Os cantos de fé de ‘dona senhora’ Bethânia
Dois fatos levaram Maria Bethânia a Lisboa, de onde ela falou ao GLOBO por telefone, com a voz triste pela perda de Waly Salomão (“Um grande amigo que parecia adivinhar meus pensamentos”, diz).
O primeiro fato é o disco de ouro português que receberá na segunda-feira, no Hotel Sheraton, pelo CD “Maricotinha ao vivo” (cujo DVD está saindo no Brasil pela Biscoito Fino). Outro, o lançamento lá de seu “Cânticos, preces e súplicas à Senhora dos Jardins do Céu” (na mesma gravadora), que faz questão de dizer não se tratar de trabalho religioso:
— É apenas o disco de uma cantora popular homenageando Nossa Senhora.
Infância na Bahia foi impregnada de religiosidade
Com ecos, naturalmente, de um infância impregnada de religiosidade. Ela estudou no colégio de freiras do Convento dos Humildes, foi arcanjo e sombra nos oito degraus da coroação de Nossa Senhora da Purificação, padroeira de sua cidade, Santo Amaro, e é parte de uma família de católicos praticantes, a começar pela mãe, dona Canô, que recita no CD uma das ladainhas.
— Fui batizada e crismada, de tomar a bênção aos meus padrinhos e madrinhas — diz Bethânia. — Tia Jovina, por exemplo, era a primeira voz do coro da igreja de Nossa Senhora da Purificação.
Não é um disco religioso porque, se Bethânia reparte em segmentos a bela novena de Nossa Senhora, escrita no século XIX por Domingos Farias Machado, e declama versos que soam realmente como preces, intercala tudo isso com uma “Ave Maria” de Caetano Veloso e outra de Vicente Paiva e Jaime Redondo.
— Mas esta faixa está no disco? — indaga, como se apanhada de surpresa — Não pode ser... Ah, agora me lembro. Na edição doada à igreja de Santo Amaro, a sexta faixa eram versos de Cecília Meireles musicados por Sueli Costa. Mas a família não deu permissão para que entrasse também na edição comercial, daí esta “Ave Maria”, que eu não gravara para este disco.
A de Caetano, música dele para a oração, foi escrita para o casamento de amigos de Salvador. A própria Bethânia cantou-a durante a cerimônia.
— Coisas incríveis aconteceram durante a produção do disco — diz, explicando que ele começou a ser pensado durante uma viagem de avião de Salvador ao Rio. — Uma delas foi o telefonema que recebi do Waly. Chamando-me de “dona senhora”, contou que tinha sido varado de madrugada por um poema cujo endereço era a minha voz. Em silêncio, ouvi-o recitá-lo. Fiquei emocionada ao ver que, na verdade, era um poema dirigido a Nossa Senhora. E ele nem sabia que eu estava fazendo este disco...
Bethânia cita exemplos de versos de Waly que, ao seu ver, conscientemente ou não, saúdam Nossa Senhora: “Ó doce dona/ó camomila/ó belladonna/serenai minhas irremediáveis pupilas dilatadas/ó senhora dos sem remédios/domai as minhas brutas ânsias acrobáticas/que suspensas piruetam pânicas nas janelas do caos...” O poema tem por título “Feitio de oração.”
Outro detalhe é a participação de Fauzi Arap com o poema “O doce mistério de Maria”. Veio acompanhado do pedido para Bethânia cantar “O doce mistério da vida”, que ela já interpretara em “Rosa dos ventos”. Agora, numa versão mais suave, menos palco.
— A religião é manifestação muito forte na Bahia — diz. — Seja para que lado for. Preferi deixar de fora uma cantiga dos orixás, quer dizer, o lado afro da Bahia, para não misturar os ritos. E esse lado afro não é só baiano, é também de Minas, de Cuba, de toda parte.
Jaime Alem, o eterno diretor musical de Bethânia, foi outro que sentiu o projeto desde o início. Nos seus arranjos, instrumentais e corais, há um caráter solene, elegante, mas não necessariamente religioso. Na “Ave Maria” de Caetano, é a bonita voz de Nair Cândia, mulher de Alem, que se junta à de Bethânia num dos melhores momentos do disco.
Mabel Veloso, irmã de Bethânia e sua mãe-de-leite, é outra colaboradora especial no projeto. Seu livro “Candeias, milagres e romarias” contém textos seus e recolhidos, que, Bethânia, montando uma seqüência “com outros daqui e dali”, reuniu no poemeto “Mãe de Deus das candeias”. Bethânia mostrou-o a Gilberto Gil, que não só gostou como decidiu musicá-lo. O próprio Gil acrescenta voz e violão à interpretação sentida de Bethânia.
Em Portugal — terra de sua afeição — ela não só lança disco e é homenageada, mas aproveita a terça-feira, 13 de maio, para ir à igreja, Nossa Senhora sempre em mente.
Sobre ser este um disco conceitual incomum em sua obra — e haver nisso um gesto de coragem, que só uma Bethânia ousa — ela lembra que outras cantoras já gravaram discos semelhantes. Mas o seu é o seu. Menos triste ao fim do telefonema, ela se permite um comentário sobre o CD, já gravado, a ser lançado mais para o fim do ano.
— Se você acha o de Nossa Senhora corajoso, espere só para ouvir o próximo.
João Máximo
O globo on line - Rio de Janeiro - 9 de Maio de 2003