Bárbaros agridoces de novo
João Pimentel
Ao aceitar a proposta do cineasta Andrucha Waddington para assinar
a direção musical do filme "Eu tu eles", Gilberto Gil esperava apenas
estar realizando o sonho de emprestar sua assinatura ao cancioneiro de
Luiz Gonzaga. Não foi bem assim. Um atraso no lançamento do filme, que
deveria estrear juntamente com o seu show, em junho, fez de Gil uma espécie
de outdoor itinerante da fita. E o que seria um trabalho extra - o previsto
era o já iniciado álbum com Milton Nascimento, adiado por problemas vocais
do cantor mineiro - virou disco de carreira; a música "Esperando na janela",
um sucesso; e mais, o trabalho feito sobre o repertório do Rei do Baião
agradou tanto que incentivou sua antiga companheira dos Doces Bárbaros,
Maria Bethânia, a voltar a dividir o palco com ele depois de quase 25 anos.
Eles cantaram juntos, no mês passado, em dois shows fechados em São Paulo,
e ensaiam para outros três, que abrem um projeto de parcerias chamado
Encontros Ourocard, dias 27 (em Recife) e 29 de setembro (em Fortaleza)
e 7 de outubro (em Salvador). Essa reunião da dupla representa um fecho de
ouro para a turnê.
- O Gil vive um momento especial e estou feliz em poder me unir a ele -
comemora a cantora. - Mas vamos fazer apenas esses três shows, já que ele
vai retomar o trabalho com o Milton e eu, o meu disco de carreira.
Foi montado um roteiro especial que, musicalmente, conta um pouco da vida
dos dois. Mas a base é a mesma do show de "Eu tu eles" que rodou o país.
- Vamos cantar um pouco da nossa história, desde Salvador, no início dos
anos 60, passando pelos Doces Bárbaros e chegando ao Rio - explica o
compositor.
Bethânia, que levou alguns músicos de sua banda para se juntar ao grupo
de Gil, deu palpites no repertório, privilegiando músicas de temática
nordestina:
- É muito bom voltar ao mundo do Gil. Cantarei algumas coisas dele que
gravei e adoro, como "Viramundo" e "Balada de um lado sem luz", e também
outras que gostaria de ter gravado - comenta.
Dupla diverge sobre o primeiro encontro, em Salvador
Esse reencontro remete os dois ao início dos anos 60, em Salvador. Mas as
referências, locais e de época, só fazem sentido para Gil, Bethânia e pessoas
próximas deles.
- Eu acho que nosso primeiro encontro foi na casa de Maria, filha de
Prisciliano. Estávamos eu e o Roberto Santana, e o Caetano levou você
junto - diz Gil.
- Eu me lembro de ter conversado contigo na Sorveteria Primavera -
discorda Bethânia.
Independentemente do local, o certo é que pouco tempo depois se
reencontrariam no Rio. Em 13 de fevereiro de 1965, Bethânia substituiu
Nara Leão no show "Opinião", juntando-se a Zé Kéti e João do Valle. Meses
depois, Gil a encontraria em palcos como o da Boate Cangaceiro e do Teatro
Opinião, na montagem de "Arena canta a Bahia".
Os dois, ao contrário do que aparentam aos olhos do público, juram que são
parecidos. Bethânia diz que ambos têm a mesma percepção e sentimento de
palco. Gil ressalta o prazer e a paixão comum pelo canto.
- As pessoas têm uma visão, até real, de que o Gil é mais à vontade e eu
mais tensa, fechada. Mas, no fundo, o nosso impulso é o mesmo. Nem ele é tão
livre, nem eu tão presa - relativiza Bethânia.
Mas também existem muitas diferenças. Diferenças que, aliás, já geraram
muitos boatos de briga dos dois.
- Eu sou errático, tenho mesmo essa coisa inquieta dos anos 60. Gosto da
discussão política e social da arte. Gosto de firmar minha posição sobre
as coisas - explica Gil.
- Sou mais de me expressar no palco, que é a minha tribuna. Gil e Caetano
transitam em diversos espaços. Sou parecida com o Chico e o Caymmi. De cinco
em cinco anos me manifesto - retruca Bethânia.
Gil acredita que esse reencontro é um momento que, assim como o seu show,
terá um papel importante na divulgação da cultura nordestina:
- Nos anos 60 era o ZiCartola, hoje é a Feira de São Cristóvão. Esse é um
processo cíclico, pluralizador, que valoriza a cultura diante da comodidade
do consumo.
Bethânia intervém para ressaltar que o disco do filme, a exemplo do CD ao
vivo "Quanta gente veio ver", saiu pelo selo Geléia Geral, de Gil, em
parceria com a Warner.
- É importante para os artistas buscarem caminhos que facilitem a realização
de seus trabalhos, parcerias que permitam uma autonomia de projetos. No
caso desses discos, a gravadora não demonstrou interesse, então produzi,
realizei o projeto e a Warner ficou com a distribuição - completa Gil, que
está lançando uma loja virtual na Internet para vender os lançamentos da
Geléia Geral.
Jornal O Globo, 20/09/2000
Nordeste terá encontro de ouro entre Gil e Bethânia
JANAINA ROCHA
Sem perceber a presença da reportagem do Estado, Gilberto Gil e Maria
Bethânia procederam, mais do que naturalmente, musicalmente: cantarolaram,
acompanhados pelo maestro e músico de Bethânia, Jayme Álem, a Balada do Lado
sem Luz, de Gil. A música serviu de cumprimento entre os dois. Uma saudação
espontânea, regada à melodia e poesia.
Mas a união não foi tão informal. Estavam ali para pegar duro no trabalho,
ensaiar para uma curta turnê juntos, chamada Encontros Ourocard, iniciada
com um "aperitivo", no mês passado: um espetáculo só para convidados no
Credicard Hall. Os dois baianos não dividiam o palco desde 1994, quando
reviveram a proposta do show Doces Bárbaros (disco antológico lançado em
1976), ao lado de Caetano Veloso e Gal Costa, na quadra da Mangueira.
"Milton (Nascimento) faria comigo aquele show do Credicard Hall e não pôde,
por causa de uma faringite, então eu sugeri que convidassem Bethânia, que
logo aceitou", conta Gil. "Era só uma noite em São Paulo, mas a Maria Luiza
Juncá (produtora cultural) tinha esse projeto de encontros `de ouro' e nos
propôs a continuidade", afirma Bethânia. "Ela sempre me convida para ser
madrinha de algum projeto, assim foi com o Caixa Acústica - Mulheres, em
Salvador e agora com esse encontro de duplas; adorei a idéia."
Para Gil, a reaproximção no palco fez com que revisitassem situações do
início das carreiras e não viviam há muitos anos. "Pudemos falar, discutir
música, trocar informações sobre nossos novos trabalhos", acredita.
"O interessante é que a situação se repetiu, pois foi assim no nosso primeiro
encontro, quando nos conhecemos no meio musical e teatral para conversar
sobre arte." Os dois contam que têm poucas oportunidades para isso.
Apesar de "viciada em palcos divididos", Bethânia só não havia feito isso
com Gil. Nos anos 70, elaborou shows nos quais se apresentava com o irmão e
com Chico Buarque. Dos quatro bárbaros, segundo Bethânia, é com Gil que
possui maior semelhança. Ele também concorda. "Nós temos uma coisa parecida
na maneira de exercer o nosso ofício", diz. "A gente projeta nossas
dimensões carismáticas de forma parecida, na forma de transformar isso no
gestual, na coisa cênica, na presença do palco", analisa Gil. "Lidamos
também de forma semelhante com a solicitação do público."
Bethânia exemplifica o "profundidade do elo" com Gil quando fez o show
Nossos Momentos, em 1982. "Eu tive uma ruptura com o meu maestro e foi a Gil
que recorri para fazer a direção musical", conta. "A direção musical de um
show é diferente de qualquer outra, tudo o que faço é muito próprio, muito
meu", diz ela. "Entreguei isso na mão de Gil, um autor, e ele fez a direção,
ensaiou todos os dias comigo, escreveu arranjos, deu idéias, escreveu
vocais, isso revela uma identificação muito profunda; a minha relação é
muito mais forte com Gil do que com qualquer um dos outros (bárbaros)."
Gil conta que Bethânia é sua maior influência no que diz respeito ao lado
cênico, no palco. "Ela é meu espelho, por mais estranho que possa parecer,
já disse isso muitas vezes a Caetano, venho dizendo há muitos anos que,
quando ela sobe no palco, eu aprendo coisas, ali entendo coisas", informa.
"É intuitivo."
Com o passar dos anos, eles observam uma "suavização" na forma de conduzir
a música. "Está tudo igual, só que suave, bem mais suave", diz ela.
"As dobras do tempo vão dobrando as coisas, os temperamentos; vai fazendo
com que as coisas fiquem mais ondulares", completa Gil. "Tem uma música
minha que diz `com mãos bem mais sutis, nossos desejos vão tornando nossos
beijos mais azuis, menos carmins', é a mesma coisa para esse momento."
Estão cantando juntos Esotérico e Fé Cega, Faca Amolada, músicas dos
Doces Bárbaros, e Balada do Lado sem Luz, canção que deveria ser desse disco e
Bethânia gravou depois. Eles também vão cantar músicas de "Eu Tu Eles", o
recente CD de Gil.
Para o show, que será realizado só no Recife, em Fortaleza e Salvador,
uniram as duas bandas. Os dois antecipam que não está nos planos imediatos
a gravação de um CD. Gil acabou de fazer um disco com Milton, ainda inédito,
e Bethânia, em fevereiro, entra em estúdio para gravar o CD comemorativo de
35 anos de carreira - deve ter alguma música de Vinícius, é só o que ela
arrisca contar. "Estou trabalhando nisso e já pedi ajuda ao Gil", afirma ela. Juntos, os dois também participarão de um antigo projeto de Elba Ramalho, em homenagem à Nossa Senhora.
Bethânia pergunta a ele se o novo CD ficou bom. Ele diz que sim. "Só
participaram Sandy e Júnior, eles cantam uma letra do Milton que fala sobre
a geração que contempla a próxima, um tema relativo à nossa biografia",
conta Gil. "É impressionante como Sandy canta bem", comenta Bethânia.
Jornal O Estado de São Paulo, 20/09/2000
fotos: Otavio Magalhães