Uma Festança para Bethânia
Maria Bethânia Vianna Telles Veloso, a Maricotinha, 55 anos, comemorou 35
anos de carreira com um ano e sete meses de atraso terça à noite num Canecão
transbordante de gente, com todo o estado maior da MPB presente para saudar
a maior intérprete de sua geração, além de um who's who de socialites,
televisivos e quejandos. O parto da carreira aconteceu em fevereiro de 1965,
quase um ano após o golpe de Estado, num espetáculo politizado que se
chamava ‘Opinião’ no pequeno teatro do mesmo nome em Copacabana, no Rio.
E Nelson Motta, o Forrest Gump da MPB, abriu a noite contando que, sim,
ele estava lá quando Bethania irrompeu pelo palco entoando hinos como "
podem me prender/ podem me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não
mudo de opinião" e "Carcará pega, matá e come". A música de Ze Kéti ela
cantou na festa, o hino de João do Vale ficou devendo.
Devendo essa e muita coisa mais porque ela preferiu cantar as músicas de
seu novo CD, ‘Maricotinha’, com os compositores do repertório gravado, que
formam um leque dos últimos 40 anos da música popular brasileira, ou mais
até, se considerarmos que a canção-título é de Dorival Caymmi. Caymmi não
foi, mandou Dori e Nana, que errou a letra minúscula depois de Bethania
dizer que aprendera a música com ela. Na verdade os três se enrolaram,
mas o bom, humor e, principalmente, a animação da música prevaleceram,
o que foi quase a exceção numa noite que devia ser de celebração.
O repertório do novo disco é todo para baixo, músicas lentas, complexas,
com arranjos muito trabalhados. Faltou o lado lúdico de Bethania, os
rompantes que arrebatam e emocionam.
Ninguém reclamou. O jogo estava mais do que ganho. O povo estava lá para
aplaudir até uma Mariana Moraes que assassinou sem piedade ‘Primavera’, a
antológica canção que seu avô, Vinícius, fez com Carlos Lyra, que assistiu
à demolição de corpo presente e contribuiu também, com uma voz hesitante.
Só quando Bethania entrou, o sol voltou a brilhar. Fizeram falta mais
canções líricas como ‘Lamento sertanejo’, que ela e Gil cantaram lindamente,
depois que a anfitriã desceu do palco para buscar seu convidado na platéia
ao som de Expresso 2222, elegante que só ele e com o ótimo astral que sua
presença sempre transmite.
Outro momento comovente foi a entrada de Bethania de mãos dadas com o irmão
Caetano, a quem declarou amor incondicional, lembrando que ele lhe escolheu
o nome e o ofício, determinando que gravasse uma música na Bahia quando ela
nem pensava em ser cantora. Os dois cantaram ‘Estrada do sol’ e, a seguir,
a canção 'O canto de dona Sinhá’, composta por Vanessa da Mata, que subiu ao
palco para cantar e, felizmente, não atrapalhou muito. ‘Quando você não está
aqui’, de Herbert Vianna e Paulo Sérgio Valle, foi cantada por ela com o
titã Branco Mello e com Arnaldo Antunes. Sua majestade, Chico Buarque de
Holanda, subiu para dividir ‘Sem fantasia’ e, a seguir, com Edu Lobo e
Bethânia, ‘A moça do sonho’, do musical ‘Cambaio’, que está no disco.
Ao final, em completo enlevo, Bethania calou-se para ouvi-los.
Lenine e Bethania fizeram uma interpretação plácida de 'Nem sol, nem lua,
nem eu.' A coisa esquentou com Adriana Calcanhoto. Sentadas na beira do
palco, as duas cantaram ‘Depois de ter você’ com o olho no olho, foi
pintando um clima e tudo acabou num arrebatado beijo na boca. Chico César,
que tem duas músicas no disco, tocou violão na primeira, ‘Dona do dom’, de
texturas mouras, e cantou com ela a segunda, ‘Antes que amanheça’. De vez
em quando Bethânia, sozinha, soltava pérolas como ‘As canções que você fez
pra mim’, de Roberto Carlos, ‘O que é o que é’ e ‘Começaria tudo outra vez’
de Gonzaguinha. O furacão Ana Carolina dividiu a música dela com Totonho
Villeroy gravada no disco, ‘Pra rua me levar’, soltando os megatons de
sua garganta. Renato Teixeira (‘Juntar o que sentir’) e Roberto Mendes
(‘Noite de estrelas’) ficaram travados e presos na leitura das letras.
Aliás, Bethânia também leu tudo, se perdeu várias vezes para achar as
letras e, no final, depois de receber uma chuva de pétalas de rosas,
puxou a diretora do show, Bibi Ferreira para receber os devidos aplausos.
No geral ficou a impressão de que houve ensaio de menos. Não importa. Quem
queria boa música conseguiu, as estrelinhas de TV que são atraídas por um
flash como mariposas pela luz se fartaram, a MPB se congraçou e Bethânia
saiu flutuando. Tudo nos conformes.
Jamari França
Globonews - 05/09/2001