Documentário 'Maria Bethânia: música é perfume', mostra o Brasil na voz da cantora
RIO - Nas imagens iniciais, o mar estoura em ondas na areia de Copacabana, cenário para o desfile dos tipos locais. O gari começa o dia catando o lixo dos banhistas, o vendedor de cervejas aguarda novos fregueses. No fundo, uma voz explica um Brasil (entre muitos), com o poema ''Pátria minha'', e um povo brasileiro (entre muitos), com a canção ''Gente humilde''. O motivo do filme, porém, não é o país - é a voz. Ou seria mesmo o contrário? Talvez nem um nem outro, talvez os dois. ''Maria Bethânia: música é perfume'' - com exibição de gala no Festival do Rio hoje, às 21h30, no Espaço Unibanco 1, com a presença do diretor Georges Gachot - é sobre uma voz que é um país, um país que é uma voz: ''Bethânia lembra um pouco a idéia de um país possível, algo que está perdido, mas está por aí'', define Chico Buarque a certa altura do documentário, comentando o show ''Brasileirinho''.
Se Bethânia materializa um país possível - perante o qual todos nós nos maravilhamos como estrangeiros - o suíço Gachot se aproximou dessa terra como duplamente estranho. Além da distância física por estar do outro lado do Atlântico, ele não conhecia nada de música brasileira e nem da cantora quando, levado por um amigo, foi assistir a um show dela em Montreux, em 1998. Saiu de lá certo de que faria um filme sobre a artista.
- Foi um choque cultural - conta ele, na beira da piscina de um hotel no Leme, o mar de Copacabana no horizonte. - E o choque não foi só pela voz única de Bethânia, a maneira como ela entra no palco, quase voando, sem os sapatos, o seu cabelo... Foi também pela musicalidade. Cada parte dos arranjos, o repertório, como ela ia de uma música a outra.
Gachot veio três vezes ao Brasil para filmar. Pisou em terras brasileiras num dia e no outro já estava no estúdio com Bethânia, iniciando um total de nove semanas de gravação. Para Gachot, sua condição de "duplamente estrangeiro" foi fundamental para a existência do filme.
- Acredito que Bethânia concordou em fazer este filme porque eu não era brasileiro. Eu cheguei para ela como uma criança, entende? Perguntando coisas. Bethânia foi minha professora. Ela me ensinou o Brasil - diz, retornando à idéia do país. - Acredito que ela tenha falado de forma mais aberta porque eu não tinha nenhum conhecimento a priori, não tinha idéias pré-concebidas. Eu não sabia nada! Nas entrevistas, Bethânia começava a falar em Chico, Caetano e eu dizia: "não sei nada sobre música brasileira, por favor me explique" (risos).
A professora de Brasil explicava. E, mais tarde, aprovou o aluno com louvor.
- Ela ficou muito feliz com o filme. Enquanto via, chorava e dizia: "arrebentou, arrebentou" - lembra o diretor.
Em ''Música é perfume'', Bethânia fala o mesmo ''arrebentou'' repetidas vezes ao ouvir o violão de Marcel Baden Powell em ''Samba da Benção'', parceria de seu pai, Baden, com Vinicius de Moraes. O filme foi feito durante as gravações de ''Que falta você me faz'', CD da cantora dedicado à obra do poeta, e também ao longo da turnê de ''Brasileirinho'', com shows no Canecão e na Concha Acústica de Salvador. Há também imagens de Bethânia em Santo Amaro, em família, entrevistas nas quais ela reflete sobre seu ofício (''adoro cantar na solidão do estúdio'') e conta curiosidades familiares (''Eu e Caetano adorávamos brincar de faquir quando crianças''). A mãe Dona Canô, o irmão Caetano Veloso e amigos como Gilberto Gil, Chico Buarque e Nana Caymmi também falam.
A ida à cidade natal de Bethânia é uma forma de resgatar parte de sua história, mas Gachot não procurou esgotá-la no filme:
- Meu objetivo com o filme era pôr na tela a grandeza da música de Bethânia. Não quis que a história quebrasse a música. Quando as canções me davam a oportunidade, eu contava a história - disse, explicando que o fato de o filme ter sido feito com apenas uma câmera ajudou nesse sentido: - Por isso que o filme é muito claro. Eu não gosto de registros de shows nos quais você vê a cantora, depois o pianista, o percussionista. Da forma como fizemos, você entra mais na música. Gastamos oito meses editando as 80 horas de material para fazer o filme fluir em seus 82 minutos.
Para o diretor, o mais importante era registrar de onde vinha a música de Bethânia. Por isso os ensaios, nos quais se revela uma cantora que tem completo domínio de seu trabalho, interferindo em cada arranjo. A relação, tensa e doce, da cantora com seu maestro e arranjador Jaime Alem é um capítulo à parte. Também para mostrar de onde vem a música de Bethânia, há tantas imagens de pessoas humildes, anônimas - arquétipos de brasileirinhos.
- Ela canta para eles e sua música vem deles. É um reflexo - diz, mais uma vez tentando desvendar o Brasil de Bethânia
Gachot tem experiência com documentários sobre música clássica, dedicado a artistas como a pianista argentina Martha Argerich e o compositor Claude Debussy. "Música e perfume" é o primeiro dedicado à música popular. Não que faça diferença para o diretor.
- Faço filmes apenas sobre a música que amo. Um jornalista me disse que, se você comparar o filme da Bethânia com o de Martha Argerich, verá que eles são muito próximos. Basta trocar Mozart e Chopin por compositores brasileiros, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Dorival Caymmi. E é isso mesmo - explica. - Uma vez eu disse à Bethânia: "Nós temos que ouvir toda manhã um pouco de Bach, e de tarde, um pouco de Bethânia". Ela gostou disso.
A metáfora "música é perfume" é da própria Bethânia. Segundo ela, "nada como um cheiro ou uma música para nos fazer sentir, viver, lembrar". Ela confirma suas palavras nos minutos finais do filme, depois de ouvir sua própria interpretação de "Melodia sentimental" e ficar profundamente emocionada. Vaidade? Ela explica:
- A voz mora em mim, mas não sinto como se fosse minha. É uma expressão de Deus. Uma fagulha, uma bobagem de Deus.
Deus arrebentou.