Maria Bethânia faz elegia aos rios e aos mares em um espetáculo autoral

Uma platéia eufórica lotou o Tom Brasil, em São Paulo, na última sexta-feira. Na estréia do seu show, Maria Bethânia mostrou que, mesmo sem ser compositora, seu trabalho é tão autoral quanto os de outros grandes criadores da MPB. O termo intérprete já parece restrito demais para caracterizar sua arte.

Bethânia não imprime sua personalidade apenas às canções que escolhe, como fazem os melhores intérpretes. Com igual talento, em seus shows, ela associa canções e poemas, acrescentando novos sentidos às obras desses músicos e poetas.

No novo espetáculo da cantora, baseado no repertório dos recém-lançados CDs "Mar de Sophia" e "Pirata", entram mais de 30 canções de autores como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. Tendo como tema os mares ou os rios, essas canções são tecidas pela cantora com sensibilidade e inteligência a poemas de autores como Guimarães Rosa, Antonio Vieira e a portuguesa Sophia de Mello Breyner.

Dessa poética teia de palavras, melodias e ritmos surge o retrato nostálgico de um Brasil mais puro, que permanece na memória da cantora.

Se a primeira parte do show mostrou uma Bethânia serena e risonha, em sua elegia à simplicidade perdida, quase ao final da noite veio a surpresa. Recitando trechos do poema "Ultimatum", de Álvaro de Campos (o indignado heterônimo de Fernando Pessoa), a cantora surpreendeu a platéia, com um discurso inflamado. "E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te descobrir", declamou, interrompida pelos aplausos dos fãs, excitados pela atualidade do poema (escrito em 1917) em seus ataques aos poderosos e às ideologias. Mas quem conhece Bethânia sabe que essa indignação não é exatamente de teor político. É mais um desabafo da artista frente a um mundo que já não se preocupa com o futuro dos rios ou dos mares, muito menos com a poesia.

Carlos Calado
Folha de São Paulo - 13/11/2006




Foto de Ana Maria D. de Oliveira




Bethânia mergulha de cabeça em águas poéticas

Diferentemente do antecessor Tempo Tempo Tempo Tempo, show que estreou em fevereiro de 2005 com costura frouxa que foi sendo ajustada na estrada, Dentro do Mar Tem Rio já chegou à cena arrebatador. Maria Bethânia transpõe suas memórias das águas para o palco sem o tom eventualmente solene dos dois discos recém-lançados (sobretudo de Mar de Sophia) que fornecem a matéria-prima do roteiro primorosamente alinhavado pela cantora com Fauzi Arap, um dos condutores do barco cênico da intérprete desde 1967.

Desta vez, o cenário idealizado pela diretora Bia Lessa – um painel clean sobre o qual são projetados símbolos dos mares e rios – não disputa espaço com a artista. E sua alteza, em esplendorosa forma vocal, reina soberana em dois atos. No primeiro, com figurino vermelho, em referência a Iansã, saudada ao final com Dona do Raio e do Vento. No segundo, vestida de um branco e de um dourado que remetem a Yemanjá, tributada em Rainha do Mar.

Dentro do mar de Bethânia tem Rio, sertão, sambas de roda, fados, frevos e cantigas de acento folclórico. Pérolas que emergem do roteiro ora em tom lúdico e terno (Pedrinha Miúda), ora épico (Memórias do Mar, Kirimurê), ora mais intenso (como na valsa Lágrima, de letra perfeita para a intérprete exibir a natural dramaticidade) e ora explicita ou implicitamente político. Se o texto Ultimato (Álvaro de Campos, 1917) é dos mais fortes já ditos por Bethânia no palco, Asa Branca, um dos números iniciais do primeiro ato, já lembra a recorrente falta d'água no sertão, cujo fim é rogado quase ao término do show em Meu Divino São José.

A intensidade da poesia e da música que emerge no palco - urdidas com paradoxal atmosfera de delicadeza -faz do show um dos melhores da carreira de Bethânia. A costura do roteiro é perfeita. O elo bem pode ser a melancolia ruralista que agrupa A Saudade Mata a Gente, Gostoso Demais (toada de Dominguinhos que Bethânia gravou em 1986 no disco Dezembros) e Tristeza do Jeca em seqüência de pura beleza. Ou então a mágoa amorosa que une Atiraste uma Pedra (clássico de Herivelto Martins e David Nasser revivido por Bethânia em 1981 no disco Alteza) à valsa Lágrima.

A força com que Bethânia mergulha na onda erótica de Eu que Não Sei Nada do Mar fez com que o público a ovacionasse ao fim da música de Ana Carolina e Jorge Vercilo como se o show tivesse terminado. O delírio foi tanto que a cantora teve que pedir para dar prosseguimento ao roteiro, eventualmente sublinhado musicalmente com a viola caipira de Jaime Alem (em números como De Papo pro Ar) e com a sanfona confiada ao pianista João Carlos Coutinho em Riacho do Navio e em Filosofia Pura, chula que Bethânia lançou em 1983 no disco Ciclo.

Grande e bela surpresa do fim do segundo ato, que precede o bis carnavalesco (Das Maravilhas do Mar Fez-se o Esplendor de uma Noite, A Filha da Chiquita Bacana e Chuva, Suor e Cerveja), Movimento dos Barcos (Jards Macalé) fecha o segundo ato sinalizando que as memórias das águas de Maria Bethânia estão vivas, embaralhando passado, presente e futuro.

Mauro Ferreira
11/11/2006


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