O sol seco que ilumina o chão do Brasil
Quando Maria Bethânia chegou ao Rio de Janeiro para substituir Nara
Leão no legendário show "Opinião", duas canções marcaram a diferença de seu
canto, serviram de senha para levar o público a compreender que estava
diante de um valor novo, de uma força muito original.
Se não me engano, era logo no início do espetáculo que ela cantava
"É de Manhã", de Caetano Veloso, uma espécie de paradoxal berceuse épica
que abria numa pista falsa de malemolência boêmia e fechava com uma
invocação, uma metáfora barroca do amor que faz nascer todos os dias do
mundo. Mais adiante, no clímax do famoso show, ela fazia o público se
crispar e depois delirar de excitação, como num orgasmo que sucede à tensão,
quando cantava "Carcará", de João do Vale.
Essa canção, que a interpretação fina, inteligente e elegante de Nara
havia transformado numa espécie de hino da resistência à ditadura,
relacionando-a a uma situação social que inflamava a revolta dos justos,
transformava-se, na voz, no corpo e nos gestos de Bethânia, numa misteriosa
força vital que não tinha sido inspirada e nem dependia apenas dos embates
políticos de um momento, fossem eles travados no Rio de Janeiro da velha
Ipanema ou na miséria pungente do sertão nordestino, mas que nos atirava
a todos numa outra dimensão, às vezes inconsciente, da vida e de sua
representação no mundo. Tudo será sempre um começo, a luta continua sempre.
Assim como se ela estivesse a nos dizer que havia, por trás das
circunstâncias de nosso tempo e além delas, um outro e permanente
desconforto a ser vencido, uma tensão entre o mundo e o espírito, a qual
tínhamos o dever de enfrentar com a mesma e sagrada disposição, em direção ao
êxtase. Como naquelas duas canções, dessa relação entre tensão e êxtase,
Bethânia fez a qualidade de seu canto.
As melhores cantoras deste país, suas melhores contemporâneas,
cantaram com a cabeça, com a garganta, com o estômago, e muitas delas fizeram,
de seu modo de cantar, uma maravilha que ajudou a instalar a música popular
brasileira, com seus extraordinários compositores, cantores e músicos, no
lugar nobre que lhe está assegurado na história da arte deste século 20.
Mas Bethânia, abelha rainha, canta basicamente com todo o fluxo de
sangue que corre pelas veias de seu corpo, fonte de energia de cor de Iansã. São rios sanguíneos de paixão e ira, romance e revolta, doçura e dureza, nascidos da melhor tradição do Brasil profundo, um Brasil gentil e barroco, cheio de violência e espírito, que ainda não aprendemos a compreender.
Como em Orlando Silva, de quem, por um viés diferente do de João
Gilberto, ela é a melhor herdeira em nossa música popular, Bethânia promove
e pratica um projeto de encontro, sempre sonhado pelos nossos melhores
artistas de todas as artes, entre aquele Brasil profundo e o nosso
implacável desejo de futuro, fazendo conviver, no mesmo canto, rigor e
pranto, pastoril e rock'n'roll, vanguarda e multidão. Me perdoem o
confessional inoportuno, mas eu não consigo deixar de chorar, sempre que a
ouço cantar "Tupã, Deus do Brasil", de Villa Lobos.
Maria Bethânia é uma estrela. Não apenas no sentido convencional,
como metáfora de um corpo celeste distante de nós, um astro que possui luz
própria e fulgurante. Mas, como uma estrela, ela é sobretudo fonte de
energia, uma energia que ilumina generosamente toda a galáxia em que vive.
Ou, muito simplesmente, uma rainha do Brasil.
CARLOS DIEGUES
Cineasta, diretor de ''Quando o Carnaval Chegar'',
''Bye Bye Brasil'' e "Tieta", entre outros.