Bethânia sem dramas
Em grande fase, cantora abre mão de teatralidade e grava versão em DVD do delicado 'Brasileirinho', além de disco sobre Vinicius
Na contracapa do terceiro LP de estúdio gravado por Maria Bethânia, em 1969, Hermínio Bello de Carvalho traça um perfil daquela jovem de 20 anos, já famosa por aos 17 ter estourado no panfletário show Opinião, ao lado de Zé Ketti e João do Vale, no teatro de mesmo nome, em Copacabana. Diz o poeta: ''Bethânia tem o porte magro, agreste, chuvoso (...) Aí, perguntamos: de onde tanto desalento? Em que paragens soturnas e mal-habitadas vagueou seu sentimento (...) Misturão de angústias é o que ela é''. Décadas depois, a cantora soa como a antítese dessa descrição - que a acompanhou por quase toda a carreira. Para confirmar a impressão basta ouvir a alegria serena de Brasileirinho, seu mais recente disco, que ela apresenta hoje e amanhã no Canecão - quando será gravado um DVD, com previsão de lançamento no fim do ano.
- A referência do Hermínio é mais pela gravidade da minha voz, de como ela pode imprimir em algumas pessoas coisas muito maiores do que a minha idade naquela época poderia. Mas hoje sou uma mulher madura e Brasileirinho é o contrário disso. São as músicas da minha vida, mesmo antes de eu nascer. É um álbum que fiz porque eu mereço me dar esse prazer - afirma Bethânia.
A diferença deste para os muitos álbuns da cantora é que Brasileirinho parece escancarar a delicadeza, algo antecipado no disco anterior, Maricotinha - ambos com título no diminutivo. A intérprete que puxava demais nos ''erres'' e vestia as canções com densa carga teatral parece, aos poucos, ter perdido a angústia. Não há uma faixa dramática sequer. Bethânia é contida e tal serenidade em nada lembra a mulher famosa por cantar com intensidade teatral Carcará (João do Vale/José Candido), Com açúcar, com afeto (Chico Buarque) e Negue (Enzo de Almeida Passos/Adelino Moreira), entre outras. O álbum traz o mergulho nas raízes do país, com poemas de Mario de Andrade e Guimarães Rosa, canções de domínio público, homenagens a santos, gritos ecológicos explícitos em Purificar o Subaé (do mano Caetano Veloso), e o resgate de Heckel Tavares e Luiz Peixoto.
Bethânia fecha a tampa com Melodia sentimental, uma das mais inspiradas canções do modernista Villa-Lobos. E impõe à música talvez o desejo maior do autor, o de vê-la sem os exageros líricos. O repertório do disco não difere do que sempre gravou (como homeagear o sincretismo e o folclore), mas a abordagem soa completamente distinta.
- Brasileirinho trouxe as maiores alegrias, é lindo como toca as pessoas, a maneira como é reconhecido, com que amor ele despertou e como dão para gente tudo e volta. A gravação deste DVD, num tempo tão próximo do outro (o show Maricotinha ao vivo também rendeu um álbum nesse formato), pode parecer loucura, nada tão anticomercial. Mas hoje eu estou assim, mais tranqüila, a suavidade está na alma, tive uma extrema felicidade em fazê-lo e não queria privar meu público de compartilhar isso comigo - diz.
A fase coincide com a independência de Bethânia, desde que trocou a multinacional BMG pela criteriosa Biscoito Fino, em 2002. Em dois anos, foram quatro lançamentos e a inauguração de um selo próprio, o Quitanda, no qual pôde mostrar o trabalho da conterrânea Dona Edith do Prato. A cantora vai lançar em breve um disco com canções e poemas de Vinicius de Moraes - que, aliás, nunca teve a mesma importância que Chico Buarque, Caetano Veloso e Fernando Pessoa em seu repertório. O CD já foi gravado e é provável que saia até o meio do ano.
- Vinicius foi da bossa nova, não era a minha praia. Mas na minha careira ele aparece em muitos discos e em todos os shows. Muitas vezes de forma exagerada, dose na veia. Soneto da fidelidade é aos berros, no meu entender, e não suave. Agora fiz a homenagem que queria. Ela vem com a placidez próxima de Brasileirinho, vou fazer o show dos dois discos juntos, mas Vinicius mexe com outros departamentos, a paixão, a perda, o amor alucinado.
A cantora tem ainda três projetos em mente: um álbum de músicas interpretadas por Bibi Ferreira, outro em que ela mesma e Nana Caymmi cantam Sueli Costa e ainda o disco de Adriana Calcanhotto sobre a obra de Waly Salomão.
- A gente pretende fazer dois lançamentos por ano. Tenho 350 mil idéias e há muita coisa boa acontecendo no Brasil. Recentemente Adriana me procurou e disse que tinha vontade de fazer o CD de Waly no Quitanda. Acho a idéia ótima.
Pode ser um erro, contudo, acreditar que a cantora de protesto não esteja presente nos recentes álbuns e DVDs. Bethânia não fala sobre política, nega-se a comentar a atuação do amigo Gilberto Gil no Ministério da Cultura e, se não parece tão angustiada quanto já foi, mostra que a indignação continua, mesmo que por outros motivos.
- Vale a pena protestar contra a burrice, a guerra no Iraque, por exemplo. Bush dizendo que o país tem armas químicas e é mentira. Estava na cara, acham que a gente é trouxa. Você liga a televisão, lê o jornal, tem três ou quatro notícias humanas. O resto são palavras que a gente não sabe de onde vêm e sou obrigada aprender. Num quero, não estou interessada, moço. Adoraria me surpreender. Brasileirinho é assim: está tudo tão chato, está tudo tão fora de ordem, que eu vou erguer uma bandeira de paixão pelo meu país.
Na gravação do DVD, hoje e amanhã, Bethânia será acompanhada pela banda dirigida pelo fiel-escudeiro Jayme Alem, e contará com as participações das amigas Miúcha e Nana Caymmi, além dos grupos Uakti e Tira Poeira, e da diretora Denise Stoklos. O disco é curto e, para adaptá-lo ao palco, ela preparou com Miúcha Correnteza (parceira de Jobim e Luiz Bonfá) e, com Nana, João Valentão (Dorival Caymmi).
Luciano Ribeiro
JB Online - 09/03/2004
Bethânia grava "Brasileirinho" em DVD
Rio - O disco Brasileirinho, de Maria Bethânia, lançado no ano passado e campeão de vendas da Biscoito Fino, vira show hoje e amanhã, no Canecão, para ser gravado em DVD. É uma superprodução, com direção de palco de Bia Lessa e de vídeo de André Horta, que assinou o DVD Maricotinha, registro do espetáculo anterior, comemorando seus 35 anos de carreira. Agora, os convidados do CD do selo Quitanda criado por Bethânia, a atriz Denise Stoklos, as cantoras Miúcha e Nana Caymmi e os grupos Uakti e Tira Poeira estarão no palco, sob a regência de Jayme Álem, maestro da cantora há duas décadas.
"Vamos repetir as sonoridades do disco, com vozes e instrumentos dobrados. Por isso, foi preciso um grupo maior, com nove músicos", conta Álem. "O repertório é o mesmo do disco, acrescido de canções antigas, e os convidados ensaiaram mais de uma opção, além de suas músicas. Nana pode cantar Saudade da Bahia ou João Valentão, por exemplo, e a Miúcha, Correnteza, do Jobim." Bethânia se diz avessa ao vídeo ("gosto é do palco"), mas o resultado de Maricotinha foi tão bom que ela repete a dose, mantendo a recomendação de tornar a câmera invisível. "Até se pensou em fazer um show para o vídeo, mas prevaleceu o registro do que ela faz para a platéia, com câmeras muito discretas", diz Horta. O DVD deve ser lançado no segundo semestre, mas Bethânia pretende começar turnê nacional até maio. Só não está decidido ainda se será com Brasileirinho ou com o disco sobre Vinícius de Moraes, que ela ainda nem lançou.
Beatriz Coelho Silva
O Estadão - 09/03/2004
A colméia da rainha
Copo de uísque na mão, uma bela e confortável roupa vermelha e dourada, de um tecido que ela mesma comprou em Angola, Maria Bethânia está relaxada e feliz no camarim do Canecão, no Rio. Às 2h da manhã da quinta-feira, ela tem ao seu lado Nana Caymmi e Miúcha, suas convidadas para o show "Brasileirinho", e mais uma dezena de amigos -totalmente embasbacados. Já refeitas da apresentação daquela noite, as três cantam sem parar. Dão risada, falam de seus pais e irmãos (Bethânia é irmã de Caetano, Nana é filha de Dorival Caymmi e Miúcha, irmã de Chico Buarque), falam de Kelly Key, falam do Brasil.
Um gole de champanhe, e Miúcha solta: "A correnteza do rio vai levando aquela flor/ O meu bem já está dormindo/ Zombando do meu amor" ("Correnteza", de Tom Jobim). "Ôu dandá, ôu dandá", e Bethânia se junta a ela: "Ôu, dandá, ôu dandáááá". Nana, a mais despachada das três, começa a falar "dessa barbárie, dessa vulgaridade que é o Brasil". A voz aumenta: "... Essa vulgaridade que a gente atropela... e faz o que gente quer!".
Sim, elas procuram fazer o que querem, sem concessões fáceis ao marketing, orgulham-se. E soltam: "Boi, boi, boi/ Boi da cara preta/" ("Acalanto", de Dorival Caymmi). "Pega a Bethânia/ Que tem medo de caretaaaaa."
"Aproveite, Bethânia, aproveite tudo do meu pai. Ele está surdo, cego, mas a cabeça está perfeita. Ele me diz: "Filha, minha cabeça tem tudo o que eu vi. Está tudo aqui'", diz Nana. Caymmi vai fazer 90 anos em abril. As três se abraçam.
Bethânia fala: "A delicadeza é a única coisa que pode nos salvar, nos apartar do que é infernal no Brasil, o dinheiro, a Bolsa de Valores, esse inferno... Gente, olha a lua do Brasil como é linda! Olha as vozes das cantoras do Brasil como são lindas! É isso que nós temos que mostrar".
Na apresentação de "Brasileirinho", em que foi gravado um DVD, Bethânia colocou no palco, como convidados, além de Nana e Miúcha, os conjuntos Tira Poeira e Uakti e a atriz e diretora Denise Stoklos. O show deve vir a São Paulo em abril.
"A mulher chega aos 40, 50 anos, no Brasil, e é jogada para escanteio. E o que você está fazendo comigo e com a Miúcha... é o que estão fazendo com a estátua de David em Firenze. Estão arregimentando o pau do David!", diz Nana [a escultura de Michelangelo está passando por uma restauração]. Gargalhadas. Bethânia completa: "A música do Brasil também precisa de cuidados". E Nana: "Você está quebrando um tabu, porque eu não sou a [cantora] Kelly Key. Eu queria, mas não sou!".
"Vamos cantar alguma coisa daquele f. da p. do seu irmão?", diz Nana a Miúcha, referindo-se a Chico Buarque. "Sou doidinha com aquelas canelas finas dele", confessa. "Não me importa canela fina, coxa grossa, ele é ele!", diz Bethânia, soltando: "O primeiro me chegou..." ("Terezinha", de Chico Buarque).
Naquela noite, Chico foi a estrela da platéia de Bethânia (um dia antes, o papel coube a Caetano Veloso). Eram 19h da quinta quando começou a correria para ser montado um esquema especial... não para a chegada de Bethânia, mas para Chico: ele queria ir ao show sem ser visto. Entrou no Canecão escondido, e escondido ficou numa sala para só se dirigir à platéia com as luzes apagadas.
"Meu Deus, olha o Chico ali", exclamou Eunice Oliveira, a Nicinha, levando a mão ao coração ao ver Chico no esconderijo. Se ela pode tietar, todos podem: Nicinha é simplesmente irmã de Caetano e de Bethânia. Ao vê-la, Chico se derreteu.
Bethânia chama Nicinha de Babá, por causa de seu orixá. Babá é a única pessoa autorizada a mexer nos objetos pessoais da cantora no camarim. No dia da estréia, ela chegou três horas antes do show para ajeitar as coisinhas perto do espelho: uma foto de mãe Menininha do Gantois, um quadro de santa Bárbara, uma sereia dentro de uma tigela de água (presente de mãe Cleusa do Gantois), copinhos para uma pequena dose de uísque (Bethânia aquece a garganta com a bebida uma hora antes do show), pulseiras e um colar de ouro, presente de mãe Menininha, que ela usa em todos os shows.
Babá é a mais velha dos oito irmãos. Ela conta que Caetano não anda gostando nada de ver o tempo passar. Babá diz que, com a exceção de uma cirurgia que fez nos seios há cerca de dois anos e que a fez emagrecer bastante (ela também faz ginástica), "Bethânia não está nem aí". Não pinta os cabelos e se arruma sozinha antes dos shows.
Ao lado do camarim, Maria Luisa Jucá, empresária de Bethânia, atendia o celular a cada dois minutos, recebendo pedidos de convites para o espetáculo. Com duas assistentes, ela tentava ajeitar as coisas. "A Luciana de Moraes [filha de Vinicius] está doente". "Dá a mesa dela para a Marieta [Severo]", respondia Jucá. Luciana acabou indo; Jucá deu sua própria cadeira para Marieta. "A Luciana Braga [filha de Roberto Carlos] confirmou presença." "Só agora? Não tem mais convite!" "Carla Camurati não vem, está com enxaqueca." "Ai, não sei se consigo mesa boa amanhã!"
Dez minutos antes do show, o maestro Jaime Alem, 52, com Bethânia há 21, entra no camarim dela com os outros músicos. A tensão é grande porque todos sabem: Bethânia não admite falhas e, quando elas acontecem... sai de baixo.
Depois de algumas piadas para relaxar, todos fazem uma oração e vão para o palco. É hora de Bethânia oferecer ao público o favo de seu mel.
Mônica Bergamo
Folha de São Paulo - 14/03/2004