Dentro do Mar tem Rio – Maria Bethânia Ao Vivo




“Perto de muita água tudo é feliz”. Maria Bethânia faz deste trecho de Guimarães Rosa a máxima de seu novo disco, Dentro do Mar Tem Rio – Maria Bethânia Ao Vivo, registro do show homônimo, aplaudido por platéias emocionadas no Brasil, América Latina e Europa em um ano de turnê. O espetáculo que dá origem a esse ao vivo é fruto dos dois discos lançados simultaneamente pela cantora em 2006: em Mar de Sophia, Bethânia canta o mar e seus símbolos a partir da poesia de Sophia de Mello Breyner. Já em Pirata, ela viaja pelo universo folclórico e afetivo das águas dos rios do interior do Brasil.


No espetáculo essas águas se encontram e se misturam harmoniosamente, cumprindo com rigor a premissa “Dentro do mar tem rio. Dentro de mim tem o quê? Vento, raio, trovão, as águas do meu querer...”, presente na letra de Capinan para a melodia de Roberto Mendes em Beira-Mar: no universo de Bethânia, responsável pelo roteiro do show (que conta com a colaboração de Fauzi Arap), o rio de Jereré (da bucólica canção de Joubert de Carvalho e Olegário Mariano, De Papo pro Ar), o Riacho do Navio (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e as águas tépidas do mar da Bahia (em Kirimurê, de Jota Velloso) estão muito próximos. Bethânia dá vazão às suas memórias e paixões para construir uma narrativa pontuada pela coerência, e banhada pelas águas da simbologia que alimenta lendas, mitos e histórias:


- “Esse show é pontuado por dualidades: Bethânia dentro do mar, e Bethânia observando o mar. Ao passo que ela se insere e mergulha profundamente nestas águas, possui também um distanciamento crítico. Ao mesmo tempo que Bethânia perpassa toda aquela dramaticidade que é só dela, fruto de um entendimento absoluto da tragédia humana, ela está na verdade muito leve, meio que rindo disso tudo. Esse espetáculo é uma grande radiografia de Bethânia através das águas, um diálogo entre ela e o universo”, sentencia Bia Lessa, que assina a direção do show.


A cantora não só radiografa a si própria, como também ao Brasil. O elemento água funciona em muitos momentos como uma lente alegórica pela qual Bethânia traz à tona o que a aflige e fascina num país de irônicas disparidades: o Brasil abundante em água potável e material humano sendo tragado pelo Brasil da seca perene e da prepotência. Tanto que dedica o bloco inicial do disco, e parte de sua aflição, justamente à escassez de água com a trinca Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), Grão de Mar (Chico César e Márcio Arantes) e O Nome da Cidade (Caetano). De forma lúdica, tristes verdades se escancaram.


Mas o Brasil tem fé. O sincretismo religioso marca presença através dos símbolos da religião africana, casos de Canto de Oxum (Toquinho/Vinicius de Moraes),Yemanjá Rainha do Mar (Pedro Amorim/Paulo César Pinheiro) e a autobiográfica A Dona do Raio e do Vento (Paulo César Pinheiro); e do catolicismo, com São Francisco - em Francisco, Francisco (Roberto Mendes/Capinan)- e São José- em Meu Divino São José (Domínio Público). Temas como Pedrinha Miudinha, Cantigas Populares e Cirandas,todas de domínio público, evidenciam a força da criação singela e rica em significados do artista popular. A mítica figura do marinheiro, destemido e solitário, aparece tanto na baianidade de Marinheiro Só (Caetano Veloso) e do ijexá Memórias do Mar (Vevé Calzans e Jorge Portugal), quanto no fado O Marujo Português (Linhares Barbosa e Artur Ribeiro).


Cantora reconhecida pelas interpretações definitivas, em que acaba assumindo, intuitivamente, a co-autoria das canções, Bethânia agrega neste disco compositores a primeira vista tão díspares entre si, mas que diluídos num roteiro que prima pela coesão, tornam-se fundamentalmente complementares. Dessa forma, há desde contemporâneos, que comparecem com canções feitas especialmente para a cantora, casos de Eu Que Não Sei Quase Nada do Mar (Ana Carolina/Jorge Vercilo) e Sereia de Água Doce (Vanessa da Mata), com exceção da inconformada Debaixo D’Água (Arnaldo Antunes), ligada a Agora, dos Titãs - esta já gravada pelo compositor; passando pelos conterrâneos Dorival Caymmi – em História pro Sinhozinho, Sábado em Copacabana (com Carlos Guinle) e Canto de Nanã (que abre o disco numa alusão ao orixá ancião que representa o início de tudo)-, Roque Ferreira com Lágrima; e Roberto Mendes – Memória das Águas e Filosofia Pura (com Jorge Portugal) além da já citada Francisco, Francisco (com Capinan).


As águas de Bethânia também mergulham na cadência sincopada do samba, tanto o carioca - com o samba-enredo da Portela Das Maravilhas do Mar, Fez-se o Esplendor de Uma Noite (David Corrêa/ Jorge Machado) e Água de Cachoeira (Jovelina Pérola Negra/Labre/Carlito Cavalcanti)- quanto um legítimo representante do samba de roda baiano- com Santo Amaro (Roque Ferreira/Délcio Carvalho). As marchinhas de carnaval também têm vez com o medley A-la-la-ô (Haroldo Lobo e Nássara), Chiquita Bacana (Alberto Ribeiro e João de Barro), Chuva, Suor e Cerveja (Caetano), Água Lava Tudo (Paquito, Jorge Gonçalves e Romeu Gentil) e Frevo Molhado (Jaime Alem).


Da seara de grandes sucessos da cantora, estão Gostoso Demais (Dominguinhos), Você (Roberto e Erasmo Carlos) e Sob Medida (Chico Buarque). Ligando este verdadeiro relicário de ritmos, temas e Brasis trechos de Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Antonio Vieira (poetas que traduzem de forma muito peculiar a alma brasileira), além, é claro, dos poemas marítimos de Sophia de Mello Breyner.


Em Dentro do Mar Tem Rio, Bethânia celebra as águas que banham os sentimentos mais profundos: dos amores e desamores, da relação com a terra e tudo que dela emana, do enlace entre o sagrado e o humano, da reverência às próprias referências- “Meu Deus deixou de lembrança/ Na história dos sambaquis/Na fome da minha gente/E nos traços que eu guardo em mim/Minha voz é flecha ardente/ Nos catimbós que vivem aqui”, profecia em Kirimurê. As águas aqui funcionam como uma ilustração do Brasil captado e cantado por Bethânia, o que faz dela uma cronista do seu tempo e da sua gente. A cada canção, se emociona,assusta e comove com o que vê a sua volta. Termina indignada e contundente em Ultimatum (Álvaro de Campos) e Movimento do Barcos (Macalé e Capinan), mas a fé é redentora: “E tu Brasil? Blague de Pedro Álvares Cabral que nem te queria descobrir....Tudo que aí está a apodrecer a vida, quando muito, é estrume para o futuro....Mas o que aí está não pode durar porque não é nada...[..] Não sou eu quem vai ficar no porto chorando não, lamentando...”. “E a sensação divina de dominar quem domina é que cura qualquer dor”.Cidadania pura...


Sidimir Sanches

Biscoito Fino


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