'Outros (doces) bárbaros' mostra Gil, Caetano, Gal e Bethânia 26 anos depois da primeira reunião

RIO - "Será que ainda temos o que fazer na cidade?", pergunta Gilberto Gil no primeiro verso de "Outros bárbaros", marcha-rancho algo melancólica que compôs especialmente para seu reencontro com Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gal Costa - uma reedição dos Doces Bárbaros apenas para dois shows, no fim de 2002. Bethânia, ao seu lado, entende tudo e repete "linda, linda". A cena está no documentário "Outros (doces) bárbaros", de Andrucha Waddington, que a Biscoito Fino lança em DVD. Mais que registrar o show, o filme refaz a pergunta da canção: será que, 26 anos depois da reunião original, quando "cheios de felicidade" invadiram a "cidade amada", eles ainda têm o que fazer na cidade?

- A idéia não era fazer um DVD musical - explicou Waddington, depois de uma exibição para a imprensa nesta quarta-feira. - Tentei mostrar quem eram essas pessoas, 26 anos depois, o que elas se tornaram. Mais que a personalidade individual de cada um, queria captar o que Bethânia chamou de "alma-grupo". Quando fui convidado pela Biscoito Fino, vi que tinha a possibilidade de fazer algo com relevância histórica.

O diretor conseguiu. Alternando-se entre a intimidade dos ensaios para o show, o espetáculo em si e o registro das entrevistas coletivas feitas pelo grupo poucos dias antes de subirem ao palco, o filme faz, em primeiro plano, um retrato sensível da personalidade dos quatro artistas, juntos e individualmente. E, em segundo plano, faz uma reflexão sobre os rumos da cultura brasileira na voz de pessoas que, goste-se ou não, estiveram em sua linha de frente durante um bom tempo e hoje ainda soam pertinentes.

Os Doces Bárbaros já tinham sido temas do documentário "Doces Bárbaros", de Jom Tob Azulay, que registrava a turnê do grupo em 1976 - a obra, aliás, está em cartaz em São Paulo e em janeiro chega ao Rio. Waddington usa imagens do filme, mas diz que não procurou se basear no trabalho de Azulay.

- Não quis fazer um filme que já foi feito. Mais importante que os fatos históricos para mim era, por exemplo, ver Gil no estúdio contar que compôs uma música naquela manhã, antes de ir para o ensaio e mostrar a cada um deles a canção "Outros bárbaros" - disse. - Minha grande inspiração foi um filme lembrado por Hermano Vianna , "One plus one", de Godard .

No filme, há vários momentos reveladores como o citado por Waddington. Há Bethânia chegando ao ensaio, circunspecta, óculos escuros, cara de poucos amigos, até que, ao soltar a voz em "Um índio", instaura um contraste entre seu canto grandioso e sua imagem vulgarmente humana, nada a ver com a do palco. Há conversas sobre como eles se situavam entre a Jovem Guarda e o Fino da Bossa, quando Caetano recorda que as coisas não eram tão preto-no-branco e diz que Elis era muito rock'n roll, para Gil concordar lembrando que o início da carreira da cantora foi realmente no rock. Há uma reflexão sobre a cultura pop, com Gil definindo seu gosto como um "misto de gostar e gostar de gostar" e concluindo que é por isso que, ora bolas, gosta de Sandy e Junior.

Há os encontros com a imprensa, quando Caetano diz que "essa história de ego é muito cafona", ao responder a um jornalista sobre o suposto choque de egos do grupo. Há a sensualidade madura de Gal, ao lado da imponência cúmplice de Bethânia, em "Esotérico". Há Bethânia, com a euforia do álcool na voz, contando que sentiu plenamente a liberdade dos versos de "Fé cega, faca amolada" no show do grupo em São Paulo.

Para alcançar tal grau de intimidade, o diretor escolheu usar apenas uma câmera dentro do estúdio lotado de músicos - e instalou rodinhas no tripé, para se locomover com facilidade. E outras estratégias, como filmar durante sete dias sem perguntar nada, apenas ouvindo e registrando, em busca da espontaneidade.

- O bom documentarista é o que está com a câmera ligada na hora certa - afirmou o diretor, que no total registrou 70 horas de estúdio e 50 horas de show.

As imagens dos ensaios - os quatro no estúdio concebendo o show, escolhendo as divisões de vozes, conversando sobre nada e sobre tudo - ocupa boa parte do documentário. Mas quem quer simplesmente ouvir os Doces Bárbaros não tem do que reclamar. Somando os extras, são 14 músicas ("Um índio" aparece em duas versões). Além dos clássicos do disco gravado pelo grupo em 1976 - como "Fé cega, faca amolada", "Atiraste uma pedra", "Chuckberry fields forever" e "Os mais doces bárbaros" - há duas músicas inéditas de Gil: "Máquina de ritmo", samba que une na letra Bando da Lua e o trio Moreno, Domenico e Kassin; e a citada "Outros bárbaros".

"Outros (doces) bárbaros" é o Tempo Rei de Gil, um dos deuses mais lindos de Caetano, reafirmando sua realeza e sua beleza, equilibrando-se na doçura de Gal e na força de Bethânia. Ainda há, sim, o que fazer na cidade. Nem que seja iluminar o caminho dos outros bárbaros que estão vindo ou por vir.

Leonardo Lichote
- Globo Online - 12/11/2004
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