Bethânia por Ferreira Gullar


Se uma cantora aprende a cantar e passa a cantar bem, muito bem, ela corre o perigo de cantar bem demais: ela corre o perigo de se tornar uma máquina de cantar, precisa e fria. Isso não acontece apenas com o cantor, mas com todo tipo de artista - pintor, poeta, músico. Gauguin dizia: quando aprender a pintar com a mão direita, passarei a pintar com a esquerda, e quando aprender a pintar com a esquerda, passarei a pintar com os pés. O cantor não tem tantas opções: seu risco é maior. Mas não entenda errado o que eu digo. Não estou dizendo que só quem não sabe cantar, canta bem. Estou dizendo que cantar bem não é cantar correto, segundo se afirma que é correto. Cantar bem é cantar como Bethânia canta: com calor da vida. E por isso que ela diz: "Sei que desafino às vezes. Mas eu também desafino na vida."
Bethânia é aquele tipo de cantora que não deixa dúvida. A gente ouve e já sabe: uma intérprete excepcional. O que alguns discutem é se ela é ou não a maior cantora brasileira de hoje. Mas isso é uma discussão ociosa. O que é indiscutível é que algumas de suas interpretações, de músicas atuais ou do passado, atingem aquele ponto definitivo que as torna insuperáveis. Ninguém esquecerá jamais a Bethânia do Carcará como ninguém esquecerá também a Bethânia de Anda, Luzia. A estas se somam várias outras interpretações e neste disco mesmo podemos citar, apenas como exemplo, Se todos fossem iguais a você de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ou a irônica recriação de Café Soçaite, para não falar em Baby , de Caetano Veloso, ou em Ele falava nisso todo dia , de Gilberto Gil.
Isso define uma grande capacidade de criar a interpretação definitiva, dentro de determinada época, das canções nacionais. Bethânia é uma cantora nacional, deste país, enraizada nele, e na multidão de vozes e cantos que exprimem a nossa vida destaca-se a sua, bela, já turva, já iluminada, que canta por todos nós.


Ferreira Gullar

Poeta
Texto da capa original do Recital na Boite Barroco
EMI - Odeon - 1968





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