Bethânia por Cora Rónai

Ando muito sensível com o abandono do Rio. Olho para a minha cidade como quem olha para um amor ferido: a ressaca no Leblon, a luz das tardes do Aterro, as capivaras da Lagoa, as revoadas de pássaros — tudo me dói no coração, tudo me lembra que, tanto aqui quanto em Brasília, temos governos incapazes de se comoverem com toda esta beleza ameaçada. O sol se põe por trás das montanhas, a lua cheia brilha sobre as águas e a revolta quase me sufoca: como podem existir pessoas para quem o destino deste lugar abençoado signifique tão pouco?! Que espécie perversa de cegos está no poder?!

“Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água,
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...”

Pois é; mas vocês precisam ouvir esses lindos versos do Vinicius ditos pela Maria Bethânia! “Brasileirinho”, que voltou ao Canecão na semana passada e fica em cartaz até domingo, é absolutamente emocionante, um dos espetáculos mais bonitos que já vi. Ali está o Brasil do coração da gente, essa mistura de ternura e perplexidade que nos acompanha e é tão sutil, tão distante dos ufanismos políticos; a pátria gentil e amada, tão rica na sua simplicidade e tão complexa nos seus sentimentos; a pátria que, traduzida em música, consegue o prodígio de alcançar o âmago do coração urbano com um luar do sertão. “Brasileirinho” toca naquela parte recôndita da alma brasileira que resiste aos modismos e ao som enlatado da globalização. Não há erros neste show de acertos, do cenário de Gringo Cardia à luz de Maneco Quinderé, da direção de Bia Lessa aos arranjos e à regência de Jaime Alem; e, claro, acima de tudo, a voz e a presença inigualáveis de Maria Bethânia.

Devo dizer, aliás, que sou devota de Maria Bethânia, que divide o altar da minha máxima admiração com Fernanda Montenegro. Gosto muito de inúmeros artistas, sou fã sincera de vários deles mas, diante de Bethânia e de Fernanda, tenho sempre a sensação de estar na presença de seres de outra dimensão, habitantes talvez de um planeta diferente, onde as pessoas já evoluíram o suficiente para descobrir a verdadeira essência das coisas. Agradeço à minha boa estrela o privilégio de ter nascido no tempo dessas duas mulheres extraordinárias, para além do talento curiosamente tão parecidas também na sabedoria, no recato e na elegância.



Cora Rónai

Jornalista e escritora
Globo On Line - Quinta-feira, 2 de setembro de 2004





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