"O perfil de Bethania é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso: é o nariz do chefe indígena norte-americano, é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim " os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz na vanguarda de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás daquela testa, aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível, ela anuncia o mel que destilará e consumirá: em palavras, em beijos, em mel. Sim, porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrita na carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis são os mistérios do espírito e olhos que vêem, inquietam-se diante de olhos que vêem. Mas os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para o seu exterior, é um pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethania, vista aqui de perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica estampada na parte superior de sua cabeça: traduz em doçura e amargor o que fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva fresca de felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta, agora de frente pra nós, indecifrável.
Rodrigo, nosso irmão mais velho, sempre achou Bethania lindíssima. Outro dia, uma mulher que eu conheço pouco me encontrou no Baixo e me perguntou: "O que foi que aconteceu com Bethania? Quando ela apareceu logo eu via vocês no Cervantes e achava ela horrorosa, agora eu acho que ela é uma das mulheres mais bonitas do Brasil.” Eu respondi: "Com Bethania não aconteceu nada, você que era burra." A moça não gostou de ser chamada de burra e disse: "Digamos que eu era insensível." Eu falei: "Insensível é pior que burra." Ela riu.
Mais ou menos aí pelo meio da década de 70, Bethania me pediu para dirigir um show para ela. Ela ainda não tinha passado para a faixa AM, como se diz, mas eu já percebia (ou antevia) na sua trajetória um brilho de grande estrelato e bolei um show que ao mesmo tempo o assumisse gritantemente e o criticasse honestamente. Escolheríamos uma grande casa de espetáculos (o Municipal?) e faríamos três dias de grande gala com grande orquestra , uma bateria de escola de samba, um pequeno conjunto elétrico pesado, atabaquistas de candomblé, iluminação de Ziembinski, um repertório cheio de mudanças de clima com fortes efeitos e, com esses elementos, comentaríamos os temas da riqueza, do poder e da vitória. Cheguei a esboçar uma canção violenta sobre o dinheiro. Bethania me ouvia reticente e, por fim, chamou o Fauzi para conversarmos. Este me ouviu ainda mais reticentemente e eu comecei a achar meu projeto ridículo. Era e não era. Um espetáculo assim, então, teria sido um corte brusco na construção natural do estrelato de Bethania e ela, que também o desejava e o criticava ao seu modo, deve ter achado que tudo isso pareceria muito presunçoso. Creio que foi o show chamado "Cena Muda" que terminou resultando daí: Fauzi incorporou a temática do dinheiro e do poder a um espetáculo para sala pequena e longa temporada, como Bethania e ele vinham fazendo habitualmente. Ele tem repetido incessantemente (com palavras e atos) que esse é o elemento de Bethania, que foi em teatro pequeno que ela surgiu e aí que ela se dá melhor, que ela não é filha das emissoras de televisão nem das grandes gravadoras. E ninguém poderia em sã consciência dizer que ele está errado. Ressalte-se também que essa posição não nasce de um preconceito que ele porventura nutra contra artistas que se tenham identificação com a TV ou o disco: Fauzi partilha comigo de uma admiração e um carinho por Elis Regina onde o fato de ela ter sido lançada pela televisão não só não é esquecido como surge até determinando em parte os sentimentos. Não. É a especificidade da arte e da pessoa de Maria Bethania que ele procura captar da melhor maneira possível, quando age e fala como o faz. Por isso, me enterneço quando leio no programa do "Estranha Forma de Vida" que ele se sente talvez no lugar do "Mano Caetano", ao dirigir Bethania. De fato eu dirigi o primeiro show dela. Foi na Bahia, no Teatro Vila Velha e chamava-se "Mora na Filosofia". Era composto com canções e textos. Fauzi não viu. Mas quando eu assisti a "Rosa dos Ventos" cheguei a perceber nele uma espécie de mediunidade. Não que houvesse qualquer semelhança exterior entre o que eu tinha feito e o que ele estava fazendo: era uma coisa mais funda de sacação dos climas secretos. Na verdade, nós somos muito diferentes e é claro que eu desgosto de alguns lances: achei que beirava a demagogia aquela cena no Cine Show Madureira onde Bethania ironizava "a voz de uma pessoa vitoriosa" (assim como meu antigo plano de supershow beirava a pretensão e o suicídio artístico), não me identifico com esse sentimento de que o artista é o marginal inadaptado e não consigo gostar da Geni do Chico ( perdão, Glauber), apesar de comentá-la através do "Se Eu Quiser Falar com Deus" de Gil (canção de que eu também não sou o maior fã). Por outro lado, adoro ver Bethania em situações diferentes (o show com o Chico no Canecão, o show dirigido por Wally, Doces Bárbaros, etc.) e, sinceramente, ainda gosto mais do show "Fantasia" de Gal-Guilherme do que do "Estranha Forma de Vida". Ambos são shows magníficos, mas como disse Marina, o "Fantasia" é mais minha cabeça e minha cultura. Contudo, o mais importante é que, para além da cultura e da cabeça, Fauzi Arap atinge o fundamental da arte e da pessoa de Bethania, através de uma espécie de magia. "Estranha Forma de Vida" é, de fato, um claro instante na história da relação amorosa que há em Fauzi e Bethania. Relação da qual eu tenho um ciúme cheio de orgulho, cuja intensidade pode ser medida pelo espaço que ele terminou tomando neste escrito.
Eu sempre achei que Bethania é a filha favorita de minha mãe. Dizem que Freud escreveu que um "mother’s baby" terá sempre sucesso. Tenho tido muita inveja de Bethania porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa série de imprecisões e transparências. Roberto, o nosso irmão imediatamente mais velho do que eu, me disse que inveja em Bethania o modo intenso como ela vive suas emoções. Não me lembro de ter tido ciúmes quando, aos 4 anos, "vi" Bethania nascer. Como se sabe, escolhi o nome para ela, contra toda a família, e considero isso uma profecia: é mais do que óbvio que ela só se podia chamar assim. Ela foi a única adolescente rebelde da família e, nessa altura, eu interferi a seu favor, o que me pôs na posição de meio-tutor e meio-cúmplice. Aprendi, então, com ela, a vivência da rebeldia. Eu tinha inteligência: conferia legibilidade e legitimidade a seus atos e acessos aparentemente desarrazoados. Data dessa época o companheirismo que há entre nós e que só morreu uma vez para renascer em outro nível, mais forte. Hoje somos macabos, gêmeos, dois leões, a mesma pessoa (como disse Cortazar e gente muito mais importante do que ele). E representamos bastante bem, para um número enorme de pessoas, o amargor e a doçura de Santo Amaro, a beleza de meu pai e minha mãe, o talento de Nicinha, Rodrigo e Mabel, a integridade de Clara Maria, o brilho de Roberto, a franqueza de Irene, o mal e o mel da Purificação.
João Gilberto disse pra mim e pra Gil, depois da gravação de que Bethania participou no "Brasil": "Que lindo Maria Bethania!...Ela veio, brincou com a gente mas não saiu do trono dela." Perna Fróes (também geminiano como João e ela) falou uma vez: "Beta, você não vai errar nunca." Chico Buarque declarou que a ela ele obedece cegamente. Eu, Gil e Gal podemos discutir as atitudes e posturas, mas com relação a Bethania há sempre um respeito aristocrático que o ritmo de seu comportamento exige. E nós estamos sempre aprendendo com ela algo desta majestade, sem nunca se meter em movimentos ou projetos de grupo, sem ser um líder intelectual. Ela é para nós uma espécie de guru. Assim, o espetáculo "Doces Bárbaros", que nós fizemos juntos, foi primeiro uma coisa dela e depois algo com que ela não tinha nada a ver. Agora quando a vemos vir ressurgindo lentamente no palco, por detrás das lindas cortinas transparentes que o adorável Flávio Império desenhou para sua volta aos pequenos teatros, no ritmo poeticamente perfeito que Fauzi encontrou para instaurar o clima de concentração e cuidado requeridos pelo tipo de espetáculo que eles escolhem fazer, somos levados a pensar mais uma vez: Bethania é uma deusa da sabedoria."
Caetano Veloso
Publicado originalmente na revista "Careta" de 18/08/81