O caliente sangue tropical de Bethânia e Omara
"Nossa música tem sangue tropical", reiteraram Maria Bethânia e Omara Portuondo ao cantar verso de Havana-me na estréia do show que vai passar por dez cidades brasileiras até encerrar sua turnê internacional em junho, na Argentina e no Chile. A música de Joyce e Paulo César Pinheiro, que enfatiza as afinidades entre Brasil e Cuba, foi um dos muitos pontos altos do show. "Bethânia-me", afagou a veterana cubana. "Omara-me", devolveu Bethânia, em apropriado acréscimo de versos na letra festiva de Pinheiro.
O caliente sangue tropical deu ao show um calor que inexiste no disco que gerou o inédito encontro das intérpretes no palco. Em sintonia, o cenário de cores explosivas criado por Gringo Cardia realçou esse caráter tropical em tom kitsch. A sedutora entrada das cantoras em cena - quando sobe a cortina, as duas já estão no palco entoando em uníssono os vocais que anunciam Cio da Terra - já sinalizou que, no show, haveria a interação que faltou no CD. Na seqüência, o dueto em Cálix Bento enfatizou o acento ruralista de parte do repertório - exposto no palco em tom menos íntimo.
Com invejável vitalidade para seus 77 anos, notada sobretudo em sua parte solo, dona Omara arriscou cantar em espanhol músicas brasileiras como Gente Humilde, a já citada Havana-me e O Que Será, que fecha o roteiro (antes do bis) com o molho cubano. E foi essa interação com Bethânia que valorizou o show. Embora lendo as letras dos temas nacionais que interpretava em espanhol, dona Omara disfarçou bem a natural insegurança de estar apresentando músicas com as quais ainda tem pouca intimidade. Quando ficou em casa, sozinha no palco, a intérprete cubana deitou e rolou ao passear por boleros como Veinte Años, Mil Congojas (em um tom suave, às vezes até sussurrante que deu outra nuance aos doídos versos de Juan Pablo Miranda) e Dos Gardenias. O medley com os acalantos Lacho e Drume Negrita foi especialmente sedutor. Sob seca base percussiva, Omara pareceu encarnar uma preta velha, travando diálogo imaginário com crianças insones e enfatizando a raiz negra que fez brotar as músicas de Brasil e Cuba. Inesquecível.
A fina costura do roteiro se revela mais frouxa na parte individual de Bethânia. Do Partido Alto de Chico Buarque (entoado num tom incisivo, quase raivoso), a cantora pula para o sofisticado bolero Arrependimento e, na seqüência, revive Negue com um belíssimo arranjo que renova a música que regravou com grande sucesso no álbum Álibi (1978). Logo depois, recorda a rumba Escandalosa - sucesso de Emilinha Borba (1923 - 2005) - para em seguida fazer pulsar novamente a veia romântica com a dispensável Você Não Sabe (Roberto e Erasmo Carlos), música linda, só que totalmente fora de contexto neste sobe-e-desce. É em O Ciúme que a grande intérprete reaparece com toda sua força e majestade, em registro arrebatador merecidamente ovacionado ao fim do número. É de chorar. Finalizando seu set individual, Bethânia apresentou bela inédita de Roque Ferreira - Doce, um singelo tributo à baianidade nagô de Dorival Caymmi - unida em link com A Bahia te Espera.
No fim do show, reunidas novamente no palco, Bethânia e Omara realçaram a delicadeza ruralista de Você (Penas do Tiê), caíram no suingue de Só Vendo que Beleza (Marambaia), enfatizaram o fino lirismo da cubana Para Cantarle a mi Amor e se derramaram nos compassos abolerados de Começaria Tudo Outra Vez, do mesmo Gonzaguinha que reaparece no roteiro - no bis - com Palavras na voz de Bethânia. O efusivo duo das intérpretes em Guantanamera encerra o bis no clima caliente que fez ferver o sangue tropical de todos que testemunharam a estréia antológica do espetáculo que sedimenta o encontro de Omara Portuondo com Maria Bethânia.
Mauro Ferreira
Notas Musicais
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