O cavaleiro zen e a dama do drama
Em show popular lotado, Gilberto Gil e Maria Bethânia discutem no palco mas arrebatam a platéia com clássicos da MPB
De um lado Maria Bethânia, a grande dama do carisma e do drama. De outro Gilberto Gil, o cavaleiro zen-cool do após-calipso. Vai dar liga? Em apresentação única dentro da série Concertos BR, a preços populares num Canecão cheio em plena noite de terça, a conexão funcionou, empolgou o público, mas não deixou de expelir algumas faíscas. A dupla quase se desentende a propósito da data de Balada do lado sem luz. Depois de cantá-la, Bethânia elogiou a composição ''que Gil fez pra mim um pouco antes do show dos Doces Bárbaros''. O autor bateu pé. ''Foi durante a temporada'' - que reuniu sob esse nome o quarteto formado pelo duo e mais Gal Costa e Caetano Veloso, em 1976. Diplomático, Gil fecha a discussão num sorriso: ''Ela cantando fica bonito''.
O horário quase matutino (19h30) não espantou as estrelas. De Zezé Motta a Renata Sorrah mais Betty Faria, Maria Zilda e Alcione com a cabeleira em tons de vermelho, estavam todas lá tietando os baianos. Parceiro recente em disco e longa lista de shows, Milton Nascimento, como é de seu feitio discreto, chegou com a luz apagada e retirou-se antes do final com o público de pé carnavalizando os dois bis. Um deles, um tanto apelativo, o velho hino Cidade maravilhosa, composto por André Filho quando o adjetivo era pleonástico, no Rio de 1934. O outro, também excessivo para um jogo ganho, fez todo mundo sambar em O que é o que é, de Gonzaguinha. O do refrão ''a vida é bonita/ é bonita/ é bonita''. Bom para levantar o astral em rodinha de violão no escurinho do apagão.
Pot-pourri - Fé cega, faca amolada cortou o ar abrindo os trabalhos numa das evocações do repertório dos supracitados Doces Bárbaros, que contribuiriam ainda com Esotérico e São João, Xangô menino, sempre nos números cantados em dupla. Gil, todo de branco, combinava o traje com os cabelos já prateados, e Bethânia vestia calça brilhante cinza, paletó preto em sintonia com a juba esvoaçante, a todo momento domada por gestos teatrais. Depois de evocar os Filhos de Ghandi, GG & MB dividiram um pot-pourri de Dorival Caymmi incluindo Festa de rua, Milagre e Dois de fevereiro.
Diálogo de frases, alguns uníssonos, a voz da cantora sempre ferindo mais as notas, algumas insinuadas, outras não alcançadas pelo cantor. O reiterativo Palco introduziu o solo de quatro números de Gil. Ele viajou de Bob Marley (Is this love, numa versão incandescente preparatória do adiado tributo que prestará ao rei do reggae) ao baladão Drão, em homenagem à ex-mulher Sandra Gadelha, também na platéia, como a atual Flora.
Solo - E mais: A novidade e Estrela, esta uma canção do desprezado álbum duplo Quanta, daquelas que vão estourando aos poucos, tanto que a platéia cantou junto. Mais uma passagem da dupla na difícil sincronia dos versos divergentes de Sem fantasia (Chico Buarque) e Bethânia fica sozinha no palco. Sola e pontifica, já que a banda é comandada por seu fiel maestro Jaime Além. Vai aos cumes da versão Sonho impossível, dramatiza Fera ferida (Roberto/ Erasmo Carlos) com a empunhadura de seu mestre teatral Fauzi Arap e desembesta num dos textos de Drama, Luz da noite, prefaciando Esse cara. ''Essa canção do Caetano é linda demais'', desabafa.
Aquele tipo de balada com escadinha para o clímax, da lavra de Gonzaguinha (Grito de alerta, Explode coração), permite a Bethânia empolgar mais ainda a platéia arrebatada em seguida pelo velho clássico de Isaurinha Garcia Mensagem (Cícero Nunes/ Aldo Cabral). A impressão é de que a abelha rainha tinha levado a colméia para casa, mas Gil trazia na manga sua fileira de forrós escudado no magnífico trabalho de sopros de Carlos Malta (flauta, pífanos) e retomou o público em Oia eu aqui de novo, Baião da Penha, Qui nem jiló e o recente megasucesso do filme Eu tu eles, o xote Esperando na janela. Foi o aceno para a apoteose final com a volta de Bethânia (magnífica no xaxado/maracatu Festa, outra do onipresente Gonzaguinha), além de Asa branca num pique de quadrilha junina. E mais Lamento sertanejo, Viramundo e os dois bis mencionados. A dupla, que já brigou no passado, mostrou-se capaz de somar divergências num (máximo) denominador comum. Hoje afastada da mídia principal, a combalida MPB agradece.
TÁRIK DE SOUZA
Jornal do Brasil, 31/05/2001