Turnê de "A Força Que Nunca Seca", CD de orientação interiorana,
começa
por SP, onde ficará quatro semanas
Maria Bethânia interrompe o relativo silêncio com que lançou o mais
recente CD, "A Força Que Nunca Seca", e se reassocia com o encenador Fauzi
Arap,com quem trabalha intermitentemente desde os 60, para um novo
espetáculo musical/teatral, que estréia hoje, em São Paulo.Diz que a
estrutura é mais ou menos a já bem conhecida, de alguns poemas - desta vez
"Navio Negreiro", de Castro Alves, está integrado, canções do trabalho mais
recente, entre elas "É o Amor", da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano,
que ela reconverteu a hit de novela das oito, painel de carreira e de
relíquias da MPB. Bethânia falou à Folha no hotel Maksoud, na manhã de
segunda-feira. Leia trechos a seguir.
Você trocou de gravadora e lançou um novo
disco bastante discretamente.
Por quê?
Transferência de gravadora é assunto mais de chefes que para eu falar.
Quanto ao disco, foi acertado com a BMG que eu não faria o lançamento.
Não sei nem qual foi a estratégia deles. Eu ia viajar, falaram que iam
lançar e depois viam como faziam. Ficou uma coisa muito dissolvida.
Seria porque desta vez o sucesso de
"É o Amor" falou por você, fazendo divulgação e marketing
que você teria que fazer?
Acho que as gravadoras todas trabalham, no ideal, para que
entre uma música na novela, para que você faça o Faustão e pronto, está bom.
Só entrei na novela. Marquei dez vezes o Faustão e não fui, estou até com
vergonha.Não gosto de TV. Fui à Hebe Camargo, antes de entrar, no camarim,
eu chorava: "Pelo bem que você me quer, me deixa ir embora". Eu soluçava.
Não sou craque em TV, fico perdida, assustada.
Tem a ver com o circo de horrores que tomou a TV?
Nunca vi um programa inteiro do Ratinho. Sei da figura dele, do sucesso dele. Se agora está circense,
para mim sempre foi um pouco, até no tom que as pessoas usam.
Não estou acostumada, lá em casa falo baixo, sempre falei.
Esses depoimentos são da mesma pessoa
que faz sucesso com "É o Amor",
sucesso popularesco de dupla sertaneja.
Não entendo por que você pergunta uma coisa junto da outra.
Não acho que faça parte do mesmo universo. Discordo.
A música era tema de propaganda do condimento Sazon.
Não tenho nada a ver com a propaganda do Sazon. Essa música, para mim, é bonita. O mínimo
que me resta na vida é um pouco de liberdade (ri). Todo mundo noticiou
que Mariozinho Rocha, da Globo, me pediu para gravar para a novela das
oito. Não tem nada a ver, fui eu quem quis.Era um momento em que ia fazer
um disco olhando para o interior, para a região onde nasci, o Nordeste.
"É o Amor" é uma canção que sinto que toca toda essa gente do interior.
Faz parte do meu pensamento, não está fora de nada.
Até entre sua legião de fãs houve reações do
tipo "ela não precisava ter feito isso".
Ficaram chocados. Mas não é questão de precisar, é querer.
O entendimento está errado. Às pessoas que se vêem refletidas na minha arte,
é bobagem pensar que tenham algum controle ou conhecimento completo de mim.
O Brasil é misturado, eu sou brasileira. Do mesmo modo que adoro Chico Buarque,
minha sensibilidade também é tocada por uma canção que não é um primor de
qualidade musical. Não fico surpreendida nem triste que algumas pessoas da
minha legião se decepcionem, mas isso é uma bobagem.
Você gravaria "Pense em Mim"?
Não, essa já não acho bonita. Fiquei comovida quando aquele menino morreu, mas não acho uma música para eu cantar.
Não me comove. "É o Amor", sim. Até mudei um pouquinho da melodia,
eles fazem naquele estilo deles de cantar, duas ou três notas, que não
acho bonito, tirei.
Ao lado dos sertanejos, no disco,
está Villa-Lobos. Qual é a unidade entre eles?
Não sei nem se tem unidade. O Brasil e o mundo estão assim,
está tudo muito desgarrado. É como sinto, principalmente minha região,
de índias castradas com parabólicas, computadores na seca, onde não brota
nada.O Brasil sempre foi isso. É uma mistura, uma confusão.
Temos Villa-Lobos, Tom Jobim, temos o sucesso de programas do Tchan,
do Ratinho, o padre que canta, o homem da outra religião que faz, a mulher
que dança. Não estou dizendo que é bom ou ruim, só que é assim. Estou apenas
constatando.
Seu repertório e o de Elis Regina
nunca se tocaram muito.
Por que gravou agora "Romaria"?
A interpretação de Elis é única. O que faço é quase uma oração, é fora do que é a canção. Parti a canção toda
para não ter esse elo. A versão dela é definitiva. O que faço é trazer minha
assinaturazinha. Como minha região é muito miserável e muito crente, essa
canção não poderia estar fora de jeito nenhum. É comovente, com tanta
miséria e dor fica difícil crer às vezes. Às vezes sou um pouco rebelde
com minha fé, apesar de ter muita.
O lado alegre da música de sua região não aparece no disco.
Tem a ver
com a morte de mãe Cleusa do Gantois?
Minha mãe Cleusa Deus chamou agora, muito inesperadamente.
Tenho imensa saudade dela, meu CD é dedicado à memória dela. Ela faz muita
falta ao planeta. A mim, que fui sua filha de santo, causa muita saudade,
mas prejudicar minha carreira, jamais. Apesar da saudade e da dor, também é
um estímulo para mim. De algum modo muito pequenininho, também falo por ela.
Por isso esse CD é mais solene e nervoso que "Âmbar"?
Não acho nervoso, acho mais triste, contido, saudoso. Digo isso
mesmo, não há por que esconder. Tem a ver, sim.
O repertório do show é secreto por enquanto?
Não, não se deve falar. É em cima do meu repertório, dos compositores de minha geração, como sempre, mais duas de
Villa-Lobos pontuando "Luar do Sertão" e "Romaria". Há um menino de Santo
Amaro que estou cantando, Valverde, "Recôncavo", uma canção bonita sobre
nossa região.
Sua atual discrição se estende até à capa do CD,
em que seu rosto não aparece.
É, são minhas mãos segurando os obis, os frutos sagrados do candomblé, que eles ficam comendo o tempo inteiro na
África. São a força. É como aquela expressão: "Tal canção é o ouro do show",
a coisa mais importante.
Qual é o ouro do show?
(Ri.) Falei que as pessoas usam essa expressão. Se você soubesse a minha situação
hoje (ri)... Eu não sei de nada sobre esse show. Estou totalmente no ar antes
de mergulhar, como diz "Trampolim", acho que a única canção com letra minha.
Antes da estréia é um pavor. Acordo, "é amanhã?", "não, faltam três dias",
"ah, graças a Deus", "ai, que inferno, ainda faltam três dias". Estou uma
pilha.
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Jornal Folha de São Paulo - 27/05/1999
Show: A Força Que Nunca Seca