Tributo de Bethânia redimensiona Rosinha de Valença

Honras desse tipo costumam mesmo ser póstumas, mas agora estão feitas: o tributo "Namorando a Rosa" recoloca no lugar devido a grandeza da violonista e compositora brasileira Rosinha de Valença (1941-2004) no seio de sua música popular. Fecha-se alegre um ciclo triste iniciado em 1992, quando Rosinha sofreu uma parada cardíaca e entrou no estado de coma que prevaleceu até sua morte, em junho.

As honrarias vêm de dentro para fora e partiram do selo Quitanda, de Maria Bethânia, cantora que sob direção musical de Rosinha se projetou definitivamente no show "Comigo me Desavim" (67). Também produtora do disco-tributo, Bethânia faz dele uma espécie de "Brasileirinho" 2, um prosseguimento do inventário do Brasil íntimo que a tem guiado.

"Rosinha era a plenitude da bossa nova, mas tinha uma particularidade: era do interior, caipirinha como eu e emocionada com isso", relata Bethânia para justificar a tonalidade interiorana e amplamente emotiva do CD que bancou com a gravadora Biscoito Fino e produzido com Miúcha.

Bethânia canta no tributo em cinco oportunidades, amplificando o espectro emocional de canções de uma mulher mais célebre como violonista, mas que se revelava autora em profundidade em poeminhas como "Madrinha Lua" e "Usina de Prata".

"A Pescaria" é cantada em dueto arrepiante de Bethânia com Caetano Veloso, como numa dupla caipira. A irmã diz que seria do gosto mais íntimo de Rosinha, violonista de bossa que também era sambista de prima, em parceria virtuosa com Martinho da Vila. Chico Buarque e sua sobrinha Bebel Gilberto, filha de Miúcha, repetem o feito em "Os Grilos São Astros", formando dupla caipira das mais chiques num todo assombroso de música e poesia.

A soberba "Usina de Prata", de letra profunda e fantasmagórica, foi recolhida, como muito do disco-tributo, do LP "Cheiro de Mato" (76, nunca reeditado pela EMI), em que a não-cantora Rosinha dava a Miúcha primeira chance de soltar a voz.

"Quando eu e Bethânia regravamos "Cabocla Jurema" [tema popular que Rosinha resgatara em "Cheiro de Mato'], fui a Valença mostrar para ela. Pareceu que o olho dela me olhou, e então caiu uma lágrima", comove-se Miúcha, que relê "Meus Zelos" e trata o tributo como atenuante de "um sentimento de culpa que todo mundo tinha por não visitá-la". "Bethânia nunca teve coragem de ir, eu quase não tive também."

Bethânia não visitou e conta o porquê: "Não tive coragem de ir ver, quando alguém ia, eu dizia: "Nem me ligue, não tenho perna". Ela era uma moleca, ver aquilo parado eu não queria, não".

Embora não fosse em pessoa, formou com Alcione e Martinho da Vila grupo seleto que prestou assistência a Rosinha e à família nos anos de coma. Fechava-se o cerco protetor do samba em torno de Rosinha, que trabalhou com Nara Leão e Elis Regina e apresentou Dona Ivone Lara a Bethânia (as duas se unem no tributo em "Sonho Meu", de Ivone, elo de comunhão entre as três).

"Bethânia ajudou tanto quanto eu, eu era a portadora das coisas para Valença, levava colchão de água", conta Alcione, que transformou a saudade em uma releitura apaixonada de "Interior", uma das mais belas canções de Rosinha e surpreendente momento de epifania no CD-tributo.

"Nos últimos tempos eu não estava indo mais lá, não adiantava", encolhe-se Martinho, que retrabalha o samba e a ausência em formato de blues, na parceria Martinho-Rosinha "Pro Amor de Amsterdã". Quem canta com ele no dueto é Célia Vaz, outra referência quase solitária do violão feminino na música brasileira. Se é de mulheres e de música instrumental que se fala, que entrem homens instrumentistas com seus depoimentos musicais e falados. Participam da parte instrumental de "Namorando a Rosa" os veteranos parceiros de Rosinha Hermeto Pascoal e Turíbio Santos e o "herdeiro" (nos dizeres de Martinho da Vila) Yamandú.

"Não sou herdeiro, isso é exagero, mas Rosinha foi um dos primeiros violões brasileiros que ouvi, com Baden Powell e Raphael Rabello", mapeia o jovem Yamandú, que toca "Rosinha, Essa Menina", composta em 76 para a violonista por Paulinho da Viola.

Hermeto foi além, compôs um tema para Rosinha, o escorchante "Mais uma Rosa". Fala o mago de muitos sons e poucas palavras: "Pelos músicos da minha geração, a mulher era desprezada pelos homens quando era vista tocando ou dirigindo carro. Quando o pessoal via que Rosinha esquentava tudo, acabava esse papo boboca". Sem mais papo então.

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Folha de São Paulo - 22 de Dezembro de 2004

ROSINHA DE VALENÇA GANHA TRIBUTO AMOROSO DOS AMIGOS

O amor a Rosinha de Valença levou que sua amiga Maria Bethânia resolvesse produzir um disco em homenagem à música e ao universo afetivo da violonista e compositora falecida este ano, depois de 12 em coma. O amor fez Miúcha aderir ao projeto. E o amor trouxe Alcione, Dona Ivone Lara, Célia Vaz, mais um punhado de artistas que conviveram com Rosinha, de Martinho da Vila a Caetano Veloso, de Chico Buarque a Joanna, de Hermeto Pascoal a Turíbio Santos.

— O mais bonito foi o encantamento de cada um — diz Bethânia cercada por Dona Ivone, Miúcha, Alcione e Célia Vaz num fim de tarde ameno, dedicado a falar sobre Rosinha, na casa do alto do Humaitá onde funciona a gravadora Biscoito Fino, que, pelo selo da cantora, o Quitanda, lança esta semana “Namorando a Rosa”. — O título do disco só poderia ser esse mesmo, o que nós fizemos foi namorar Rosinha e sua música.

Tudo, partindo da intenção de Bethânia, foi guiado pelo afeto. A começar pelo clima sofisticadamente sertanejo, ao mesmo tempo lírico e bem-humorado, que conduz o disco.

— Apesar de violonista sofisticada, formada na bossa nova, com grande técnica, Rosinha tinha adoração mesmo é por moda de viola — testemunha Bethânia, que, além de ter trabalhado por mais de uma década com Rosinha, passou temporadas de pesca e viola nos rios da cidade natal da violonista, Valença. — O que ela mais gostava era ligar o rádio e ficar respondendo às modas de viola com o violão.

Bebel e Chico Buarque formam dupla caipira

Daí, depois de uma versão pessoal de Rosinha para o clássico “Pedacinhos do céu” tirada de um de seus discos mais representativos, “Cheiro de mato” (1976), o disco-tributo abrir com a inusitada dupla caipira Belisco, apelido dado por Miúcha a partir das iniciais da dupla formada por sua filha, Bebel Gilberto, e seu irmão Chico Buarque, que cantam a moda fantástica “Os grilos são astros” (“No rumo de uma estrela/Vou pelo mato afora”).

São sertanejas faixas como “Usina de prata” e “Madrinha Lua” (cantadas por Bethânia), a sofisticada “Meus zelos” (por Miúcha) e “Interior”, magnificamente recriada por Alcione, que dobra a própria voz em terças típicas do universo caipira brasileiro.

— Fui visitar Rosinha em coma, o médico disse que a música a estimulava, e toquei a nossa gravação de “Cabocla Jurema” — lembra Miúcha, referindo-se à velha moda do disco “Brasileirinho”, de Bethânia. — E, de fato, no fim, uma lágrima correu de seu olho.

Célia Vaz, violonista e arranjadora que trabalhou muito com Rosinha até o derrame que a levou ao coma em 1992, também se lembra do gosto da amiga pelo universo interiorano.

- Ela ligava e dizia: “Oi, minha colega de viola...” — diz Célia, arranjadora no disco do irônico blues “Pro amor de Amsterdam”, cantada pelo parceiro de Rosinha nesta música, Martinho da Vila, uma das provas do universo estético muito mais abrangente de sua música. — A Rosinha tinha, além de tudo, muito humor. Uma vez nós fizemos um show no Parque da Catacumba, acompanhadas pelas cordas da orquestra do Teatro Municipal. Fizemos uma “Asa branca” com arranjo dela para cordas, imitando teclado. Os teclados não imitam cordas o tempo todo, ela me disse. Então agora, as cordas vão imitar teclados. O arranjo se chamou “A vingança das cordas”.

Outro exemplo da abrangência estética de Rosinha para além de sua origem interiorana é sua relação com o samba. Ela não apenas tocou por muitos anos com Martinho da Vila como mantinha uma relação diária de amizade com sambistas como Dona Ivone Lara.

— Rosinha me ligava no fim da tarde e falava: “Vai aqui, comadre, comer um torresmo”. Eu ia, e a gente ficava cantando, ela me pedia para mostrar as novidades — diz Dona Ivone.

Numa dessas tardes, aliás, querendo que Bethânia conhecesse as músicas de Dona Ivone, Rosinha organizou um sarau. Dona Ivone cantou e cantou até que, enquanto já ia embora, cantarolava uma que terminara de compor com o parceiro Délcio Carvalho.

— Eu falei para Dona Ivone: “espera aí” — ri Bethânia, que conhecia ali, na casa de Rosinha, “Sonho meu”, um de seus maiores sucessos que em “Namorando a rosa” regrava com a autora, em homenagem à madrinha da gravação original.

Dona Ivone versou especialmente para Rosinha

Para a regravação, a pedido de Bethânia, Dona Ivone versou em homenagem a Rosinha. “Rosa, só me deste alegria/Ouvindo seu violão/Dia, noite, noite e dia/Cantar pra mim foi privilégio/Ao som de sua viola/Que me anima e consola/A sua ausência me entristece/Mas guardo como lembrança/Seu sorriso e harmonia”, canta, como que resumindo o sentimento que norteou Bethânia e os outros artistas de não fazer algo triste ou saudoso.

— Não poderia ser triste — diz Bethânia. — O violão de Rosinha era sensual, tinha humor e chegava a ser viril.

A virilidade (e juventude) do violão de Rosinha está representada no não menos vigoroso violão de Yamandú Costa, que, ao lado do magnífico Trio Madeira Brasil, toca “Rosinha, essa menina”, choro dedicado a Rosinha, feito por Paulinho da Viola em 1976.

No disco, o universo estético de Rosinha ganha duas homenagens distintas: o mundo clássico vem com Turíbio Santos, que compôs especialmente o “Prelúdio da Rosa”; a vanguarda com Hermeto Pascoal e sua “Mais uma Rosa”.

— Eu os chamei para tocar e eles quiseram compor especialmente — orgulha-se Bethânia.

Mas para Bethânia, como em seus últimos trabalhos, sobretudo “Brasileirinho”, o que a guia é o universo interiorano.

— A cada dia que passa vou para um mundo assim, longe daqui — diz, apontando para a cidade, ou canta no disco, com Caetano, em homenagem a Rosinha uma moda baiana chamada “Pescaria”: “Espero o dia amanhecer/Pego a viola e faço um ponteado/Sentado na beira do rio/Com viola e violão afinados”.

O Globo - Segundo Caderno - 17 de Dezembro de 2004
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