Com a volta da democracia
ao País, foram extintos, nos estados, os departamentos de Ordem
Política e Social (DOPS, ou DEOPS), órgãos do aparelho
repressor do Estado, ligados às secretarias de segurança
pública estaduais. Depois dessa extinção, a sociedade
e os movimentos populares em defesa dos mortos e desaparecidos durante
o regime militar, exigiram o recolhimento dos conjuntos documentais gerados
por esses órgãos às instituições arquivísticas
públicas nos estados ou sua transferência a Instituições
de Ensino Superior e Pesquisa, como no caso do estado de Goiás .
Em novembro de 1995
ocorreu o recolhimento, ao Arquivo Público do Distrito Federal -
ArPDF, do fundo Secretaria de Segurança Pública do Distrito
Federal - SSP-DF, não sem antes ter havido várias gestões
no sentido do cumprimento efetivo da Lei Distrital número 881, de
julho daquele mesmo ano.
Anteriormente a esse
fato, é importante salientar que desde 1992, o Grupo Tortura Nunca
Mais reivindicava ao então governador do DF o acesso ao público
de tais conjuntos documentais, sempre com a promessa de abertura, como
se pode constatar diante da leitura de matérias sobre o assunto
em diversos jornais da época. Porém, esse recolhimento só
aconteceria três anos depois, graças a uma administração
comprometida com os princípios norteadores da democracia e do Estado
de Direito para uma sociedade pouco acostumada à liberdade de expressão
e ao direito inalienável à informação, depois
de tantos anos sob um regime autoritário, em que não se podia
nem pensar, pois assim infringia-se as “leis” do re-gime ditatorial dos
militares.
As peculiaridades do fundo SSP-DF
O fundo SSP-DF não
foi recolhido como preconizam os compêndios sobre Arquivo-logia,
que nos ensinam que os documentos devem passar pelas três fases de
seu ciclo de vida de modo natural, depois de terem sido avaliados ou depois
de se aplicar uma tabela de tem-poralidade, para depurar os conjuntos documentais,
mas por força de uma lei que obrigava o recolhimento, como se o
fundo SSP se restringisse somente àquele conjunto documental. Há
que se fazer gestões, agora, no sentido de recolher o restante da
documentação de valor per-manente acumulada pelo complexo
da Secretaria de Segurança Pública do DF, a fim de que se
tenha custodiado todo esse conjunto documental.
Contrariamente às
secretarias de segurança das outras unidades da Federação,
a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal não
dispunha, em sua estrutura, de órgão com características
semelhantes, ficando o que seria o DOPS do Distrito Federal ligado à
Polícia Federal. No âmbito do DF, o Centro de Informações
da Secretaria de Segurança Pública tinha como principal função
prover o governo local de informações acerca da segurança
pública. Atividades essas que continuam sendo exercidas até
os nossos dias.
Histórico do recolhimento do fundo SSP-DF/ Tipologia documental
Imediatamente após
a publicação do instrumento legal que obrigava o recolhimento
do conjunto documental acumulado pelo Centro de Informações,
técnicos do Arquivo Público do Distrito Federal - ArPDF -
e do Sistema de Arquivos do Distrito Federal - SIARDF -, depararam-se com
um conjunto documental em que se confundiam as três idades, uma vez
que os agentes daquela unidade da Secretaria de Segurança Pública
utilizavam-se de grande parte das informações ali armazenadas
para a consecução das suas atividades. Imediatamente, a equipe
do Arquivo Público elaborou parecer sobre o recolhimento, tomando
posi-ção contrária ao mesmo por motivos essencialmente
técnicos. Como recolher documentos que ainda estão em fase
corrente e/ou intermediária, sem que ainda tivessem sofrido um processo
de avaliação? O nosso parecer chamava a atenção
para alguns questionamentos que foram suscitados com base na leitura da
Lei 881, bem como à luz do que foi constatado in loco na Seção
de Arquivos Especiais do Centro de Informações.
Primeiramente, questionamos
o instrumento legal em seu artigo primeiro, que determina: “Fica transferido
o acervo de informações políticas do Centro de Inteligência
da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal -
CI - para o Arquivo Público do Distrito Federal.” (Lei 881/95) Ora,
como a Lei determinava que fossem transferidos os documentos com “informações
políticas”, ponderamos que, à luz do que constatamos no CI,
não havia um arquivo (ou seção) que tivesse apenas
“documentos com essa conotação e/ou classificação”
(ArPDF, Parecer Técnico, 1995). Não foi constatado nenhum
prontuário ou dossiê de presos políticos, mas sim documentos
tratando de várias pessoas físicas e jurídicas, arquivados
em pastas suspensas, denominadas Arquivo Cronológico de Entrada
(ACE), juntamente com outros documentos. A organização adotada
pelo Centro de Informações foi por assunto, e como ele não
tinha a função de repressão política, foram
encontradas pouquíssimas informações com relação
ao tema.
Uma segunda observação
dos técnicos do Arquivo Público, com relação
ao instrumento legal, foi sobre o não estabelecimento de um corte
cronológico que definisse parâmetros para o recolhimento,
o que nos obrigaria a recolher, inclusive, a documentação
mais recente, uma vez que a organização adotada pelo CI deixava
claro que as pastas onde eram acondicionados os documentos continham documentação
corrente e intermediária e, mesmo as pastas mais antigas, eram freqüentemente
atualizadas e consultadas.
Baseados nesses pressupostos
e nos princípios norteadores da Arquivologia, uma vez que, segundo
Michel Duchein, em seu artigo O Respeito aos Fundos em Arquivística:
Princípios e Problemas Práticos, “o documento de arquivo
jamais é concebido, de início, como um elemento isolado.
Possui, sempre, caráter utilitário, o qual só será
aparente se conservado dentro do conjunto de documentos que o acompanha”
(DUCHEIN, 1986, pp. 14 a 33). Também ponderamos com relação
ao princípio da individualidade, o qual preconiza que num arquivo,
os documentos lançam luz uns sobre os outros e que se desmembrado,
tornar-se-á impossível o seu estudo completo, bem como a
análise do conjunto. Um conjunto documental essencialmente de primeira
e segunda idades, não nos permitiria um corte cro-nológico
que não prejudicasse as atividades do órgão.
Nosso parecer soou,
equivocadamente, como uma “queda-de-braço” entre o ArPDF e o SIARDF,
como se quiséssemos impedir o acesso dos cidadãos às
informações sobre a repressão política no período
militar. Na realidade, o que se reivindicava era uma maior participação
do Arquivo Público do Distrito Federal durante o processo de redação
da Lei, para evitar esses empecilhos técnicos, pelo fato de a documentação
ainda se achar em fase corrente. O que se queria, também, era que
não fossem recolhidos fragmentos de fundo, mas todo o conjunto documental
de valor permanente acumulado pela SSP-DF.
Diante desse impasse
deu-se início a gestões com o objetivo de detectar saídas
em termos de corte cronológico a fim de viabilizar, de forma menos
traumática, o cumprimento do instrumento legal. Para tanto, propusemos
que o corte se desse no ano de 1985, posse do primeiro presidente civil,
depois de mais de vinte anos de presidentes militares, o que não
foi aceito. Então, foi proposto que se recolhesse a documentação
produzida e/ou acumulada pelo CI até 1988, ano da promulgação
da nova Constituição, que punha um fim, efetivamente, ao
período de regime militar no País, o que também não
foi aprovado. Finalmente, determinou-se que a documentação
a ser recolhida deveria ser a produzida até o ano de 1990, ano em
que o Distrito Federal passa a ter autonomia política.
Além desse
critério, ainda ficou acordado que não seriam recolhidos
documentos com informações referentes aos policiais civis
e militares e do Corpo de Bombeiros, que são tomadas quando do ingresso
de concursados a essas corporações, bem como informações
sobre crimes comuns que ainda não estavam prescritos, uma vez que
ainda eram fruto de investigações policiais, constituindo-se,
portanto, em arquivo corrente da instituição.
O Sistema de Arquivos
do Distrito Federal propôs que a documentação fosse
inventariada preliminarmente. Essa prática tornou o processo do
recolhimento extremamente lento, o que fez com que redimensionássemos
o processo de reconhecimento da documentação. Foi definido
que a avaliação seria feita juntamente com o pessoal da própria
Secretaria de Segurança. Foram formadas duplas de trabalho, sendo
um representante do Arquivo Público, ou do Sistema de Arquivos do
DF, mais um representante do Centro de Informações. Nesse
processo de triagem, também eram separados os documentos com informações
originadas noutros departamentos e/ou corporações militares,
a fim de que fossem ouvidos posterior-mente, antes de os documentos serem
recolhidos. A chefia do CI entrou em contato com os diretores dos órgãos
de informações do Exército, Marinha, Aeronáutica
e Departamento de Polícia Federal, na área federal; e com
o Comando Geral da Polícia Militar do Distrito Federal, bem como
o do Corpo de Bombeiros Militar do DF, a fim de consultá-los sobre
o recolhimento da documentação. Como nenhum desses órgãos
de informações se opuseram ao recolhimento, os documentos
puderam, finalmente, ser recolhidos.
Assim, o recolhimento
se deu após a publicação do Decreto 16.951, de 21
de novembro de 1995, que regulamenta a Lei 881 e o acesso às informações
oriundas do conjunto documental em questão.
Acesso e tratamento arquivístico do fundo SSP-DF
O acesso dar-se-á
somente nos casos expressos no Artigo 2º da citada Lei, quais sejam:
às próprias pessoas citadas no acervo em questão;
aos familiares das pessoas mortas ou desaparecidas citadas no acervo; aos
advogados constituídos pelos interessados ou pelos familiares das
pessoas mortas ou tidas como desaparecidas citadas e, por último,
às pessoas ou entidades devidamente autorizadas pelas pessoas citadas
ou, no caso dos mortos e desaparecidos, pelos seus familiares . Também
nos termos do art. 4º da mesma Lei, o ArPDF poderá conceder
o acesso para pesquisas acadêmicas, “desde que a instituição
interessada apresente autorização das pessoas sobre as quais
pretende fazer levantamento, ou prova de que estas foram citadas em edital
publicado em jornal de grande circulação, com antecedência
de no mínimo 15 (quinze) dias, com esclarecimento de que, pretendendo
obstar a pesquisa solicitada, deveriam manifestar a intenção
ao Arquivo Público do Distrito Federal”. (Lei n. 881, de 06/07/95)
Para tanto, foi elaborado
o formulário “Termo de Responsabilidade”, o qual deve ser assinado
por todos os que desejarem ter acesso aos documentos constantes do conjunto
do-cumental e que tenham autorização.
Após o recolhimento,
iniciamos o processo de tratamento da documentação: higienização
e identificação dos documentos para agilizar o acesso às
informações por parte das pessoas interessadas, desde que
tivessem acesso garantido pela Lei supracitada, por conta da natureza das
informações.
Procedeu-se à
limpeza mecânica dos documentos para retirar os grampos, clipes e
outros objetos metálicos, a fim de evitar que a oxidação
desses materiais danificassem os documentos, bem como a separação
das cópias, para um eventual descarte, uma vez que foi constatado
um grande número de cópias em cada ACE além
do original datilografado.
A identificação
dos documentos deu-se por meio de anotações em formulário
próprio dos principais tópicos de cada ACE. Concomitantemente,
elaborou-se um vocabulário controlado, com base nas informações
extraídas dos documentos e à luz do Código Penal Brasileiro
para determinarmos as palavras-chave para fins de indexação
e recuperação das informações.
De toda maneira, esse
fundo é um indicador do imenso controle exercido pelo Estado na
vida íntima dos cidadãos em períodos de exceção,
quando nenhum direito civil é respei-tado. O que observamos, pela
análise dos documentos do CI-SSP-DF, é um acompanhamento
sistemático da vida privada de alguns cidadãos, uma devassa
na intimidade de muitos. Inclusive na vida sexual das pessoas.
Infelizmente, a expectativa
em torno do recolhimento desse conjunto documental foi maior que o volume
dos documentos. Contrariamente aos estados, com grande número de
prontuários e outras informações sobre os períodos
de exceção no País, a documentação recolhida
contempla muito pouco sobre atividades políticas no DF durante o
período abrangido pelo conjunto documental em questão. Do
que foi recolhido, cerca de nove metros lineares de documentos, muito pouco
foi produzido pela SSP-DF. A maioria dos documentos constitui-se de cópias
fornecidas pelo centros de investigações do Exército,
Marinha e Aeronáutica. Também da Polícia Federal e
do Serviço Nacional de Informações - SNI, atual Secretaria
de Assuntos Estratégicos. Essas informações eram solicitadas
pelos órgãos públicos quando da contratação
de pessoal.
Quanto às consultas
a esse conjunto documental, desde o recolhimento, em novembro de 1995,
até a conclusão deste artigo, foram feitas dezenove consultas,
uma média de 2% do total das pesquisas realizadas no Arquivo Público
do DF, cujos resultados, em sua maioria, têm sido “nada consta”.
Onde estará a documentação do DOPS do DF?
O recolhimento da documentação do DOPS - por ter sido gerada, no Distrito Federal, pelo Departamento de Polícia Federal, órgão vinculado ao Ministério da Justiça (DPF/MJ) e não pela Secretaria de Segurança Pública do DF - seria de responsabilidade do Arquivo Nacional, uma vez que o mesmo já recolheu a documentação gerada pelo Departa-mento de Censura de Diversões Públicas, do mesmo Ministério. Porém, gestões do diretor geral do AN, juntamente com o superintendente do ArPDF, com o objetivo de localizar a documentação gerada pelo DOPS/DPF/MJ, não lograram sucesso, pois não se sabe do seu paradeiro no âmbito do Ministério da Justiça.