Bethânia por Maria João Avillez
Com ela quase que posso falar de uma amiga. A primeira vez que nos vimos foi no Rio de Janeiro, num local deslumbrante, emoldurado pela vertiginosa vegetação carioca. Maria Bethania não abre com facilidade as portas de sua casa, ali bem perto, prefere receber os jornalistas longe da sua privacidade.
E mal saiu do automóvel, logo me surpreendeu, dirigindo-se à pequena capela da casa - uma mansão colonial que pertenceu a aristocratas famílias e hoje esta aberta à hotelaria - lá ficou por alguns momentos, recolhida em oração.
"É, eu rezo, sou batizada, fiz a primeira comunhão e ainda hoje comungo. Acho que Deus me deu uma oportunidade rara, me deu voz, me deu inspiração, me deu inteligência... E me deixa morar num lugar assim como o Rio, me deixa ter a mãe que tenho, o pai que tive..."
Depois, a conversa que começamos nesse dia de abril de 97, dura até hoje. E não é um oceano de permeio que me afastará desta mulher que tanto admiro e da sua voz que não esqueço e tanta companhia me faz.
Maria falou de tudo: da Bahia da sua infância, onde nasceu e cresceu; do pai, "modesto funcionário dos Correios", da mãe, que "a influenciou porque cantava muito"; dos oito irmãos - ela é a mais nova -; das brincadeiras com Caetano no "quintal gigantesco da casa de Santo Amoro" onde cada um tinha sua árvore ("a minha era goiabeira, a dele, uma fruta-pão"), da carreira, da vida, do sucesso, da voz...Da intuição ("tudo em mim é intuitivo, é impressionante") e do destino. Do destino, que nela se confunde com música.
"O meu destino é a música, é o fado...sim, eu adoro essa expressão, mas sou também apaixonada pelo fado".
A seguir lembro-me que cantarolou, por um longo momento.E meio envergonhada, sorriu: "Desculpa essa voz da manhã, ela não está preparada para cantar". Estivemos ali, as duas, horas seguidas, num "papo" que não parecia ter fim. E então foi-se tecendo um fio de cumplicidade, essa, única e belíssima, que por vezes acontece entre mulheres que conversam no feminino. Evocou Fernando Pessoa, contando-me que acabara de festejar os seus 50 anos com um "show" dedicado exclusivamente ao "poeta entre os poetas" e falava "do Fernando" como se ele estivesse ali sentado entre nós duas.
Por alguma razão simpática, ela gostou da entrevista quando a leu. E vindo a Portugal, quase logo a seguir, pediu que me convidassem para seu espetáculo no Coliseu, onde eu tinha à minha espera um lugar na primeira fila.
Visitei-a a seguir no camarim: estava hirta e tensa, ainda preenchida, "ocupada" pelo que ocorrera de magnífico em cima do palco. Reparei que levou muito tempo a "descontrair", a recuperar a atenção ao mundo e à vida, apesar do sorriso rasgado com que entretanto recebia os "parabéns" dos inúmeros amigos portugueses.
De novo no Rio, no ano passado, telefonei-lhe. Maria estava para a Bahia.
E agora, um destes dias, reencontramo-nos outra vez em Lisboa, na Torre Vasco da Gama, debruçada sobre o Tejo, tão ameno e azul, nesse fim de tarde. Dias antes eu estivera com os meus filhos no espetáculo dela com seu irmão Caetano Veloso - memoráveis momentos, mágicos momentos - também no Parque das Nações. Depois, Maria Bethania partira para Paris e agora voltava a Lisboa para inaugurar uma exposição dos seus 35 anos de carreira: uma sensível e documentada "viagem" pelos seus lugares de origem e outros lugares, pela sua história pessoal e pela história da sua voz."Porque é que você não foi na minha conferência de imprensa? Fez lá falta..."
Disse-me que Paris fora um "sucesso" e que estava feliz.Ah, mas "o show com Caetano em Lisboa e esse tão maravilhoso público de Lisboa, esse sim fora inesquecível..."
E agora, "que bom, não é? Caetano vai voltar e reencontrar de novo essa plateia "ma-ra-vi-lho-sa!"
Maria estava vestida de branco - cor que adora - e tinha no braço um blusão verde muito elegante: sempre a vi bem vestida, no palco e fora dele.
Depois, já com muita gente à sua volta a disputar-lhe o sorriso e o charme, reconfirmei seu telefone, pois conto voltar ao Brasil este Verão:
"É sempre o mesmo, eu não mudo de telefone há trinta anos..."
Então vou telefonar-lhe outra vez.
Maria João Avillez
Revista Lux - Portugal