MARIA BETHÂNIA REVIVE ANOS DOURADOS EM ESPINHOPorto (Delegação) - Com saudades da Copacabana de Dorival Caymmi, Maria Bethânia passou a noite de sábado em Espinho, colhendo, no Salão Atlântico do Casino Solverde, a "Rosa dos Ventos" do antigo e eterno repertório. Na realidade, ninguém poderá negar que foi na evocação dos "Anos Dourados" do seu património musical que a diva acendeu a luz mais intensa deste concerto. Quanto aos temas mais recentes - que fazem a novidade da actual digressão - foram apenas semeados, num formato "medley", espécie de amostra grátis do sortilégio que podem instalar, por exemplo, músicas como "Depois De Ter Você" de Adriana Calcanhotto. É caso para dizer que "Maricotinha" anda está aprendendo a gatinhar. Nesta estreia da digressão portuguesa, a trovadora de "Abelha Rainha" demonstrou, antes de mais, a agilidade de uma abelha obreira, sendo capaz de, num amplo “pot-pourri”, refazer o gostoso mel de 35 anos de carreira.Movendo-se no sagrado"Tudo que move é sagrado e remove as montanhas com todo o cuidado". A sabedoria da mineirice deste verso de "Amor De Indio" (Beto Guedes-Ronaldo Bastos) bem poderá ser a legenda de um espectáculo em que a voz límpida e cristalina de Bethânia imperou soberana. Movendo-se pelos domínios do sagrado, ela arrancou a primeira ovação ao interpretar "Negue" (Adelino Moreira-Enzo de Almeida Passos), essa veemente canção de "dor de cotovelo". Isso não quer dizer que já antes fosse credora de aplausos. O “show” abriu com a balada "A Moça Do Sonho", de Chico Buarque e Edu Lobo, dois dos compositores predilectos. Toada dolente que, de súbito, se viu sacudida por "O Quereres", em que o mano Caetano retém ainda alguma vertigem tropicalista. "Bodocó", "Dona Do Dom" (Chico César) e "Festa" conduziram a prestação numa visita aos ritmos nordestinos, onde não faltou mesmo uma levada maracatu. Dando outra guinada na cadência, Bethânia revisitou "Anos Dourados"(Tom Jobim-Chico Buarque) naquele gostoso embalo de um cool-bolero. E prosseguiu na ambiência lírica, agora sob os auspícios de "Todo O Amor Que Houver Nessa Vida" do "barão vermelho" Cazuza. Espasmos de romantismo que incitaram um casal a esboçar um enlaçado “slow”, quando ela começou a cantar "Seu Jeito De Amar". E o parzinho insistiu na audácia, ao som de "Negue", do bolerístico "Sob Medida" e da "Fera Ferida" da sempre jovem guarda de Roberto Carlos-Erasmo Carlos, que a plateia saudou, rompendo inibições. Esta secção mais intimista do concerto culminou com a tranquilidade sertaneja de "Casinha Branca". Sentada no tablado, Bethânia tributou toda a beleza que há em "Canto de Dona Sinhá" (Vanessa da Mata), uma balada plena de autenticidade sertaneja. De novo de pé, no meio do palco, entoou, com aquele timbre de patativa, "Doce Mistério da Vida" (versão de "Ah!Sweet Mistery of Life", de V. Herbert). A sua "Maricotinha" (Dorival Caymmi) chegou finalmente, com toda a candura de um samba de roda. Noutra drástica mudança de tom, lançou o per fume de "Baila Comigo" (Rita Lee-Roberto de Carvalho), num medley que incluiu acordes de "Shangri-la" da mesma Rita e de "Não Chores Mais", de Gilberto Gil, a partir de Bob Marley.Tributo a AmáliaE Maria Bethânia Vianna Telles Veloso não chorou quando um deslize técnico a obrigou a interromper a actuação, dado que ficara privada de som de retorno. Evidenciando, pelo contrário, aquela força que nunca seca, regressou a Dorival Caymmi para cantar a bossanovística "Sábado Em Copacabana", que a fez relembrar as noites no Teatro Opinião, quando tinha 20 anos e vida começava a ser um palco iluminado. O seu desempenho começou a ganhar uma aura transfigurada na homenagem a Amália Rodrigues no fado "Estranha Forma de Vida". "Álibi" (Djavan) deu novo alento à prestação, numa toada de bolero suave e contido, pontuada pelo solo do violão de João Castilho. "Apesar de você, amanhã há-de ser um outro dia". O samba com que Chico Buarque afrontou a ditadura militar brasileira trouxe aquela vibração carnavalesca a uma sala demasiado bem comportada. "A rosa dos ventos danou-se e a multidão vendo atônita, ainda que tarde o seu despertar". Essa mítica canção de protesto - sem dúvida, uma das preferidas da cantora - abriu alas para a surpresa mais vibrante do concerto. Expressando a sagacidade de uma eterna aprendiz, Bethânia foi bonita, derramando no palco a alegria e o optimismo de Gonzaguinha com "Explode Coração". No dia em que o Brasil assinalou 20 anos sem Elis Regina, Bethânia foi "a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia" despedindo-se do público com "Reconvexo", do sempre mutante Caetano Veloso.Daniel Guerra Correio da Manhã - 21/01/2002 |
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