Bethânia mostra só a voz em novo show

A comparação é inevitável. O show que Maria Bethânia estreou anteontem no Canecão, zona sul do Rio, é ótimo exemplo de como uma grande cantora deve dividir suas canções com o público: cantando diretamente para ele, olhos nos olhos, sem intromisões estranhas, enquanto no de Gal Costa, já a caminho do interior de São Paulo, essa relação se dilui por conta de efeitos especiais que volta e meia deixam sua voz em segundo plano.

No palco, Bethânia é tudo: a estrela, o cenário, os efeitos especiais.

Neste recital, mais do que no comemorativo dos 25 anos de carreira, estreado há três anos, ela se reafirma como uma grande dama dos palcos musicais. O que Gal também é. Só que o show de Bethânia, corretamente dirigido por Gabriel Vilella, a partir de idéias e sugestões da própria cantora, ressalta tal fato. Não foi por acaso que ela foi obrigada a voltar à cena duas vezes, aplaudida por uma platéia emocionada.

Bethânia é isto: uma intérprete que exerce pleno domínio sobre sua audiência. Um domínio que também não se faz por acaso, pois desde a escolha do repertório até os dois "encores" do final ("Ronda" e "Emoções"), tudo ali parece pensado.

Primeiro, o repertório. Alternando nove números de seu último disco (todas de Roberto & Erasmo Carlos), com pérolas do irmão Caetano, Milton Nascimento, Ary Barroso, Chico Buarque e Gonzaguinha, e mais algumas surpresas descobertas por ela numa nova geração baiana, Bethânia mostra que, em sua voz, todas as canções se tornam irremediavelmente boas. É a marca da grande intérprete, da excepcional baladista que faz com que seu público acredite em tudo que ela canta, sejam os versos de "Genipapo Absoluto", sejam coisas como "Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento lindo". Não há como duvidar.

O show é dividido em duas partes e, cada parte, em cinco ou seis blocos temáticos. Na primeira metade (Bethânia vestindo um longo gelo com enfeites coloridos), ela parte da indefectível "Fera Ferida" para "Fé Cega, Faca Amolada", antes de entrar no bloco de Caetano, voltar a Roberto & Erasmo e, por fim, levantar a platéia com três disparos certeiros: "Ronda" (de Paulo Vanzolini), "Fogueira" (de Angela Rorô) e "Eu Velejava em Você" (de Góes e Eduardo Dusek). Nesta última, a intérprete se entrega por inteiro, seduzindo a platéia a cada repetição da frase do título, à qual imprime a dose certa de sensualidade.

A partir daí, Bethânia tem o público nas mãos. De tal forma que, na segunda parte (já com um longo azul claro), ela faz com que os que lhe estranharam o último disco se convençam de que, na sua voz, Roberto & Erasmo estão à altura de Caetano e Chico. E também de Gonzaguinha, cujo "Explode, Coração" foi, talvez, o grande momento da noite.

Bethânia está no auge. Domina sua arte de tal modo que, traída pela memória em "Bárbara", transforma o lapso numa encantadora confissão ("Esqueci a letra..."). E faz isso rigorosamente dentro do tom e andamento da música. O Canecão exulta. Como exulta também quando ela encerra com "Todo o Sentimento" e "Emoções" nivelados por sua força de intérprete.

Mas nem tudo foi tão perfeito. Os arranjos por trás de Bethânia, criados pelo violonista Jaime Alem (o mesmo de seus últimos e excelentes discos) e executados por uma banda de 11 músicos, nem sempre soam adequados. Em algumas passagens, estão pesados demais, menos para cellos do que para sopros e percussão (o que o tonitruante sistema de som da casa contribui para exacerbar). Nesse ponto, o show de Gal ganha longe.

JOÃO MÁXIMO
Folha de São Paulo - 26/03/94


Bethânia estréia show com direção de Villela

Na próxima quinta-feira, Maria Bethânia, 47, estará de volta ao seu santuário: o palco. Ela pode gravar discos, trabalhar no cinema, fazer televisão, desfilar pela Mangueira, almoçar com a rainha da Inglaterra e até viver momentos de emoção como a festa pelo centenário de Mãe Menininha do Gantois. Mas nada se compara ao palco: "É mesmo um lugar sagrado para mim."

Num show que ela define como "um recital" (quer dizer, sem grandes invenções formais, ao contrário do da amiga Gal), Bethânia vai intercalar canções de Roberto e Erasmo Carlos com clássicos e surpresas. Um espetáculo, segundo ela, tão pessoal quanto o último que fez, que comemorava seus 25 anos de carreira, estreado em 90 para uma carreira de três anos.

A simples perspectiva de subir ao palco de novo, de reencontrar seu público, de poder viver plenamente seu íntimo de intérprete única na música popular brasileira, deixa Bethânia feliz. "Meus shows são realmente muito pessoais. Neles, coloco muito de minha vida. Neste de agora, o clima tem muito de interiorano. De Santo Amaro, por exemplo. É um show sincero, mas com uma linha de delicadeza."

As lembranças da cantora são mesmo para a terra natal, onde, menina, descobriu o palco num araçazeiro: "Eu e Caetano brincávamos de teatro no quintal de casa. O palco dele era a mangueira, o meu era o araçazeiro. Às vezes representávamos o papel de faquir, que era subir na árvore e ficar imóvel, em silêncio, por longo tempo. Nessa coisa de teatro fomos muito incentivados por mamãe, que desde moça organizava teatrinhos com os meninos e meninas de nossa rua."

Ao contrário do irmão Caetano, que parecia mais interessado em outras artes (cinema, por exemplo), a menina Bethânia sempre soube que seu destino era este: "Eu tinha certeza de que iria parar no palco. Acho que, de todos de minha geração, eu era a mais atirada. Quando começamos, eu, Caetano, Gil, Gal, me lembro que era sempre eu que abria os shows."

Apaixonada por teatro, Bethânia chegou a pensar em ser atriz. Quem sabe fazer "A Casa de Bernardo Alba", de Garcia Lorca? Mas desistiu. A experiência lhe mostraria que sua questão com o palco é essencialmente musical. Tem plena consciência de que, de "Carcará" em 1965 aos dias de hoje, tornou-se uma intérprete cada vez melhor. Mais madura, com maior domínio de sua arte. Recorda o dia em que a convidaram para substituir Nara Leão em "Opinião": "Desliguei o telefone três vezes, pensando que fosse trote. Imagine, uma desconhecida lá da Bahia sendo chamada para estrelar show de Vianinha."

Hoje, já não se espanta quando a consideram a maior baladista da música brasileira, entendendo-se como balada toda canção romântica, carregada de emoção, eventualmente dramática e exigindo de quem a interpreta uma certa teatralidade: "Jamais cantei uma coisa em que não acreditasse", diz ela a propósito de seu público não duvidar de uma só palavra do que ela canta. "Acho que os shows de boate foram importantes para estabelecer minha comunicação com o público. Aprendi muito com eles. As pessoas que vão ali estão querendo ser tocadas."

Essa capacidade de "tocar" as pessoas com seu canto Bethânia a exerce, hoje, diante de grandes platéias. Seja a do Canecão, seja a do Albert Hall, em Londres, onde ela estará em junho: "Vou lá pela primeira vez desde que Caetano estava exilado. Não gosto de Londres. É uma cidade triste. Talvez pela impressão daqueles tempos, Caetano infeliz, longe do Brasil."

Mas Bethânia confessa sua simpatia pela rainha, a quem conheceu no Brasil. Sente que, séculos atrás, talvez tenha tido alguma coisa a ver com reis, rainhas, cortes, coisas assim: "Além do mais, a rainha tem uns olhinhos muito azuis, como os de Nossa Senhora de Fátima".

JOÃO MÁXIMO
Folha de São Paulo - 21/03/94


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