Maricotinha

Os mitos da MPB contemporânea, aqueles que envergariam fardão se houvesse uma Academia Brasileira de Música, dividem-se entre os que assumem uma postura clássica (Maria Bethânia, Milton, Chico & Edu, Gal Costa, Nana e Dori Caymmi) e os que ainda se arriscam no novo (Caetano Veloso) ou exercem uma saudável diversidade (Gilberto Gil, que atacou simultaneamente no clássico em CD com Milton Nascimento e no forró com "Eu, tu & eles" e agora parece que vai de Bob Marley) e Rita Lee (fez rock em 3001 e agora Beatles em bossa nova).

A imortal Maria Bethânia, 55 anos, deixa seu terreiro após dois anos para lançar "Maricotinha" (BMG), o 33º disco de uma carreira fonográfica iniciada em 1965, quando a impressionante interpretação de "Carcará" no espetáculo "Opinião" a revelou ao país. O disco comemora tardiamente os 35 anos de carreira da voz feminina mais marcante de sua geração. Sem ousar um milímetro sequer, a diva faz um disco de repertório equilibrado entre valores que surgiram em momentos diferentes de sua trajetória, todos devidamente bethanizados.

"Dona do dom", de Chico César, parece autobiográfica quando ela canta que é dona, presa e plena do dom que Deus lhe deu, uma letra forte com um belo arranjo de Jaime Além com teclados, percussão, violão, viola e violaúde que deixam muitos claros para que a voz reine plena. Em "A moça do sonho", de Chico e Edu, do musical "Cambaio", ela paira sobre piano e cordas, esforçando-se para tornar palatável uma canção de difícil assimilação. "Primavera" (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes) é a única cover do disco, com arranjo pomposo de cordas gravadas em Londres (???) que lhe tira a força por ser comum demais. "O canto de d. Sinhá", de Vanessa Mata, tem o mano Caetano dividindo os vocais e um arranjo lírico com violões e percussão. "Quando você não está aqui", de Herbert Vianna e Paulo Sérgio Valle, desprezada por Roberto Carlos, com arranjo escorado em cordas, é um provável hit.

O inovador Lenine comparece com "Nem sol, nem lua, nem eu", parceria com Dudu Falcão, e é enquadrado num arranjo burocrático. Os bocejos continuam em "Antes que amanheça", de Chico César e Carlos Rennó, com arranjo no esquema abre-com-violão-continua-com-cordas. Daí em diante, a mesmice dos arranjos faz com que se note pouca distinção entre "Água e pão" (Pedro Guerra, versão Nelson Motta), "Se eu morresse de saudade" (Gilberto Gil), "Depois de ter você" (Adriana Calcanhotto) e "Noite de estrelas" (Roberto Mendes e Ana Basbaum). "Pra rua me levar", da sua discípula Ana Carolina e de Totonho Villeroy, rende bem só nos violões. Tudo acaba na efeméride baiana de "Maricotinha" (Dorival Caymmi), uma reafirmação de suas origens em Santo Amaro da Purificação.

Jamari França
Jornal O Globo - 28/08/2001

Bethânia comemora 35 anos de carreira com novo CD

Maria Bethânia: 55 anos e 35 de carreira. Não recebe ordens e segue a intuição. Rende-se, na vida artística, apenas ao seu ofício de intérprete. É ele que a norteia, que a desafia. Maricotinha, seu novo disco pela gravadora BMG, que celebra esse ciclo da trajetória da cantora, surpreende a própria Bethânia. "Ele ficou forte, porque o repertório veio muito forte", diz ela.

Bethânia se refere às canções - completamente afinadas com o seu jeito de ser e de viver - que recebeu dos compositores. "Eu não supunha que o Chico César (compositor da faixa de abertura, Dona do Dom) sabia que eu penso assim, que eu me sinto assim. Que o Renato (Teixeira), com quem eu pouco converso, tem seu pensamento voltado para a mesma liberdade que eu tanto desejo."

A temporada de shows para divulgar o disco começa no dia 4, no Canecão, no Rio, com direção de Bibi Ferreira. Tantos anos de carreira poderiam fazer um artista engessar-se e engessar a própria obra, sobretudo Maria Bethânia, que respeita o tempo como um deus. "Mas o tempo não me prejudica, ele está em segundo plano. Primeiro está o meu âmago, que é coisa de Deus", afirma ela, que, no novo Maricotinha (nome da canção de Dorival Caymmi), mais uma vez põe em primeiro plano a intuição, a busca pela verdade e pelo prazer. "Vou intuindo, tateando, é uma busca que nada me custa."

Liberdade

Maricotinha, também como discos anteriores, é contaminado pela liberdade. "Sem regras. O que afirmo e bato o pé desde o show Opinião (sua estréia) é isso: quero que me mostrem tudo, mas me deixem escolher", diz. Nesse sentido, a canção de Renato Teixera, "Juntar o que Sentir", é a mais ilustrativa: "Não me diga o que eu não quero ouvir/ Não me fale o que eu não sei dizer/ Não me cante o que não sei sentir/ Não me ensine, não quero saber/ Não me jure o que eu não sei rezar."

O começo de toda essa noção de liberdade foi já na infância, em Santo Amaro da Purificação, quando d.Canô, sua mãe, acordava os filhos com suaves canções, como Cabelos Brancos, de Herivelto Martins. O convívio com os tios, que escutavam a Rádio BBC, de Londres, também foi fonte de (in)formação. "Desde menina, eu ouço tudo. Em casa, tínhamos o direito de ter nosso gosto. Essa liberdade continua na minha vida", diz.

Um exemplo concreto de liberdade criativa em Maricotinha é o uso da sonoridade árabe na faixa Dona do Dom. "Eu me interesso por tudo e, quando saio do Brasil, presto atenção em tudo quanto é música. Gosto de ouvir de tudo e quando algo me toca não me interessa se é da nova geração, se é da minha, da passada, se é de Caymmi, se de uma geração que está por vir, se é de vanguarda, não interessa: é o que me comove."

Bethânia afirma que essa liberdade existe, dessa forma plena, porque ela se desenvolve dentro da música brasileira. "Sou loucamente apaixonada por ela, porque é linda, calorosa e fundamentalmente generosa. Ela se transforma, ela se refaz, é sempre mágica", acrescenta. "Eu tenho uma alegria imensa quando vejo compositores da nova geração compondo para a minha voz. Isso me alegra e me joga para uma vontade de não ficar com o que já sei." Maricotinha, é feito quase inteiramente de canções inéditas.

A crise da canção brasileira, assunto recorrente nesse cenário, é algo que não existe para a consagrada intérprete. "Nunca concordei com isso. Acho que a música brasileira nunca andou mal. Não teve mortes, sepultamentos nem renascimentos. Acho que um pequeno exemplo são esses compositores que estão no meu disco. Todos muitos bons, independentemente de terem composto para mim. Os que estavam nos meus discos anteriores também, como Carlinhos Brown, Herbert Vianna e Arnaldo Antunes."

Embora esteja afirmando o talento de novas gerações, Bethânia não gosta de exaltar essa atitude como obrigação de intérprete. "O principal ponto de vista é a minha expressão. Lógico, é muito interessante que sempre eu busque letras diferentes do que sei e do que estou acostumada a fazer. Isso é o melhor exercício para mim. Saio procurando por essas mudanças na literatura, na música, no estilo da composição, nos arranjos, nos músicos que tocam. É como fazer teatro e ter sempre o mesmo diretor. É bacana mudar, porque o mesmo gesto pode ter diferentes interpretações", diz.

Viés

Assim como A Força Que Nunca Seca e Diamante Verdadeiro, os dois álbuns anteriores, Maricotinha tem mais de um viés. Não se restringe a um tipo de amor. "Um disco de canções tristes, que falam de perda, de prisões. Mas elas olham adiante, têm perspectiva", afirma. "O que eu almejei, eu alcancei. Não é uma questão de busca da perfeição. Ao contrário. Em muitas faixas, o que quero é a imperfeição. Não gosto é da covardia de quem não mostra o que deseja. Os erros que quis, eu cometi - e eles viraram acertos."

Diferentemente do disco A Força Que Nunca Seca, em que gravou a canção sertaneja É o Amor, de Zezé di Camargo, e recebeu muitas críticas, Maricotinha não traz polêmicas desse tipo. Ao contrário, Bethânia volta a gravar uma canção de Chico Buarque, a quem considera, ao lado de Caetano, o melhor. "Eu fico tentadíssima em gravá-lo sempre, porque o amo, é o melhor e é o máximo. Mas não posso me prender a isso, pois tem muita gente fazendo coisas boas", diz. "Mas me senti coroada com A Moça do Sonho, dele e de Edu. Está no musical e no disco Cambaio, mas Chico a fez e escolheu para mim, porque disse pensar em mim."

Bethânia relembra seu começo, quando substituiu Nara Leão, no antológico show do Teatro Opinião. "Quando cantei Carcará, com 17 anos, foi uma loucura. Tinha saído de Santo Amaro, da saia de minha mãe. Num dia, dormi, no outro, acordei e era a voz mais tocada, mais falada no Brasil inteiro. Achei aquilo lindo, mas muito louco. Ficou confuso na minha cabeça. Eu me afastei em seguida, logo que eu vi que estava sendo conduzida e o leme não estava na minha mão, mas de muita gente, menos na minha, porque seria a minha morte. Seria negar o que eu entendo por ser artista. Falo sempre do meu gosto, mas sei que é preciso dosá-lo com inteligência. Se você só sente, fica bobo. Se só pensa, fica chato. Tem de se opinar na hora de sentir. Baiano gosta de festas, mas tem muito juízo."

Janaina Rocha
Jornal O Estado de São Paulo - 29/08/2001



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