Maria Bethânia inunda o palco de voz e poesia
Está de volta a Maria Bethânia que arrebatou palcos e platéias na primeira
metade dos anos 70 com shows musicais/teatrais como ''Rosa dos Ventos'' (71)
e ''Drama'' (72). ''Âmbar'', espetáculo que ela estreou anteontem no Palace,
é novo manifesto teatral-poético-ideológico-subversivo, nos moldes dos que
fazia nos 60 e 70.
Parte do mérito deve ser creditada ao diretor teatral Fauzi Arap, que
roteiriza e dirige shows da cantora baiana desde os 60 e volta agora a unir
suas forças às dela.
Com Arap, Bethânia consegue feito ímpar nos 90: torna importante um
espetáculo que se estrutura nos pilares da voz e da poesia.
Outros componentes - arranjos, banda, iluminação - não são menos relevantes,
mas quase se apagam diante do que ela faz com a voz e com as letras das
canções.
Nem são só letras de canções. Poemas dos diversos heterônimos de Fernando
Pessoa amarram conceitualmente o roteiro musical, em procedimento que ela já
adotava há duas décadas. Política, intercala-os em momentos-chave,
transformando em manifestos as singelas canções que escolhe cantar.
Assim se derrama um dos pontos nevrálgicos do show: o clássico kitsch
''Mensagem'' (''quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta
na mão...'') é recheado do batido jargão ''todas as cartas de amor são
ridículas'', do heterônimo Álvaro de Campos.
Valores se subvertem, e é este o seu discurso: o kitsch está arraigado na
cultura popular brasileira e é tão cortante quanto um poema de Fernando
Pessoa. Isso Maria aprendeu de Roberto Carlos, que hoje parece seguir outro rumo.
Nessa mesma teleologia, Bethânia interpreta ''Chão de Estrelas''
(Sílvio Caldas-Orestes Barbosa), ''Gita'' (Raul Seixas), ''Lama''
(Aylce Chaves-Paulo Marques), ''Negue'' (Adelino Moreira).
Abre sorriso largo de felicidade e no momento seguinte fecha o rosto
em profunda tristeza, enquanto anuncia a nobreza de Manoel Bandeira
(''Brisa'') e Chico Buarque.
Cantando ''Rosa dos Ventos'' ou ''Uma Canção Desnaturada'' (da peça
''Ópera do Malandro'', nova intervenção teatral), confirma-se como a voz
que melhor traduz a obra de Chico Buarque.
Cantando ''Lamento Sertanejo'' e ''Viramundo'', insinua que seria também
a grande intérprete da obra de Gilberto Gil, se mais a ela se dedicasse.
O outro núcleo nervoso se estabelece quando canta ''Lua Vermelha''
(Carlinhos Brown-Arnaldo Antunes), enchendo de vontade política versos
como ''sapos na calçada/ de nenhum país'' e de lirismo outros como
''lua vermelha/ noite sem Luís/ toda sertaneja/ eu sempre te quis''.
E são apenas momentos mais intensos de um show que, nos respiros, se
preenche de vozeirão de baiana bacana e anacrônica que canta ''eu estava
apaixonada, meu Deus'' e faz todo mundo entender o que é estar apaixonado.
''Ai, ai, ai, isso é tão bom, minha nega, mas pra mim chega'', arremata,
rasgada. É isso.
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Folha de São Paulo - 07/12/96
Bethânia comemora 50 anos com poemas de Fernando Pessoa
Maria Bethânia reencontra a poesia e o drama. No show que comemora seus 50
anos, a cantora baiana volta a recitar poemas de Fernando Pessoa.
Para a direção, ela convidou o diretor teatral Fauzi Arap, seu parceiro
frequente desde a década de 60.
''Sou uma intérprete dramática. Para atuar, sempre prefiro o drama à comédia'',
diz a cantora, admitindo que resiste à insistência de Arap e outros amigos
para que algum dia faça um show cômico.
''Tenho um jeito de moleca, adoro brincadeira, mas quando subo no
palco eu sou a própria tragédia grega'', diz, rindo.
A cantora acha que a atitude compenetrada e dramática que acabou
marcando sua imagem pública é uma herança do precoce início de sua carreira.
Bethânia tinha apenas 17 anos quando foi convidada a substituir Nara Leão
no musical ''Opinião''. Graças à canção ''Carcará'' (João do Vale),
de um dia para o outro ela ficou conhecida em todo o Brasil.
''Era um espetáculo de uma importância social imensa. Foi deslumbrante, mas
tive que buscar forças nem sei de onde. Eu era uma menina e tive que virar
adulta rapidamente. Isso me trancou muito'', afirma.
Com o tempo, sem abrir mão de seu estilo dramático, Bethânia foi descobrindo
uma relação mais serena com a música. ''Não preciso mais viver cada palavra
das canções'', diz.
Aniversário
Para comemorar seus 50 anos (completados em junho), Bethânia decidiu reviver
sua trajetória musical, sem recorrer a um roteiro cronológico, ou mesmo
cantar todos seus sucessos.
''Senti um desejo grande de voltar a falar no palco. Escolhi Fernando
Pessoa porque acho que ele me traduz demais'', explica.
Entre poemas e trechos em prosa, o show inclui dez textos de Pessoa, vários
deles extraídos do livro ''Desassossego''.
A escolha de Fauzi Arap - que já dirigiu Bethânia em seis shows, desde
''Comigo Me Desavim'', em 1967 - também foi natural.
''Ele sempre pediu que eu fosse essencial no palco. E sinceridade é um
elento fundamental neste show.''
Quanto ao repertório musical, além de lembrar momentos de sua carreira,
Bethânia também quis reservar espaço ''para a realidade atual da composição
no Brasil''.
O que ela resume em novas canções de Adriana Calcanhoto, Carlinhos Brown,
Arnaldo Antunes, Chico César e Orlando Moraes, que foram incluídas no CD
''Âmbar''.
E, como não poderia faltar em um show comemorativo, entram também no
repertório sucessos antigos na voz de Maria Bethânia, como
''Rosa dos Ventos'', ''Negue'', ''Sonho Impossível'' ou ''Grito de Alerta''.
''Quero homenagear as pessoas que me acompanharam nesses anos'',
diz a cantora.
CARLOS CALADO
Folha de São Paulo - 04/12/1996