕES

 

Aviso às borboletas

Rompi minha crisálida.

Agora sou uma borboleta feliz e ansiosa que fia a sua história. Sei que a minha existência é breve e preciso projetar para o mundo o tempo em que hibernei.

No meu ciclo de larva eu já recolhia tudo – a metamorfose das cores, o veneno necessário a experiência do mel. Involuntariamente eu me construía para o centro, sugava com as patas a seiva das plantas, me preparava para o dia de voar. Mal podia supor que as minhas asas seriam essa tatuagem de todas as formas, sobreposição de escamas cintilantes igual a um telhado suspenso no ar.

Asas, minha enseada e minha perdição.

Acho mesmo que as antenas aguçadíssimas e os olhos sensíveis ao som vieram dessa minha vontade de ir sempre além.

É arriscado voar e é por isso que eu vôo. Sou atraída por novas montanhas e desconhecidas planícies – não posso esperar porque o tempo que me pertence é uma única estação. Vôo para estar na aventura do vôo e vôo também pelas borboletas domes ticadas que perderam a ousadia de voar. São asas que se tornaram apenas ombros, e "os ombros suportam o mundo", como o Poeta escreveu.

Vôo, vôo sim. Já tenho até na asa esquerda algumas violências de pássaros que não são nenhuma ilusão de ótica. É ferida mesmo, marcas do bico de predador que me avistou nas asas da descoberta e quis me prender. Me feriu, mas em troca recebeu o gosto do meu veneno. Não nasci para perpetuar apenas a doçura do néctar, a seiva que trago no corpo é também minha senha e minha arma.

Simples, a minha natureza é feita de círculos, de quebra de planos, de espirais. Não tenho nada a ver com o vôo em linha reta, sou responsável por mim e pela aventura de outras borboletas, minha vida é transgredir. Afinal de contas voar é com os pássaros, e inverter o rumo das coisas, migrar sem descanso no horizonte da procura, é com as borboletas.

Por isso a minha história, aconteça o que acontecer, só deve valer para quem sabe que toda verdade é sempre um pedaço de uma outra coisa e que o vôo mais urgente é revolucionar os jardins.

 

 

 

Jorge Miguel Marinho


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