O ano da água

Entre CDs de repertório e ao vivo, DVDs e produções do selo próprio — sem falar na longa série de shows lotados Brasil afora — foram mais de dez os trabalhos assinados por Maria Bethânia desde 2002, quando comemorou 35 anos de carreira. De férias até o Carnaval — que vai passar na sua Santo Amaro da Purificação — ela descansa, trabalhando apenas num presépio que ela gosta de montar sozinha a cada Natal. A partir de março, Bethânia — que completa 60 anos em 2006 — retoma o ritmo sideral que vem caracterizando sua maturidade artística. Comemorar, ela diz que não vai, mas uma coisa é certa: os fãs, cada vez mais reverentes, serão presenteados com um trabalho autoral sobre sua obsessão pela água, pelos rios e pelos mares. Ah, e também com um disco novo de repertório. E com shows. E com uma novidade: sua estréia no hip hop, paixão mais recente, com uma versão rap da canção “Não enche”, do mano Caetano.

Você já assistiu ao seu filme?

MARIA BETHÂNIA: Meu, não! O filme é do Georges Gachot. Eu não queria fazer. Acho grande demais essa coisa de filme. O que eu faço interessa às pessoas pelos shows e pelos discos. Nos anos 60, quando o Julio quis fazer ( o documentário “Bethânia bem de perto/A propósito de um show”, de Julio Bressane e Eduardo Escorel), eu morri de rir. Tinha 18 anos. Mas agora é diferente. Um filme sobre Bethânia é muito laudatório. Mas o rapaz insistiu, ele é muito suave, muito doce, ficou apaixonado por todo o Brasil com que eu convivo. Mas, para ser sincera, não vi o filme. Ele me mandou tantas cópias e partes, aquele rigor suíço, e eu bobamente disse que não queria uma cena, ele respondeu que o filme era dele, que ele iria botar.

Que cena é essa?

BETHÂNIA: É uma cena no camarim da estréia do show “Brasileirinho”, eu e um bando de gente querendo brincar, tomar um porre, cantar canções, falar de amor, e a Nana ( Caymmi), emocionada, cantando para mim “Medo de amar”, que é a música que ela canta mais linda na vida. Era um momento de intimidade, intimidade não quero. Por isso eu digo: o pensamento é dele, o filme é dele, eu fico ali, um personagem, uma intérprete de canções.

Mas, seja no filme, seja na série ininterrupta de discos, DVDs e shows que se iniciou com “Maricotinha” em 2002, essa intérprete é cada vez mais uma criadora.

BETHÂNIA: Desde que eu vim para a Biscoito Fino ( gravadora atual de Bethânia ) consegui uma grande sintonia com o que eu penso que é a música no Brasil. Numa multinacional, há uma série de obrigações não exatamente com a música, com a verdade, com a qualidade, com o que importa realmente. Aqui posso desenvolver o que realmente penso, e através da Quitanda (selo de Bethânia, que pertence à Biscoito Fino) , passear por folclore, cantigas de menina, e por outras coisas que me interessam. A coisa que mais me tira do sério é quando mexem com a minha liberdade. Não quero. Não admito. Não há condição. Eu morro se fizerem isso. Deixem eu me molhar, eu me queimar, eu me ensopar, mas deixem que eu faça. Um dia minha voz pode não agüentar mais cantar. Estou fazendo 60 anos neste ano que entra. Tem uma hora que a voz envelhece. Mas, criar, isso eu nunca vou deixar de fazer. Existem duas coisas que me dão mais prazer na vida. Uma delas (risos) é atuar como cantora, criadora, pegar uma canção e assiná-la, é assim que eu a leio, é onde eu crio, onde eu componho.

E quais são as próximas criações nesse ano tão importante para você que vai ser o de 2006?

BETHÂNIA: Bom, tenho por contrato ainda um disco para a Biscoito Fino, de repertório. Além desse, tenho um projeto meu, quase pronto, que são “O mar de Sofia”, “O mar de Kirimurê” ( nome original da Baía de Todos os Santos ) e “O mar de mim”.

Dá para dizer que é uma trilogia do mar de Bethânia?

BETHÂNIA: Não sei se é uma trilogia. São pontos que se ligam, e o centro da idéia na verdade não é o mar, e sim a água. O mar está dentro da coisa toda da água, que é uma obsessão para mim. Eu tenho uma atração enlouquecida pela água. Não é à toa que Caetano fez, há muitos anos, “Eu e a água” para mim.

O “Mar de Kirimurê” você já explicou. Faltam os outros dois.

BETHÂNIA: O “Mar de Sofia” é o mar da poeta Sofia de Mello Breyner, aquela poeta portuguesa por quem sou louca, e descobri que ela tinha uma coisa com o mar. O “Mar em mim” na verdade não é mar. É uma coisa sobre Santo Amaro ( da Purificação, cidade onde Bethânia nasceu), cidade que não tem mar, tem rio, quer dizer, tinha, está morto o Rio Subaé, mas as minhas infância e adolescência inteiras, quando ia para Salvador, sempre ia de barco, e Santo Amaro é a cidade do interior mais próxima, com boca de mar, de Salvador. Meu pai tinha o gosto e o prazer de levar os filhos para viajar para ilhas, passar dias em ilhas, Ilha Grande, Ilha Pequena, em canoas rústicas e barcos a vela, o rio e depois o mar... É o meu projeto, está pronto, quero entrar em estúdio.

É o disco dos seus 60 anos?

BETHÂNIA: Dos 60, não! É o disco de 2006 ( risos). Eu já estou comemorando muita coisa! É 40, é 30, é 50! Não, eu não quero nada no meu aniversário. Vou à missa, se Deus quiser, pedir a bênção à Nossa Senhora, ao Senhor do Bonfim, à minha mãe, aos meus amigos e familiares, é uma coisa muito importante nesse meu caminho de criação a amizade, os companheiros, as pessoas... peraí ... essa palavra “companheiros” ficou meio estranha, corta... ( risos )... minha vida inteira apresentei os músicos no palco como companheiros e de repente ficou meio assim... ai, minha Nossa Senhora! Por isso agora eu digo “meus colegas de trabalho”.

E no âmbito do selo pessoal? O que vai sair em 2006?

BETHÂNIA: Não sei se a água vai sair pelo Quitanda ou pelo Biscoito. Mas, de certo, depois do disco da Rosinha de Valença e da Dona Edith do Prato, acabei de fazer agora o disco da Mart’nália. Ela tinha me pedido um apoio, manifestado o desejo de ter um disco pelo selo, e eu gosto muito dela, acho que é uma menina com musicalidade e escolhas muito sofisticadas. Adoro o Martinho, meu amigo desde que cheguei, e ela estava tão apaixonada pelo que eu vinha fazendo. No final, eu acabei ficando apaixonada pelo resultado. Minha assinatura no projeto foi deixá-la livre e fazer questão de que ela fizesse uma coisa só da própria cabeça e cantada por ela, sem participações como nos outros discos, e com repertório só com o que ela gosta, desse Rio amplo que é o Rio dela. No CD há coisas da Ana Carolina, do Totonho Villeroy, do Guilherme Arantes, de Monsueto... Ficou lindo o olhar dela, o Rio dela, como vê, como sente, como dói.

Você vem namorando novas parcerias, novos compositores?

BETHÂNIA: Eu fico vendo tudo. Ouço cada coisa... e agora eu acabei de receber as coisas de um cara, eu não entendi nada, não sei quem é ele, é um negro com um vozeirão assim, que faz um pouco de poesia repentista, um pouco... não entendo direito... mas ele fala, ele fala muito bem, parece o Glauber, parece o Waly, aquelas vozes empostadas, mesma coisa... e é um homem do povo, falando dos poetas populares do Brasil... ( risos). Ouço também muita coisa ligada a esse assunto da água, no nosso cancioneiro é o que não falta. O mar é a coisa mais livre, mesmo quando não tem mar, como o mar de Santo Amaro, aquele valezinho todo cercado de cachoeiras, ainda vivas, vou muito lá tomar banho. Tem umas coisas que não podem estar fora da idéia da água no disco... o timbre falado do Arnaldo Antunes, aquilo é uma água no meu ouvido. A voz de Nana é uma água subterrânea que eu sempre vejo. E Caymmi, claro, não pode ficar sem.

E o que você anda ouvindo na música mais nova? O universo do hip hop interessa a você, intérprete de canções?

BETHÂNIA: Sou apaixonada pela nova geração, sou fã da Ana Carolina, e adoro a pancada toda da turma nova, Totonho, Lenine, Chico César. Do rap e do hip hop eu andei ouvindo tudo, eu adoro aquela coisa da palavra dita com uma raiva contida, uma quebrada de tempo, uma pura teatralidade... sou completamente apaixonada. Eu queria muito já ter feito alguma coisa, cheguei a pensar em encerrar a temporada do “Tempo tempo tempo” fazendo o “Não enche” do Caetano com a quebrada rap, comecei até a ensaiar, mas não deu. Eu assisto muito na televisão àquelas meninas negras americanas, estranhíssimas, maravilhosas, de uma força, todas meio operadas, com as roupas absurdas e bundas enormes, são de uma sensualidade, de uma agressão, aquilo é um murro... e uns rapazes assim que sabem que são gostosos, “eu sou o rei”, a cara deles paradinha já diz isso... passo os domingos vendo, tenho um canal que só passa isso. Mas para eu fazer tenho que estudar. Quero muito estudar todo esse mundo, e acho que no próximo show acontece.

Arnaldo Bloch
Jornal O Globo - Rio de Janeiro – 18/12/2005


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