Canções demais para canto único
Mario Marques
O ano é mesmo de aplausos. Chico, Elba, Djavan, Gal, daqui a pouco Ney Matogrosso, todos debruçando-se sobre CDs ao vivo. Destes, Maria Bethânia é das que mais registram seu canto no palco em disco - são 12. Não por acaso e não por quantidade, o resultado é quase sempre superior aos anteriores - e aos colegas. As 27 canções reunidas para a temporada que movimentou Rio e São Paulo este ano elevam a interpretação em "Ao vivo", apesar dos arranjos, ora grandiloqüentes ora simplistas, ora irregulares de Jaime Alem, para quem os aplausos dividem-se.
O repertório perpassa os compositores nos quais o canto de Bethânia sobrepujou a matéria-prima. "Vida" (Chico Buarque) tem o segundo registro da cantora com a riqueza das cordas que nos anos 80 fizeram falta. Ou mesmo "Olhos nos olhos", sempre presente nos shows de Bethânia quase no mesmo formato. Ou "Roda viva", da peça homônima. "Assentamento", sem o refreamento de Chico, não brilha, entretanto. "Morena do mar/Suíte dos pescadores" (Dorival Caymmi), agregadas conceitualmente sob o signo do mar, incorporam climas distintos, soando uma só canção, com quebras de ritmo e mudanças de andamento.
Maria Bethânia choca também para o mal. Antecedido por "Resposta" (Maysa), o nefasto "É o amor", sucesso de Zezé Di Camargo e Luciano, não vira um atestado romântico, como suporia a cantora. A brejeirice sertaneja ganha um alento com o verdadeiro caipira de "Luar do sertão" (Catulo da Paixão) e "Romaria" (Renato Teixeira).
Ao aproximar-se da obra de Roberto e Erasmo Carlos nos anos 60, Bethânia distinguia-se dos tropicalistas e sedimentava sua personalidade musical. "As flores do jardim da nossa casa", incluída no álbum de 1969 do Rei, perpetua tal investida. Emoldurada por violino acústico e notas ao piano soltas preenchendo o arranjo, vira cama para que Bethânia realce descomunalmente o desalento da letra.
Se as percussões deram o tom do show, no disco, seja devido ao alinhamento na mixagem, seja pelo fato de a apresentação ter sofrido ajustes nos shows posteriores, a cozinha está desativada em prol das cargas eruditas. Impostas por João Carlos Coutinho (piano/teclados), Marcio Mallard (violoncelo) e Ricardo Amado (violino), viram marca e marco do show.
Os medleys impossibilitam um foco maior sobre a consistência do roteiro do show - e praticamente são determinantes para períodos parcos de irritação. O recurso sobrecarrega o ouvinte de atenção e, se ao vivo leva à desconcentração em demasiadas canções, no disco é entediante. Trata-se de Bethânia, é claro, voz onipresente do ar brasileiro. E trata-se de senso, igualmente.
Neste sentido, ela é coerente apenas com as coisas do irmão Caetano - e Gil. "As Ayabás"/"Iansã" não dividem autor. Mas a Bethânia que fecha o show e o disco com "Na carreira" (Edu e Chico) parece mesmo levar-se pelas fusões de letras, melodias e ritmos. Concatena-os com a máxima certeza de sua proposta estética. Como experimento de sua própria verve, serve de contraponto ao que sempre fez, interpretar cada canção como se fosse a última vez. Entretanto, o mesmo foco não tem o mais encantado fã.
O disco duplo, produzido por Guto Graça Mello, foi gravado na temporada de três semanas no Canecão. Como todo trabalho ao vivo registrado no Brasil, parece, não obstante o talento e o timbre poderoso de Bethânia, todo remodelado no estúdio. E hoje, com o mercado fonográfico em busca de custo baixo de gravação e vendas maiores (tendência dos últimos resultados de CDs ao vivo), não havia de se esperar algo de Bethânia senão o máximo de qualidade sonora. Isso seu disco oferece. Oferece mais até. Uma gama de canções. Muitas canções até.
Bethânia compõe "mapas afetivos" do país
em "Diamante Verdadeiro"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Deve-se tomar o título do novo CD duplo ao vivo de Maria Bethânia ao pé da letra. O disco é uma jóia, e por várias razões, a sinceridade da cantora, sua coerência intransigente como artista, seu descompromisso com a mesquinharia do showbiz e as marolas do mercado não sendo as menores delas.
"Diamante Verdadeiro" é resultado do show "A Força Que Nunca Seca", nome do disco anterior, que tem entre seus méritos a "descoberta" da faixa-título, de Chico César, um achado de concisão e concentração poética, de equilíbrio tenso entre letra e música.
Como o show, o disco tem unidade, tem propósito e tem um movimento. Quando gravou "A Força Que Nunca Seca", a cantora disse que queria fazer um disco "olhando para o interior, para a região onde nasci". O projeto então esboçado se realiza plenamente, atingindo outro patamar, no show, dirigido pelo diretor teatral e antigo parceiro Fauzi Arap.
Bethânia parte da geografia, ou das geografias míticas e nostálgicas do "Brasil profundo": afunda primeiro no mar de Dorival Caymmi ("O Mar", "Morena do Mar", "Suíte dos Pescadores", "Dois de Fevereiro"), passa pelo interior idílico de "Avarandado", de Caetano Veloso, e envereda pelos "sertões" do país ("Luar do Sertão", "Azulão", "Trenzinho Caipira", "Romaria"), para concluir essa primeira etapa da viagem com "Iansã" (Caetano e Gil), espécie de oração musical primitiva ("senhora de tudo dentro de mim/ rainha dos raios/ tempo bom/ tempo ruim").
"Doce Mistério da Vida" faz a transição para o segundo disco do CD e a segunda etapa dessa viagem em três tempos. É a canção romântica, o país brega-afetivo, que agora dá a tônica; Bethânia passa da geografia do Brasil profundo para a geografia interna do país sentimental. Aí está Roberto Carlos ("Outra vez", "Não Tenha Medo", "As Flores do Jardim da Nossa Casa"), aí estão Maysa ("Resposta"), Zezé di Camargo ("É o Amor"), Pixinguinha ("Fala Baixinho"), Chico Buarque ("Olhos nos Olhos").
"Sonho Meu", de Yvone Lara, faz a transição para o movimento final do disco. "Vá buscar quem mora longe", pede a canção, e Bethânia cumpre a tarefa, política, numa explosão de força.
Vêm então "Marginália 2", "A Força Que Nunca Seca", "Assentamento" e "Roda-Viva", a mítica "Carcará", uma leitura solene e amarga de um trecho do "Navio Negreiro", de Castro Alves.
O saldo da viagem: Bethânia compõe mapas geográficos-afetivos do país, de fora para dentro e de dentro para fora, gritando no fim, de modo engajado, e sem receio de sê-lo, que alguma coisa essencial nesse percurso se perdeu, que o país, enfim, se perdeu.
Há muitos recados implícitos nesse "Diamante Verdadeiro". Para o mano Caetano (o contraste entre os "navios negreiros" de um e outro é evidente), para a frieza burocrática com que Gal Costa relê a bossa nova, para o país de ACM e FHC, para o barateamento da cultura, o arrivismo em voga, a indiferença, a falta de critérios. Bethânia faz isso cantando, ocupando com a voz e os pés descalços todos os espaços do palco, onde se transfigura. Isso basta.
Diamante Verdadeiro' segue a brilhante tradição
da cantora de registrar shows em disco
MAURO DIAS
Maria Bethânia canta para sua personagem, Maria Bethânia: "Brilhante, ê, de noite dentro da mata, na escuridão, luz exata, vejo você, divina, ê" - são versos de Caetano Veloso, do batuque Gema, primeira faixa cantada do mais novo disco de Bethânia, o duplo Diamante Verdadeiro, lançamento BMG, nas lojas a partir de hoje.
Ou, melhor: Maria Bethânia, personagem da primeira linha da música brasileira, canta para a música brasileira, de que faz ofício e razão de ser: "Brilhante, ê, de noite dentro da mata, na escuridão, luz exata, vejo você, divina, ê."
A duplicidade de sentido é certamente proposital. E Maria Bethânia tem o direito de confundir sua personagem de palco com a música brasileira. Como quase ninguém, ela luta por essa música, suas inflexões, sua qualidade em múltiplas formas.
O disco Diamante Verdadeiro faz uma compilação da música brasileira, o melhor dela, segundo Bethânia. E o melhor da música brasileira passou pela voz de Bethânia, nos últimos 35 anos - desde que ela estreou para o grande público, em 1965, substituindo Nara Leão no show Opinião, em que dividia o palco com o maranhense João do Vale e o carioca Zé Kéti.
Opinião tinha uma narrativa muito típica da época. Tinha, dizia-se então, "conteúdo", "sentido", "mensagem". Confrontava o nordestino migrante, o negro do morro do Rio, a moça de classe média. Nara Leão viveu à maravilha a moça de classe média. Bethânia começou ali a construir seu personagem, e, para tanto, embaralhou os personagens da cena. Consagrou-se não pela imagem bem-comportada da moça da zona sul (Nara era moça da zona sul), mas pelo vigor com que encarnou o pássaro que pega, mata e come, o carcará do baião de João do Vale.
E assim seguiu, subvertendo as questões de gosto, reinventando os papéis. Sua força no palco é ilimitada e insuperável, e ela sabe disso. Considera-se mais uma intérprete - uma atrriz - do que uma cantora. O bicho de palco. Um ser da cena.
Maria Bethânia deu qualidade a uma brilhante tradição de discos gravados ao vivo, inaugurada com o memorável Recital da Boîte Barroco, de 1968. Diamante Verdadeiro é seu 13º registro ao vivo. O título sai de um choro de Caetano Veloso, gravado por ela mesma, no disco Álibi, de 1978. A letra diz assim: "Enquanto eu invento e desinvento moda, minha roupa, minha roda, brinco entre o que deve e o que não deve ser" - e enfatiza: "Eu sou primeiro, eu sou mais leve, eu sou mais eu." Não há muita gente que possa cantar essas palavras, dizendo irretocáveis verdades.
Diamante Verdadeiro foi gravado em agosto, durante a temporada carioca de três semanas do show A Força Que nunca Seca. O show vai, naturalmente, continuar em cartaz, por mais um ano, revigorado pelo lançamento do disco. Que contém os 27 números do espetáculo (alguns números agrupam mais de uma canção, eventualmente textos - de Fernando Pessoa, que ela sempre gostou de dizer, de Castro Alves). Do poeta baiano, Bethânia escolheu trechos do Navio Negreiro ( "Legiões de homens negros como a noite/ Horrendos a dançar./ Negras mulheres/ Levantando as tetas/ Magras crianças/ Cujas bocas pretas/ Regam o sangue das mães").
"E existe um povo que a bandeira empresta/ Para cobrir tanta infâmia e covardia", segue o poema dramático de Castro Alves. Seguindo orientação do irmão Caetano Veloso, Maria Bethânia faz soar, sob as palavras, o batuque dos tambores do Pelourinho - a Bahia imutável em seu explendor e miséria.
Quem responde por esse e por todos os outros arranjos do show e do disco é o violonista Jaima Álem, parceiro - cúmplice estético - de Maria Bethânia há quase 30 anos. É dele a faixa, instrumental, que abre o disco, Senhora do Vento Norte. A música dá partida à viagem que envolve o público numa breve história da música brasileira, história de Maria Bethânia.
E de fato: ela foi buscar as canções de mar de Dorival Caymmi, as interrogações do tempo de Edu Lobo e Capinam, o desespero esperançoso de Chico Buarque, a luz do sertão, o trem que corta os interiores, o canto da tempestade, a voz dos santos dos terreiros de umbanda, a poesia dura e terna de Tite de Lemos ("Encouraçado nos meu agasalhos/ Nessa vaguíssima avenida/ Nessa lentíssima espreguiçadeira/ No seio dessa tarde confortável", versos para a canção Encouraçado, de Sueli Costa), a ternura de Pixinguinha, a saudade, as saudades, as saudades.
A faixa que encerra o disco é Na Carreira, de Edu Lobo e Chico Buarque, música menos conhecida do roteiro do balé O Grande Circo Místico. É uma composição que celebra o prazer do palco, a saudade dos portos, a vida do artista. O Grande Circo Místico encerrava-se (o espetáculo, como o disco) como Na Carreria. A música virou tabu. Ninguém mais a cantou, desde o lançamento da trilha do balé, em 1980.
No entanto, Na Carreira é a música para encerrar um espetáculo de música. Joga com a duplicidade do título - o substantivo carreira, como exercício profissional, depois retomado com o sendo de pressa, necessidade de partir.
"Toda alma de artista quer partir", diz um dos versos escritos por Chico Buarque. A música é levada em tom de fanfarra: "Pintar/ Vestir/ Virar uma agurdente para a próxima função/ Rezar/ Cuspir/ Surgir repentinamente na frente do telão/ Mais um dia/ Mais uma cidade pra se apaixonar/ Querer casar/ Pedir a mão/ Saltar/ Sair/ Partir pé ante pé/ Ante do povo despertar..."
O roteiro de Diamante Verdadeiro é repleto dessas confissões. Às vezes são óbvias - num texto de Fernando Pessoa, Maria Bethânia lembra: "O poeta é um fingidor" -, outras vezes são sutis, auto-referentes: "Oh, abelha rainha, faz de mim/ Instrumento de teu prazer, sim", canta-se a personagem, em Mel, de Caetano Veloso e Wally Salomão.
Diamante Verdadeiro é um disco na primeira pessoa, como todos os de Bethânia, com os riscos que isso implica. Divide-se em três atos, como ela quer - um que fala da natureza, o mar, o sertão, outro que trata do amor, mais um que politiza as questões, denuncia horrores, assusta-se com o mundo - mas segue em frente. O sertão de Bethânia tem tanto o Trenzinho do Caipira, versos de Ferreira Gullar para a obra de Villa-Lobos, quanto os versos delicados de Manuel Bandeira para a toada Azulão, de Jayme Ovalle, quanto a cantiga É o Amor, de Zezé di Camargo, representante emblemática da pior música brasileira dos anos 90.
Bethânia não recebe ordens e segue sua intuição. Não acata o que dizem - como ela os chama - os donos da verdade da música brasileira. Acha É o Amor bonito - e consegue transformar a canção, em cena, num momento de verdades. Mas, se passa sobre a força simbólica da música, despe-a de suas idiossincrasias para deixá-la apenas como é, uma cantiga, evidencia, talvez sem querer, que é apenas isso, uma cantiga entre muitas.
Destoa do repertório, mas não o macula. O melhor que soou da música brasileira, neste século, foi revisto por Bethânia, em sua longa e honrosa, honestíssima carreira. Ela é uma autoridade e como tal se comporta. Diamante Verdadeiro, mais uma vez, afirma suas convicções. É um disco deslumbrante, registro de um dos momentos mais emocinantes do palco brasileiro. É a trilha sonora de um mundo melhor, que todos queremos.