Águas de Bethânia lavam a alma carioca
"Estou de alma lavada", disse meu amigo Wagner Val, com quem tive o prazer de rever o novo show de Maria Bethânia na estréia carioca de Dentro do Mar Tem Rio. O comentário de Wagner foi muito feliz, pois, de fato, a platéia que lotou a desconfortável casa Vivo Rio saiu de alma lavada ao término de um espetáculo denso e primoroso. É impressionante como Bethânia vem evoluindo como cantora nos últimos anos. E como está segura em cena para experimentar registros agudos. As músicas dos discos Mar de Sophia e Pirata crescem muito no show.
Em relação à estréia de São Paulo, a única diferença foi a inclusão de Poema Azul, um dos momentos bonitos de um roteiro que seduz pelo hábil encadeamento de música e poesia. Coisa que Bethânia sabe fazer como ninguém. Um show irretocável!!!
p.s. antes de ter a alma lavada pela Abelha Rainha, bati agradável papo com Ana Carolina, que está lançando o CD duplo Dois Quartos. Ana é parceira de Jorge Vercilo em Eu que Não Sei Quase Nada do Mar, número que, a exemplo da estréia paulista, incendiou a platéia do Rio. Para felicidade de Ana, que, embevecida, prestigiou Bethânia na primeira fila, ao lado de Vercilo.
Mauro Ferreira
No Estúdio com Mauro Ferreira -
No palco de um Vivo Rio apinhado, sábado passado, na estréia carioca de Dentro do mar tem um rio, Maria Bethânia exerceu sua entidade. O público não aplaude, incensa, durante quase duas horas de espetáculo. Há apenas um curto intervalo, preenchido pelas caymmianas Suíte dos Pescadores e Sargaço mar, em solo do grupo instrumental liderado por Jaime Alem. Tempo para que a Abelha Rainha troque o traje rubro acetinado pelo branco rodado e rendado, em sintonia com os longos cabelos grisalhos que não cessa de ajeitar. A sensível direção de Bia Lessa e cenários reproduzindo o visual delicado do par de discos (Mar de Sophia e Pirata) que motivou o show, completam-se no gestual concentrado da cantora, há décadas dirigida por Fauzi Arap, um dos ases da geração Oficina/Arena dos anos 60, autor do roteiro com ela.
Sob raios no cenário, Bethânia evoca Canto de Nana, fiapo genial de candomblé de Caymmi, seguido de uma Asa branca (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira) sobre ribombar de tambores. A partir daí encadeiam-se canções e poemas numa costura quase imperceptível. Como em Grão de mar (Chico César/ Márcio Arantes) e um dos textos de Sophia de Mello Breyner (“em sal, espuma e concha regressada à praia inicial da minha vida”), que pontuam o enredo. Para o delta Bethânia confluem O tempo e o rio (Edu Lobo/Capinam) e Onde eu nasci passa um rio (Caetano Veloso), autores que chegaram e estranhar-se no tropicalismo. E também o subestimado Sergio Ricardo (Poema azul), na sutileza de voz e piano.
Fiel aos conterrâneos fornecedores Roberto Mendes e Jorge Portugal (Memória das águas, Filosofia pura), Bethânia viaja entre as síncopes da chula e samba de roda (marcadas por palmas da platéia), temas folclóricos alternados com o bucolismo rural de clássicos como A saudade mata a gente (João de Barro/ Antonio Almeida) e a angústia urbana de Movimento dos barcos (Macalé/ Waly Salomão), um dos pontos altos do show. Ele tanto aporta na candidata a “hit” Garimpeira (Ana Carolina/ Jorge Vercilo) com seu tônus de guarânia, quanto no refino de As praias desertas (Tom Jobim/ Vinicius de Moraes). E tudo acaba, no segundo bis, em “carnaval molhado”, como ela agrupa marchas e frevos como Chuva suor e cerveja, Alá-la ô e A filha da Chiquita Bacana. Isso após chicotear a platéia com a atualidade anarquista de um texto de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, de 1917. “E tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem queria te descobrir”. Pano rápido.
Tarik de Souza
Jornal do Brasil - 04/12/2006