Final da tarde de quinta-feira, 17 de agosto. Nos camarins da Concha Acústica
do Teatro Castro Alves, mulheres muito especiais se tratam como que se
preparando para o grande acontecimento de suas vidas. Parece mesmo ser assim:
o grande acontecimento da vida de cada uma delas. Num deles, três jovens
cantoras - Belô Veloso, Jussara Silveira e Vânia Abreu - se maquiam,
aguardam a passadeira terminar o vestido, fazem brincadeiras e tentam
disfarçar o nervosismo. Num outro, uma veterana - Alcione - dá o trato
especial nos cabelos que hoje são quase muito loiros e rejeita a
possibilidade de que um fotógrafo registre este momento tão íntimo.
No terceiro camarim, ninguém sabe o que ocorre, mas sabem todos que é
um ritual muito especial. Quem conseguiu vê-lo antes, ornamentado em
reverência ao orixá Oxum, com pétalas de rosas amarelas salpicadas
e um retrato de mãe Menininha do Gantois sobre a bancada, sabia que
ali estaria acontecendo naquele final de tarde algo muito especial.
Era a Rainha da Noite que vinha, pode-se assim dizer, se preparando
para cumprir seu ritual mais sagrado: cantar.
Maria Bethânia, como sempre faz antes de seus espetáculos, trancafia-se
no camarim e mergulha em silêncio profundo. Dali a pouco,
ela cumpriria dois ritos numa só oportunidade: comemoraria os seus 35 anos
de carreira e endossaria a carreira das três jovens cantoras que, em seus
camarins, não conseguiam esconder o nervosismo por dividir o palco com
aquela em quem aprenderam a se espelhar quando decidiram que cantar seria
seu ofício.
Enquanto tudo isso acontecia nos bastidores, os porões da Concha Acústica
se abriam e as arquibancadas começavam a ser tomadas. Como era para
acontecer um show em homenagem às vozes femininas, as mulheres que chegavam
recebiam à entrada uma rosa vermelha. E foram milhares delas. Mais de cinco
mil pessoas superlotaram a renovada área externa de shows do Teatro Castro
Alves, em Salvador (BA).
A partir do momento em que os primeiros acordes saíram da banda base do show,
a noite foi de Maria Bethânia. Ela entrou em cena como sempre faz: cantando
com a alma e fazendo do palco o seu altar. As rosas vermelhas voaram das mãos
do público e forraram o chão do palco em que ela pisava. Recebeu Alcione,
sua primeira convidada e o encontro fez levantar a massa. Num show de
generosidade chamou as meninas, uma a uma ao palco, cantou com todas elas,
e sentou-se num banquinho ao lado vendo cada uma fazer sua apresentação-solo.
Na coxia Nana Caymmi, que se apresentaria na sexta-feira com Adriana
Calcanhoto e a baiana Noeme Bastos, se desmanchava em lágrimas. Foram mais
de duas horas de uma noite que parece acenar como um divisor de águas na
música popular brasileira. Ao apresentar as novas cantoras, Bethânia
chamou-as ao palco convidando o público ao ouvir as novas vozes do Brasil. E o chamado da madrinha teve um peso tão significativo que, ainda que as meninas não tivessem realmente as melhores vozes da nova geração da MPB, certamente que a multidão da Concha as teria ovacionado.
Daqui por diante, não dá para não perceber as vozes de Jussara Silveira,
Vânia Abreu e Belô Veloso e concordar com Maria Bethânia quando, sabiamente,
diz que o Brasil é um país de cantoras.
Vanderlei Carvalho
sobre o projeto Caixa Acústica: Mulheres
Maria Bethânia e convidadas: Alcione, Jussara Silveira,
Belô Velloso e Vânia Abreu
Salvador - 08/2000