Bethânia por Maria Lucia Dahl


Os shows da vida que Bethânia me fez lembrar

Sexta-feira minha amiga Bitucha me convidou pra ver Bethânia no Canecão. Diante da minha indecisão, ela disse que já tinha visto o show e que ele era simplesmente imperdível. Pensei na Maria Bethânia, de quem Anecy Rocha falava como sua melhor amiga na Bahia e melhor cantora do Brasil, muito antes dela ser Maria Bethânia e cantar para o Brasil. Conheci sua voz através de uma fita que Anecy me mostrou sobre canções brasileiras antigas. Um dia, Anecy, que estava viajando, me ligou pra dizer que sua amiga da Bahia ia substituir a Nara Leão no Teatro Opinião.

Fui assistir ao show e depois cumprimentar Bethânia no camarim e dizer que tínhamos em comum a amizade da Néci. Mas ela não me deu chance de falar. Depois que a cumprimentei, disse-me um ''obrigada'' seco, com a mão estendida, e se virou de costas, sem um sorriso sequer. Contei pra Néci, que riu e disse que era um número que ela gostava de fazer. Mas eu passei muito tempo com uma impressão desagradável de Bethânia, mesmo ela tendo ido à casa dos meus pais com a Suzana Moraes, e na minha, com Anecy, Gilberto Gil, Nana Caymmi e Guilherme Araújo. Ficava calada e não demonstrava o humor incrível das histórias que Néci me contava dela.

Por causa disso, impliquei e, apesar de ouvir muito Carcará, em 45 rotações, achava-a exageradamente dramática. Depois daqueles seus shows dirigidos por Fauzi Arap, que fizeram fama, só me lembro mesmo de assistir a seu irmão Caetano ou ouvi-lo cantar no exílio, London, London, in loco. Mas agora, graças a Bitucha, que jurou que eu me arrependeria amargamente se não fosse ao Canecão, tive o privilégio de assistir a algo que não presenciava desde a década de 80. Digo 80 porque não me lembro de ter visto nada que me desse vontade de repetir ad aeternum ou que me emocionasse tanto quanto Brasileirinho, desde Gal fatal, Gal tropical, Novos Baianos ou Vinicius, Tom, Miúcha, Toquinho e Edson Frederico, esses últimos também no Canecão. Eram shows obrigatórios, que se viam inúmeras vezes, em que se cantava junto, se ria, chorava e se emocionava. E comentava. Obrigatórios também eram os shows das Frenéticas no Dancin' Days do Shopping da Gávea, de onde guardo até hoje o cartão de entrada. O show das Frenéticas era diferente, obviamente, e sua proposta era divertir. Mas divertir muito mesmo, na época mais divertida da minha vida, como se o Dancin'Days fosse um substituto do Black Horse dos anos 60, onde eu ia aprender a dançar cha-cha-cha com o Bob Zagury e voltar pra casa de pilequinho de uísque Drury's (!) cantando Pepito, mi corazon, o sol entrando pela porta da boate, com o Pica-Pau, leão de chácara, dando bom-dia.

São épocas memoráveis da minha vida: o Black, o Dancin'n Days, os shows da Gal com aquele cabelo incrível e corpo irretocável cantando Baby, os Novos Baianos tocando Brasil pandeiro, acho que no palco do Cinema Astória, as Frenéticas bonitas e gostosas no Dancin. E depois, bem depois, foi Adriana Calcanhotto, no Mistura Fina, criando uma versão especial pro Caminhoneiro, de Roberto Carlos.

Fora isso, o que assisti era uma coisa comportada, sem graça, algumas de qualidade até, outras só chatas, déjà vu e nada, mas nada mesmo que eu quisesse ver de novo, que me fizesse vibrar ou que se comparasse de longe a Vinicius e Tom contando histórias de Ipanema entre um e outro uísque no palco, antes de cantarem a Ipanema da época pré-Sergio Dourado com aquela paixão e deslumbramento.

Paixão e deslumbramento igual ao que vi Bethânia cantar Luar do sertão, Vai boiadeiro que a noite já vem, Sussuarana e outras canções do gênero que ouvia meu pai tocar ao violão e que aprendi eu mesma, depois, com Patrício Teixeira, meu professor querido, cujos cadernos com as letras e posições guardo até hoje. ''João Valentão é brigão...''

Mágicos também são os cenários, e a luz do show é de uma simplicidade e requinte impressionantes. Meu Deus, o que é o Brasil pra quem entende bem dele?

Gostei até de sair de novo por causa desse show. Estava achando tudo meio chato, meio pau, como dizia minha avó. Sair pra quê, se não tem mais Black, Tom, Vinicius, Novos Baianos, Frenéticas, Dancin'Days?

Mas tem Bethânia cantando Luar do sertão, e se ela me desse uma colher de chá e acrescentasse Anda, Luzia ao incrível repertório já constituído, acho que levava um colchonete e acampava pra sempre no Canecão.


Maria Lucia Dahl

Atriz e colunista do Jornal do Brasil
JB Online - 10/09/2004





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