Maria Bethânia lança CD especial
Muito religiosa, desde sempre, Maria Bethânia colecionou ladainhas e músicas da tradição oral de sua terra; encomendou a amigos outras peças, que integram a quase-missa que se revela o disco Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu
Vivendo aquele estágio de vida pessoal e profissional em que pode fazer o que lhe dê vontade, Maria Bethânia tem abraçado projetos alternativos - que não interferem nos outros compromissos, nos espaços reservados ao lazer, no tempo dedicado à leitura de seus poetas.
Alguns desses projetos alternativos chegarão ao público. Outros ficarão restritos ao pequeno círculo mais íntimo, objetos mais de satisfação própria, realizações de inquietudes estéticas.
Num caso intermediário está o CD Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu. Muito religiosa, desde sempre, Maria Bethânia colecionou ladainhas e músicas da tradição oral de sua terra; encomendou a amigos outras peças, que integram a quase-missa que se revela o disco; recebeu, ainda de outras pessoas, versos que eventualmente se encaixavam na linha orientadora de seu projeto.
Foi o caso, por exemplo, das palavras de Feitio de Oração. Colaborador e amigo há muitos anos, o poeta Wally Salomão telefonou para a cantora contando que havia sido "varado", na madrugada, por um poema cujo endereço era a voz dela e nenhum outro.
Tornou-se a sétima das 14 faixas do CD. Aqui não há música: Bethânia diz os versos, em voz grave, compungida: "Ó garrafadas das ervas maceradas do breu das brenhas/ Se adonai de mim e do meu peito lacerado/ Ó Senhora dos remédios/ Ó doce dona/ Ó chá/ Ó ungüento/ Ó destilado/ Ó camomila/ Ó belladona/ Ó pharmakon/ Respingai grossas gotas de vossos venenos/ Ó doce dona..."
Mãe de leite de Bethânia, Mabel Velloso contribuiu com os - também falados, tendo como acompanhamento efeitos de percussão - versos da Ladainha de Santo Amaro, originalmente escritos para a missa de 50 anos de Bethânia, que obedecem ao formato das ladainhas tradicionais, mas acrescentam elementos contemporâneos, imagens e referências que estão além da tradição.
O CD vem encartado num libreto de 36 páginas, com as letras, as autorias, ficha técnica e um texto da cantora. Ali, ela explica como nasceu o projeto: "A idéia me veio num vôo entre Bahia e Rio de Janeiro. Primeiro veio o nome do disco tão claro, apesar de longo e pouco comum em títulos de trabalhos que faço. Gosto das palavras poderosas que carregam em si perguntas e respostas, abismos e chão firme, rios subterrâneos, mares luminosos: âmbar, álibi, talismã, etc. Mas, aqui, a minha opinião era o que menos interessava. Somente o essencial: minha fé, profundo amor por Nossa Senhora, o coração manso e a voz que Deus me deu."
Os outros números foram fechando o sentido do repertório: uma Oferta de Flores, de domínio público, a Ave Maria que Caetano Veloso musicou (e gravou no disco-solo tropicalista mas que, na verdade, havia sido composta para o casamento de amigos dos irmãos, no tempo que ainda eram estudantes, em Salvador; Bethânia juntou versos de romeiros, colecionados por Mabel, juntou outros e deu a montagem para Gilberto Gil musicar - ele toca o violão, no disco. Suely Costa tinha sua nossa Senhora da Ajuda, sobre versos de Cecília Meireles - e assim se foi fazendo a obra. Os arranjos delicados, quando necessário, solenes, de Jaime Alem reforçam, no resultado o tom solene e no entanto íntimo que só uma grande artista, de grande fé, ousaria.
Mauro Dias
O Estado de São Paulo - 07 de fev. de 2001