Música brasileira, como era em 69
Num dia de 1959, em Salvador, Gilberto Gil ouviu “Chega de saudade”, com João Gilberto, e ficou ligando para a rádio pedindo para tocar de novo e de novo. Em São Paulo, foi Chico Buarque que mudaria sua vida ao ouvir o samba-choro de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Em Santo Amaro, diante do Bar de Bubu, foi Caetano Veloso, que começava ali a para sempre ser desafinado, enquanto no Rio, Edu Lobo decidia-se pela música ao ouvir João.
Sem nada com história tão brasileira, do outro lado do oceano o jovem francês Pierre Barouh chegava para trabalhar como chansonier numa cantina italiana de Lisboa quando um colega chamou-o num canto.
— Ouve isso — disse o colega, um tal de Sivuca, que tocava acordeom como ninguém.
A vitrola roda. O choque.
— Era “Chega de saudade” e um mundo novo se abriu para mim — recorda hoje Pierre Barouh num terraço encravado no alto do Humaitá, vendo de lá o Rio que ele, então, começou a imaginar, logo depois passou a conhecer e para sempre a amar. — Dei um jeito de vir para o Brasil num cargueiro achando que encontraria Tom, Vinicius, João. Fiquei três dias no Rio, não conhecia ninguém e não encontrei ninguém.
Barouh chegou ao Rio para filmar em pleno AI-5
Quando, em fevereiro de 1969, Barouh desembarcou no Galeão para rodar um documentário sobre música brasileira já conhecia uma pá de gente. Mas também não encontrou quase ninguém.
— Vinicius estava fora, Caetano, Gil e Chico no exílio — diz Barouh, que chegou três meses depois do AI-5, ditadura alta. — Mas aí o Baden Powell me trouxe o Pixinguinha e o João da Baiana. E me apresentou a Paulinho da Viola e Maria Bethânia. Em três dias, filmamos.
O resultado é “Saravah”, um documentário de antologia que após décadas sumido foi lançado em DVD há um ano no Japão (e logo virou objeto de culto e correu mundo), depois na França, e agora sai finalmente no Brasil, via Biscoito Fino.
É de tirar fôlego de quem gosta de música brasileira.
Traz as únicas imagens coloridas de Pixinguinha tocando saxofone, ora fazendo um “Lamentos” com Baden ao violão, ora acompanhando João da Baiana em pontos de candomblé estilizado como “Que quere que que” e o clássico “Yaô”. Sim, há o ancestral João da Baiana cantando, dançando, ensinando a Barouh coisas sobre a religião afro-brasileira.
Há um encontro, num bar, dos jovens Maria Bethânia e Paulinho da Viola. Este, explica a Barouh o que é uma Escola de Samba, que não era apenas o que se via no carnaval, mas um dia a dia dedicado ao samba. Com Bethânia, canta sambas de terreiro de escolas como Salgueiro (“Tudo é ilusão”), Portela (“Minhas madrugadas”, “Pecadora”) e Mangueira (“Pranto de poeta”). E mostra um samba que acabara de fazer, simplesmente a obra-prima “Coisas do mundo, minha nega”, que Bethânia delira ao ouvir.
E tem Bethânia ensaiando na boate Barroco: “Baby” e “Tropicália”, “Frevo n 1 do Recife” e “Pra dizer adeus”.
— Sempre gostei mais de ensaios do que de shows, por isso optei por filmar Bethânia ensaiando, com os músicos — diz Barouh que, meio sem querer, registrou as entranhas do show histórico de Bethânia, onde vê-se músicos como o pianista Luiz Carlos Vinhas, o trombonista Raul de Souza, entre outros.
E tem Baden no auge, seja solando virtuose em “Sermão”, seja acompanhando a afinadíssima cantora paulista Márcia em “Formosa” e “Tempo de amor”.
— Tudo isso se deveu a Baden — diz Barouh.
Tudo mesmo, não apenas os números musicais de “Saravah”. Pois, entre 1959 e 1969 o Brasil tornou-se marcante na vida de Barouh, via Baden e Vinicius.
— Uma vez, em 65, estava num bistrô do Leblon com Baden, Vinicius e um pessoal de música. Ouvi “Samba da benção” e, ali, a pedido do Vinicius, fiz a versão francesa.
No dia seguinte, Barouh voltaria para a França para rodar “Um homem, uma mulher”, de Claude Lelouch, filme no qual foi ator, co-autor da trilha-sonora (as letras para os famosos temas de Francis Lai) e que ganharia a Palma de Ouro em Cannes. O sucesso musical do filme, “Samba Saravah”, só entrou porque Lelouch ouviu a versão que Barouh fizera do “Samba da benção”. O Brasil era mesmo destino.
Hugo Sukman
O Globo - 06/07/2005