A Estrela é Clarice

A primeira vez que Maria Bethânia leu Clarice Lispector tinha quinze anos. "Legião estrangeira", conto de Clarice, publicado na extinta revista "Senhor" - da qual o mano Caetano era leitor assíduo - deixou a então adolescente Bethânia enlouquecida. A partir daí nunca mais deixou de ler Clarice Lispector e em 67 tornou pública a paixão por sua literatura quando leu um texto dela no espetáculo "Comigo me desavim".

Desde então os textos de Clarice Lispector estiveram sempre presentes nos shows de Bethânia. Através de Fauzi Arap - que dirigiu vários espetáculos da cantora - , as duas se conheceram e em 76, Clarice deu um texto inédito para Bethânia dizer em "Pássaro Proibido". Era o embrião do que viria a ser "A Hora da Estrela", ultimo romance de Clarice. Agora o livro chega ao palco: "A Hora da Estrela" é também o nome do show que Maria Bethânia estréia quinta feira próxima no Canecão, no Rio.

Roteirizado por Naum Alves de Souza - que além de dirigir o show é autor também dos figurinos e cenários - "A Hora da Estrela" não é apenas uma condensação da história de Macabéa, a nordestina "inócua, de viver ralo" solta no Rio, mas, principalmente uma homenagem de Maria Bethânia à Clarice Lispector.

"Na verdade, é mais que um homenagem, mas uma declaração de amor. É um espetáculo para fazer Clarice feliz; ela era inteiramente ligada à música. Daí eu ter me preocupado em pedir a Caetano e a Chico Buarque, por exemplo, para fazerem canções especiais para o show", diz a cantora.

Bethânia colaborou no roteiro do espetáculo, principalmente na parte musical, pois ela e Naum tiveram o cuidado de escolher composições que se encaixassem no clima do livro. Ela não fala muito sobre as canções escolhidas, prefere que a apresentação seja uma surpresa, mas diz que "entrou de tudo; do maxixe à Hollywood". Além das inéditas - o que inclui composições de Toninho Horta (também diretor musical do espetáculo) e Waly Salomão - tem músicas de Milton Nascimento, Gonzagão e apenas duas do disco mais recente da cantora, "Ciclo".

Uma das razões que levaram Naum Alves de Souza a se interessar pelo espetáculo foi exatamente o fato de o show não ter sido pautado em cima de um disco, "ou seja de não ter a exigência de colocar tais e tais músicas no roteiro". Esse é o primeiro trabalho de Naum com Bethânia. Para ela, nada melhor do que o desafio de trabalhar com uma pessoa que nunca a tinha dirigido.

Há anos ela pensava no show, mas no ano passado, quando ouviu "A linho e o linha" de Gilberto Gil, sentiu na música o clima do texto. E alguns meses depois, decidindo-se pela montagem e convidou Naum Alves de Souza para um trabalho conjunto. Para ele, "foi difícil trabalhar com um material tão bom".

"O primeiro roteiro que fiz era enorme, uma verdadeira Bíblia. Depois, com Bethânia, fui cortando, até chegar ao essencial. Porém é bom esclarecer que não se trata de um espetáculo teatral, mas de música com um pouco de narrativa e um pouco de diálogo. A música continua a linguagem de Clarice Lispector, embora mantendo o espírito dos compositores".

Naum diz que não pretendeu fantasiar Bethânia de "Macabéa", que na definição de seu namorado, Olímpico, era "um cabelo na sopa; não dá vontade de comer". De acordo com sua concepção, a cantora entrará no palco como ela mesma, "bonita como sempre". A idéia é deixar que Clarice fale através de Bethânia.

Para contar a história de Macabéa, de Olímpico, sua paixão e da datilógrafa Glória, para quem a nordestina perde o namorado, Naum utilizou atores que vivem Olímpico (Raul Gazolla) e Glória (Jurema Strafacci). Madame Carlota, a cartomante que prevê o destino de Macabéa, também estará presente no espetáculo, mas em "off", pois dela só se ouvirá a voz. Tudo foi pensado tendo em vista a valorização do texto de Clarice Lispector.

"Na realidade", diz Bethânia, "o que me comove no livro não é a a história de Macabéa, mas a delicadeza dos sentimentos de Clarice Lispector, que era considerada uma escritora difícil, em prestar a atenção nos seres que realmente fazem este país. Macabéa é o povo e Clarice soube senti-la. Para mim a história é uma denúncia oportuna. A vida cada vez isola mais as pessoas e esse depoimento de Clarice fala de aproximação. É como se dissesse: 'preste atenção no outro'. Tem uma parte do texto que mostra bem isso ao dizer 'que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida'. Pode haver coisa mais linda?"

"A Hora da Estrela" é o livro de cabeceira de Bethânia, ainda apaixonada pela literatura de Clarice Lispector. Ela conta que conheceu a escritora em 1971 e, apesar de uma ser admiradora da arte da outra, o relacionamento entre ambas não era exatamente fácil. Bethânia nunca conseguiu sentir-se inteiramente à vontade na presença de Clarice.

"Ela tinha um olhar que me impressionava, uma postura que me parecia de rainha. E, para mim, era mesmo. Então, eu me sentia um pouco intimidada com sua presença, embora nosso relacionamento fosse afetuoso. Eu me lembro que a primeira vez que a vi foi num ensaio e ela me deu, a pedido de Fauzi Arap, um texto para que eu o lesse imediatamente. Achei que não fosse conseguir, mas ela insistiu e eu li, extremamente nervosa".

Clarice costumava assistir os espetáculos de Bethânia, que não esquece o comentário da escritora a respeito de "Rosa dos Ventos": "Esse espetáculo é eterno, não acaba nunca." E a definição de Clarice sobre a atuação de Bethânia ainda comove a cantora: "Faíscas no palco". Para declarar mais uma vez seu amor por Clarice, Bethânia quer fazer da noite de estréia sua "hora da estrela".

Músicas compostas com o maior prazer

Para Caetano não foi difícil criar, tendo em vista que a música deveria se inserir dentro do espírito da literatura de Clarice. Afinal, até "A Paixão segundo G.H.", ele foi leitor assíduo e entusiasmado da escritora. Depois, o entusiamo se arrefeceu, ele passou a se interessar por outros autores. Assim, "A Hora da Estrela" foi um dos livros de Clarice que Caetano não leu. Conheceu-o através dos comentários de Bethânia e da sinopse que Naum fez.

"Escrever igual Clarice, manter a linguagem dela não foi uma preocupação", diz Caetano. "Eu me preocupei em criar em cima do que Bethânia e Naum me pediram. Como, durante anos eu li e reli Clarice Lispector, acho que o resultado do trabalho - que às vezes, foi feito em conjunto com Waly Salomão - foi satisfatório. Gosto muito ainda de seus primeiros livros e numa das músicas presto uma homenagem ao próprio nome dela e à literatura brasileira. Foi um trabalho que fiz com o maior prazer"

Isa Cambará
Folha de São Paulo - 08/1984


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