Maricotinha ao Vivo registra o show que esteve em cartaz em São Paulo, comemorativo dos seus 35 anos de palco , e marca sua estréia no selo independente Biscoito Fino

São Paulo - Maria Bethânia está de disco novo - Maricotinha ao Vivo- e gravadora nova - a carioca e independente, ainda de vida breve, que seja longa, Biscoito Fino responsável por alguns dos melhores lançamentos dos últimos dois anos. Maricotinha ao Vivo, álbum duplo, é o registro do show que esteve em cartaz em São Paulo, onde foi gravado, no ano passado, e brilhou em palcos de todo o País.

Foi o espetáculo comemorativo dos seus 35 anos de carreira, construída em grandes selos multinacionais e que resolveu transferir-se para um selo brasileiro alternativo para - como disse - trabalhar com gente que gosta de sua música.

Faz parte dos planos de Bethânia lançar comercialmente, na primeira metade do ano que vem, o CD Cânticos, Preces, Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu. Trata-se de um trabalho editado no início de 2001, uma coleção de cantos religiosos tradicionais e outros escritos especialmente para ela, com tiragem restrita, de renda toda voltada para financiar a reforma da igreja de sua terra natal, Santo Amaro da Purificação, Bahia.

Maricotinha ao Vivo não é disco feito para aproveitar a onda (aliás, em declínio) de lançamentos "ao vivo", coletâneas de sucesso do tipo aproveite-o-que-está-dando-certo. Bethânia sempre lançou discos gravados ao vivo (e alguns dos títulos de sua extensa fonografia nem ao menos têm edição de estúdio, como o célebre recital da Boate Barroco, de 1966, o dueto com Chico Buarque, de 1975, ou mesmo o disco dos Doces Bárbaros", de 1976, para citar poucos). Houve, mesmo, um tempo quando muitos diziam que Bethânia era cantora mais de palco do que de disco - e que o registro de suas apresentações em palco soava melhor do que os feitos em estúdio.

Afirmação discutível, mas, juízos de valor à parte, tratava-se e trata-se de coisas diversas. Maricotinha, o disco anterior de Bethânia, feito em estúdio, é um trabalho de canções novas, e só de canções; o presente Maricotinha ao Vivo, com suas 49 faixas, até por ser comemorativo dos 35 anos de carreira, revisita repertório antigo e relembra momentos de outros shows em que, como neste, Bethânia intercalou canções e poemas, vinhetas, citações e músicas inteiras, compondo um roteiro dramático, uma história, estabelecendo dramaturgia.

O ponto de apoio da narrativa dramática de Maricotinha ao Vivo é a canção A Moça do Sonho, de Edu Lobo e Chico Buarque, originalmente escrita para o balé Cambaio.

Na interpretação dos autores, A Moça dos Sonhos é uma valsa. No ad libitum de Bethânia, com acompanhamento quase exclusivo do piano de José Carlos Coutinho, esvanece-se a definição rítmica, a marcação ternária - como a personagem sobre a qual versa a canção desfaz-se e reaparece na convivência de sonho (ou desejo) e realidade ou (desilusão) da narrativa buarquiana: "Súbito me encantou/ A moça em contraluz/ Arrisquei perguntar/ Quem és?/ Mas fraquejou a voz/ Sem jeito eu lhe pegava as mãos/ Como quem desatasse o nó/ Soprei seu rosto sem pensar/ E o rosto se desfez em pó."

O que fazer - desatar o nó, correndo o risco da perda, ou deixar-se levar pelo sonho, tentando alienar-se das dúvidas? Esta, questão central de Cambaio, é também a questão que orienta o repertório do show Maricotinha, reproduzido integralmente no disco ao vivo. A última estrofe de A Moça do Sonho acena, como sempre em Chico Buarque, com a esperança de "um lugar que deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados vão parar/ entre escadas que fogem dos pés/ E relógios que andam para trás".

Essa seria a aventura da arte. Mas viver em busca do ideal fugidio não é questão de escolha, professa Bethânia usando melodia e letra de Chico César: "Presa do dom que Deus me pôs/ Sei que é ele a mim que me liberta/ E sopra a vida quando às horas mortas/ Homens e mulheres vêm sofrer de alegria/ Gim, fumaça, dor, microfonia/ E ainda me faz ser o que sem ele não seria" - canta Bethânia em "Dona do Dom": o dom que permitirá a aspiração de "iluminar o escuro" e ser o que em si nela mesma nunca se finda - "O oco do bambu/ Apito do acaso/ A flauta da imensidão."

Bethânia vê no dom e na dor - na evanescência, na expectativa do renascimento e também na imposição da arte a quem detém o dom a síntese: "É trágico, é feliz; a vida é isso." E segue reforçando as perplexidades nas falas - textos de Fernando Pessoa, Lya Luft, Sophia de Mello Breyner ("Apesar das ruínas e da morte/ Onde sempre acabou cada ilusão/ A força dos meus sonhos é tão forte/ Que de tudo renasce a exaltação/ E nunca as minhas mãos estão vazias"), Natália Corrêa, Ferreira Gullar ou dela mesma.

O espetáculo teve direção de Fauzi Arap ("Que desde 1967 me ensina tudo de palco", como escreve a cantora na contracapa) e direção musical do violonista e arranjador de Jaime Alem, parceiro de 20 anos e responsável pela sonoridade peculiarmente madura de que se reveste hoje a música de Maria Bethânia.

"Não poderiam faltar no repertório o Wally Salomão, que foi quem mais escreveu músicas para mim, ou Sueli Costa, a quem nunca deixei de gravar", conta Bethânia. Uma canção de Sueli deveria entrar no repertório da versão de estúdio de "Maricotinha"; não entrou. Bethânia fecha, então, o show e o disco com "Coração Ateu", letra e música de Sueli, que ela havia gravado somente para a trilha sonora da novela "Gabriela" ("Meu coração ateu/ Quase acreditou...´); de Wally em parceria com Caetano Veloso, "A Voz de uma Pessoa Vitoriosa" - faixa que abre o disco 2.

Ao mesmo tempo, Bethânia visita seus clássicos, vai ao Carcará que a lançou, no show Opinião, em 1965, e chega aos novos autores, que lançou ou ajudou a lançar, como o citado Chico César ou Vanessa da Mata, contando, com sua história, a da música brasileira moderna.

Mauro Dias
Jornal O Estado de São Paulo – 15/10/2002



Maria Bethânia é, sem dúvida alguma, a artista brasileira com maior número de registros ao vivo de sua carreira no palco. Ela está lançando o 14º, o CD duplo ''Maricotinha ao vivo'', o primeiro pela gravadora independente Biscoito Fino, que preparou uma embalagem digipack para lá de luxuosa com os dois CDs e belas fotos da diva por Beti Niemeyer e Livio Campos.

Nos dois CDs está a quase íntegra do show, uma verdadeira colcha de retalhos de 49 faixas em que Bethânia costura pedaços de canções e de poemas com canções e poemas que levam o ouvinte numa prazeirosa viagem por diversas paragens da música e da poesia brasileira e portuguesa.

Roberto Carlos não liberou música - Como Elis Regina, Bethânia dá interpretações definitivas às canções e, como João Gilberto, ela não está nem aí para novas linguagens musicais e traduz o que quer que seja para seu estilo clássico. Quem tem idade para isso, a viu cantar descalça e recitar Fernando Pessoa em pequenos teatros no começo dos anos 70 e aqui está ela fazendo exatamente isso com o arrebatamento de sempre. Um dos grandes momentos do show, quando ela voa alto na interpretação de ''Fera ferida'', foi cortado porque Roberto Carlos não liberou a música apesar de Bethânia já tê-la gravado duas vezes antes, nos CDs ''As canções que você fez pra mim'' (1993), dedicado ao repertório de Roberto, e ''Maria Bethania ao vivo'' (1995). Mas o repertório de sua majestade está presente em ''Nossa canção'', uma das maiores canções românticas da Jovem Guarda, que Roberto não pôde vetar porque é de Luiz Ayrão.

18 segundos aqui, dois minutos ali - A temporada comemorava, com atraso, os 35 anos de carreira de Bethânia, que explodiu em 1965 no espetáculo musical-político Opinião, no Rio, ao lado de Zé Keti e João do Vale. ''Carcará'', a música que atraiu os olhares sobre ela, ficou de fora, mas ela passa como um relâmpago por ''Opinião'' em 18 segundos, emendando a antológica ''Rosa dos Ventos'', de Chico Buarque, que brilha por dois minutos. Chico está bem presente nos dois discos, através de parceria recente com Edu Lobo em ''A moça do sonho'', da peça ''Cambaio, em pouco mais de um minuto e em canções mais completas de várias fases da carreira, como ''Apesar de você'', ''Anos dourados'' (dele com Tom Jobim), ''Sob medida'' e ''Sobre todas as coisas'', além de uma rápida '''De todas as maneiras''. ''Amor de índio'', de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, em generosos 3min41s, ganha nova beleza na interpretação de Bethânia, que a precede com um pequeno texto da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner.

Jamari França - GloboNews.com


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