Bethânia volta a São Paulo com o show 'Brasileirinho'
RIO - Depois da temporada lotada de seu belíssimo show "Brasileirinho" em abril, no Tom Brasil, Bethânia está de volta ao mesmo palco com o espetáculo, agora lançando DVD. No palco, ela celebra o Brasil que os modernistas sonharam (não por acaso cita Manoel Bandeira em dois poemas). Ela evoca um país menos folclórico e mais pulsante, regido pelo encontro de Iemanjá e Cabocla Jurema com São João e São Jorge, um país de cotidiano - "minhas cantigas , amores e danças" e "meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir", como dizem os versos de Andrade.
O repertório é centrado no disco de mesmo nome (e conceito), lançado no ano passado pela Biscoito Fino, e Bethânia dá uma amostra do álbum que prepara sobre a obra de Vinicius de Moraes, pela mesma gravadora. As inserções não comprometem a unidade as canções escolhidas do Poetinha, "Gente humilde" e "Itapuã", dão conta do mesmo universo "brasileirinho" do show. Vinicius é lembrado também no poema "Pátria minha" ("Vontade de beijar os olhos da minha pátria/ de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...").
O show viaja pelas matas protegidas por entidades ("Salve as folhas", "Capitão do mato", "Cabocla Jurema", "Senhor da floresta") e por paisagens sertanejas ("Luar do sertão"), festas juninas ("São João Xangô Menino"). No caminho, descreve quem encontra. "Cigarro de paia" fala do caipira com "cigarro de paia", "cavalo ligeiro", "rede de malha" e "cachorro trigueiro"; "Boiadeiro" canta o sujeito com "dez filhinhos muito pouco quase nada" e sua Rosinha "pequenina miudinha quase nada", mas que "não tem outra mais bonita no lugar". Brasileirinhos, enfim. Como a "Miséria", da canção dos Titãs, também no roteiro.
Emoldurando as canções, está o bom gosto do cenário dominado pela beleza simples e crua da palha e de tons areia. A mesma simplicidade aparece em elementos que vez por outra compõem o palco, como luminárias e balões de festas juninas. A luz de Maneco Quinderé sublinha com sutileza as músicas. Tudo integrado à figura de Bethânia, a senhora daquela floresta. Como de costume, a cantora tem o domínio total do palco, desta vez com pouquíssimos momentos do peso dramático que marcou alguns de seus espetáculos anteriores. Desta vez, uma felicidade leve toma conta de Bethânia.
Sob o comando de Jaime Alem, a banda sustenta o cruzamento, que marca todo o show, entre refinamento e crueza - sintetizado na imagem do percussionista tocando seus tambores com uma baqueta vassourinha. Sons do Brasil de Bethânia são invocados, como o ritmo peculiar dos violeiros, a marcação da zabumba, as cordas dolentes, o tamborim. Mas há espaço também para o baixo (acústico e elétrico) e até para a guitarra distorcida ("Comida").
Leonardo Lichote - Globo Online - 24/09/2004
Cantora volta ao Canecão para mostrar seu mergulho profundo nas raízes nacionais
Maria Bethânia inicia a temporada de duas semanas, no Canecão, com a linda cantilena das Bachianas nº 5, a mais famosa canção de Villa-Lobos. Quase no fim da apresentação, a cantora evoca Melodia sentimental, outra pérola do compositor. É de se perguntar o que a intérprete, intimamente ligada a autores como Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso, tem a ver com o mestre modernista? Bom, desde que lançou o CD Brasileirinho, no ano passado, pode-se afirmar: muito. Ela própria compara:
- Não vivi as lendas que cercam Villa-Lobos, não ouvi o Uirapuru, nem fiquei de papo para o ar no Amazonas. Mas criei a minha floresta, o meu jeito, a minha visão desse país.
São refúgios semelhantes, olhares comuns. O compositor foi o primeiro a pensar na música brasileira de forma ampla, levando até ela parte dos regionalismos, do sincretismo. Transbordou suas partituras com lendas amazonenses (Uirapuru), autêntica música carioca (os choros) e folclore (as mais de 150 canções de domínio público recolhidas no Guia prático). E, vendo de perto, Bethânia, a seu modo, faz o mesmo. Estão lá o Yá Yá Massemba, os meninos chorões do Tira Poeira, a Cabloca Jurema, os santos católicos e os pontos de macumba lado a lado. É o retrato de um país alegre, leve, rural e urbano, pueril, delicado, vibrante, cheio de esperança, despretensioso. E que parece ter caído, de vez, no gosto das pessoas.
Brasileirinho tornou-se o projeto mais bem-sucedido do selo Quitanda, criado por Bethânia e Kati Almeida Braga, sócia da gravadora Biscoito Fino. Quase um ano depois, o álbum acaba de chegar em formato DVD, com o show gravado ao vivo, no mesmo Canecão, e extras. Brasileirinho recebeu os prêmios TIM (nas categorias Cantora, Disco e Projeto Visual), Rival BR (CD), Academia Brasileira de Letras (Cantora), e está, ainda, indicado ao Grammy Latino. Nem ela imaginava um percurso tão longo:
- Achei que teria um terço desta repercussão. Sou uma cantora com boas vendas de discos ligados a romantismo. Brasileirinho foge disso. Mas o mundo está tão corrido, tão chato, tão fora de ordem que quis erguer uma bandeira de paixão pelo meu país.
O álbum é ligeiramente curto. Para adaptá-lo ao palco, a baiana vasculhou em sua memória afetiva canções situadas num universo paralelo. Lembrou da rara parceria de Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Garoto na singela Gente humilde. De Tom Jobim e Luiz Bonfá, trouxe a placidez de Correnteza, interpretada ao vivo por Miúcha. Resgatou João Valentão, de Dorival Caymmi. Na apresentação ela emenda a música do personagem briguento e sonhador com a mítica figura do interiorano de Sussuarana, criada por Heckel Tavares e Luiz Peixoto. No DVD, ambas eram cantadas por ela e Nana Caymmi, num momento emocionante. Infelizmente, a filha mais velha de Dorival deve ficar de fora destas duas semanas no Canecão. Nana está cuidando dos pais, internados com problemas de saúde. O Uakti também não pôde se apresentar.
- Vivi momentos lindíssimos durante a gravação do DVD. Um deles foi ver Nana cantando, com olhos cheios de lágrimas. Não vou me esquecer disso. Mas ela disse que pode aparecer, qualquer dia - completa Bethânia.
A intérprete costura as canções com poemas de Mario de Andrade e frases de Guimarães Rosa. Canta serena, contida, sorrindo, amparada pelo grupo conduzido pelo fiel escudeiro Jayme Além, violonista e diretor musical. O cenário, de Gringo Cardia, lembra casas do interior. E pela primeira vez, ela é dirigida por Bia Lessa.
- Bia sempre me convida para ler textos, interpretar. Lembro que na estréia da gravação do DVD tivemos pouco contato. Na véspera, o ensaio foi um caos. E, na hora, impressionante, saiu tudo lindo. Foi tão bonita e inteligente a maneira como Bia entendeu a proposta desse disco - elogia Bethânia.
Brasileirinho chega quase quatro décadas depois de a cantora, ainda na Bahia, ter ouvido falar de um certo show Opinião, realizado no Rio de Janeiro. O espetáculo era recheado de músicas de protesto, cantada por um trio de artistas que representava o samba negligenciado (Zé Kéti), o Nordeste esquecido (João do Vale) e a classe média politizada (Nara Leão). Deixou sua Santo Amaro natal ao lado do mano Caetano, fincou os pés aqui e marcou com suas digitais a verve de cantora de protesto e romântica. As impressões pareciam marcadas para o resto da vida, não fosse o flerte com a mesma raiz brasileira, porém 40 anos depois. Ela parece ter encontrado sua versão para o que Chico Buarque já chamou de tempo da delicadeza. Com CD de nome no diminutivo, como já era o embrionário Maricotinha, Bethânia se mostra sem angústias. Fase que, talvez, dure para sempre.
- Quando pensei em fazer o selo Quitanda foi por isso. Quero ter a liberdade de gravar álbuns com a mesma intenção, a mesma naturalidade. Este ano, depois do Canecão, não faço mais shows, só discos. Um será em homenagem a Rosinha de Valença (violonista que morreu há três meses). Um outro, sobre a obra de Sofia de Mello Breyner (poeta portuguesa que faleceu em julho) - diz a cantora, que deve lançar até o fim do ano o CD que gravou com as canções de Vinicius de Moraes.
Bethânia tem evitado falar de política. Não gosta de comentar a atuação do presidente Lula, nem os passos do amigo Gilberto Gil no Ministério da Cultura. No entanto, alerta, ao vivo, para a poluição das águas na canção Purificar o Subaé, de Caetano Veloso. Pela primeira vez canta Titãs, com Miséria (Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Paulo Miklos), inserida quase como rap. O grupo é lembrado ainda em Comida, da frase ''Você tem fome de quê?''. Para fechar o conceito, tão bem amarrado, Bethânia fez uma exigência louvável ao Canecão. Pediu que 450 lugares de cada dia fossem vendidos a R$ 10 e a R$ 15.
- Acho que para uma temporada é caro cobrar R$ 30. Consegui fazer com que alguns preços fossem mais em conta. Quero muito que pessoas mais pobres tenham a oportunidade de assistir.
Luciano Ribeiro - JB Online - 27/08/2004